Nagashi Furukawa

A prisão de Edinho, o filho do Rei Pelé

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Capítulo 1

Rosemeri Cholbi Nascimento

Em 1958 eu tinha 9 anos de idade e morava na zona rural do município de Bragança Paulista, em um bairro chamado Água Comprida. Foi ali que frequentei os três primeiros anos do curso primário, em um tipo de escola que acredito não exista mais, pelo menos no Estado de São Paulo. Era uma “escola mista”. Tinha essa denominação porque em uma única sala, com um só professor, misturavam-se alunos das três primeiras séries. Os do primeiro ano, sempre em maior número, sentavam-se em duas fileiras de carteiras; os do segundo, já em número sensivelmente menor, não passavam de oito ou dez alunos. No terceiro ano, apenas quatro. O problema da evasão escolar era muito grave. A maior parte dos meninos e meninas morava longe do estabelecimento de ensino e tinha dificuldade em continuar estudando. Muitos tinham que trabalhar para ajudar a família.

Era uma época em que ainda se usava “caneta-tinteiro” e “mata-borrão”. Para escrever era preciso muito cuidado, muita habilidade, molhando a pena levemente na tinta e traçando as letras suavemente para não entortar a pena. Qualquer descuido e a escrita ficava borrada, com a tinta se espalhando em excesso no caderno. Para consertar isso havia o “mata-borrão”, que era um papel poroso, destinado a absorver a tinta excedente.

O caminho para a escola, de mais ou menos três quilômetros, em estrada de terra, poeirenta na seca e cheia de barro na chuva, era diariamente percorrido a pé, com os pés descalços ou com “alpargata roda”. Alpargata era um calçado feito de pano, com sola de sisal, uma planta muito forte e resistente à umidade, que serve também para fazer cordas. “Roda” era a marca do calçado. Frequentemente o dedão do pé furava o tecido com o uso. Para que isso não ocorresse muito depressa, meu pai mandava usar a alpargata alternando o pé esquerdo com o direito, de forma que o desgaste fosse uniforme. Não havia pé esquerdo e direito: os dois eram iguais.

Na volta da escola enchíamos a barriga e os bolsos da calça com pitangas que apanhávamos na beira da estrada. Havia pitangas em abundância para todos os lados. Levei muitas broncas da minha mãe pelas manchas avermelhadas que o suco das pitangas deixava nos bolsos.

Nesse ano de 1958, pela primeira vez, ouvi falar em “Copa do Mundo”. Em um rádio novo, daqueles enormes, que funcionavam a pilha e com válvulas, ouvíamos as notícias do mundo. O rádio era bom: durante a madrugada, em ondas curtas “pegava” até notícias do Japão. Só havia necessidade de paciência. Ao ser ligado pela manhã demorava uma infinidade para aparecer o som, porque as válvulas tinham que esquentar.

A Copa do Mundo era a sensação da época, como é até hoje. Os adultos não perdiam um jogo sequer, principalmente quando a Seleção Brasileira passou na fase eliminatória e foi para as oitavas de final. Venceu a Rússia – na época União Soviética –, enfrentou e venceu a Inglaterra, passou pela França na semi-final e a grande decisão se daria com a Suécia, time da casa.

“Placaaaar em Estocolmo na Suécia…. Brasil 5, França 2, estamos na grande final, podemos ser os campeões do mundo”, era o que dizia no rádio, com sua voz potente um locutor cujo nome acho que era Edson Leite, se a memória não me engana. A grande sensação da Copa era um menino, com 17 anos de idade, que saiu da reserva para entrar no jogo contra a Rússia. Substituía o grande Dida, ídolo e goleador do time. Nos primeiros minutos do jogo o menino já mandou uma bomba contra a trave do time russo, fazendo balançá-la fortemente. Pelo menos era isso que dizia o locutor: “na trave… na trave… na trave…na traaave…, que balançou… balançou, balançooou…”. Na minha imaginação infantil ficava pensando nas únicas traves de gol que conhecia, nos campos de várzea, feitos com fino eucalipto, que realmente balançavam até com um vento mais forte.  Pensava que em Estocolmo, na Suécia, as traves também fossem tão finas que literalmente balançavam com o impacto da bola.

O menino-sensação que fez balançar as traves do campo e os corações dos torcedores, era aquele que seria, em futuro muito próximo, o Rei do Futebol, o ser humano mais conhecido do planeta, o homem que fez curvar diante de si reis e rainhas, presidentes e ministros; que fez parar uma guerra na África para que os soldados pudessem ver sua arte: o Rei Pelé.

E foi naquele ano que começou sua história. Campeão do mundo aos 17 anos de idade, autor de dois dos cinco gols que o Brasil enfiou no dono da casa, a poderosa seleção da Suécia. Por muitos e muitos anos foi o único homem que reinou sem limites territoriais, no mundo inteiro. Por onde passava sua arte era venerada e aplaudida.

Na década de 1960, no auge de sua fama e de sua glória, cujo apogeu se deu em 1970, quando o Brasil conquistou definitivamente a famosa “Taça Jules Rimet” nos campos do México, surgiu em cena, em todos os noticiários da imprensa, nacional e internacional, uma jovem professora, linda, cabelos negros, pele alva, de sorriso tímido que encantou a todos os brasileiros. Era a noiva, futura esposa do Rei, a futura Rainha do Mundo: Rosemeri Cholbi, que seria, em breve, Rosemeri Cholbi Nascimento, a mulher do Rei Pelé.

Minha admiração pela Seleção Brasileira foi tão marcante na minha infância que guardei na memória, até hoje, 48 anos depois, a escalação do time que venceu a Suécia na final: Gilmar, Djalma Santos, Bellini, Orlando e Nilton Santos; Zito e Didi; Garrincha, Vavá, Pelé e Zagalo. Essa admiração, mais forte em relação ao menino-sensação, estendeu-se à sua futura esposa, a jovem e simpática professora Rosemeri.

Capítulo 2

Um filho na cadeia

Fui conhecer Rosemeri Cholbi pessoalmente no final de 2005, em uma situação especialmente dramática para sua vida: seu filho Edinho fora preso com a acusação de que teria ligações com pessoas pertencentes a uma quadrilha de tráfico de entorpecentes. Depois do estardalhaço que a imprensa costuma fazer ante a prisão de alguém conhecido, Edinho permaneceu retido pela polícia civil de São Paulo por vários dias, mais do que o usual. O normal é a transferência, em um ou dois dias, para uma das unidades da secretaria da Administração Penitenciária. Só depois de muitos dias pediram a vaga para ele, com a advertência de que havia necessidade de especial cuidado, pois o PCC teria “decretado” sua morte.

Era uma situação que exigia especial cautela: seria insustentável perante a opinião pública, do Brasil e do mundo, que o filho do Rei Pelé sofresse algum atentado contra sua vida, ou, pior ainda, que perdesse a vida enquanto custodiado pelo Estado. Buscando informações no sistema penitenciário, descobri que a ameaça era real e séria: corria em todos os presídios a notícia de que Edinho seria morto, porque um dos integrantes da quadrilha teria inimizade com alguém importante dessa famigerada facção criminosa.

Por cautela e visando a preservar sua vida, designei o Centro de Readaptação Penitenciária de Presidente Bernardes – o presídio mais seguro do País – para recebê-lo. Sabia que a decisão não era rigorosamente justa e nem jurídica, porque naquela unidade vigora o RDD – Regime Disciplinar Diferenciado. Edinho nada havia feito que justificasse receber um tratamento disciplinar mais rigoroso que um preso comum. No entanto, acima da questão jurídica e da justiça, havia a questão da vida. Tinha que tomar todas as providências para preservar sua vida.

E foi com ele recolhido em Presidente Bernardes que recebi na secretaria da Administração Penitenciária a visita de Rosemeri Cholbi Nascimento, ex-mulher do Rei Pelé, mãe de Edinho. Mais de 40 anos se passaram da época em que a conheci pelas fotografias dos jornais e das revistas. A jovem professora com cabelos negros estava agora uma distinta senhora com cabelos brancos, conservando a beleza, realçada pela serenidade de sua fisionomia. O sofrimento pela prisão do filho era evidente, mas não marcava seu rosto, cuja altivez e dignidade foram integralmente preservadas. Estava acompanhada de sua nora, mulher de Edinho, esta sim com o rosto cansado e marcado pelo sofrimento.

Procurei ouvi-las com atenção e demonstrei solidariedade diante do que estavam passando, como sempre fiz com os parentes de presos que me procuraram. Talvez tenha dispensado uma atenção um pouco maior do que a normal. Nenhum exagero, porém, a que muitos são levados diante de celebridades. Não costumo fazer esse tipo. Não trato mal os famosos, mas também não os recebia com subserviência – triste papel a que muitas autoridades acabam se submetendo. Ouvi a ambas e as atendi no que foi possível atender.

*     *     *     *

Agora, ao escrever estas anotações, tomei a iniciativa de pedir para a senhora Rosemeri conversar comigo. Sempre tive vontade de escrever sobre o verdadeiro significado do inciso XLV, do art. 5º da Constituição Federal, que diz: “nenhuma pena passará da pessoa do condenado….”.  Essa garantia constitucional que visa preservar as pessoas próximas ao preso, não passa de ficção, porque os familiares são talvez os que mais sofrem diante da privação da liberdade do ente querido, filho, pai, mãe, irmão, seja quem for. A pena, queiramos ou não, ultrapassa a pessoa do condenado e atinge sempre de forma irreversível muitas pessoas que nunca cometeram delito e que não têm nenhuma responsabilidade por aquela situação. Testemunhei centenas, milhares de parentes de presos nas filas das visitas aos presídios, sofrendo de forma atroz as conseqüências da aplicação da pena.

Nunca vi nada publicado abordando esse lado da dramática situação, principalmente descrevendo o sentimento das pessoas que vivem esse drama. Às vezes o mal que a pena de prisão gera é muito superior aos benefícios que pretende trazer.

Portanto, para ouvir esse lado, de uma pessoa conhecida pela sociedade, cuja credibilidade ninguém colocará em dúvida, é que tomei a liberdade de convidar aquela que foi a esposa do Rei do Futebol, e que está agora sofrendo, como todas as mães, pela prisão do filho.

Capítulo 3

A entrevista com a mãe de Edinho

Rosemeri gentilmente atendeu meu convite e veio até meu apartamento em São Paulo. Na hora marcada ela chegou, vestida sobriamente com um conjunto negro, tendo no pescoço um xale levemente colorido. Pareceu-me um pouco mais magra do que da última vez em que estivemos juntos na secretaria.  Expliquei a ela o intuito do nosso contato e para que  entendesse como seria a introdução do capítulo com seu nome, li as três primeiras páginas que já havia rascunhado. Ela achou engraçada a parte das alpargatas roda, que também eram do seu tempo.

Tive nítida sensação de que ela não via motivos para desconfiar de mim. Conversamos longamente e ela aproveitou para fazer um desabafo: tanto da situação de seu filho, que entende extremamente injusta, como também do RDD, que a seu ver é cruel e desumano. Antes de entramos no assunto principal da conversa, Rosemeri não conteve sua curiosidade e me perguntou:

— “Foi o Geraldo Alckmin quem criou o RDD”?

Expliquei a ela, rapidamente, os motivos e as circunstâncias da criação do regime e prometi enviar depois o texto que tenho escrito sobre isso. Esclareci que o governador Alckmin não teve participação na elaboração da resolução que criou o RDD, pois o assunto era de minha inteira responsabilidade. Ela ainda permaneceu inconformada, dizendo que não podia compreender como alguém com o meu perfil pudesse ter criado um regime tão duro.

Volto a pensar como a administração penitenciária é difícil. Definitivamente desagrada a todos: desde aqueles que querem humanizar o cumprimento da pena, até os que sustentam ainda mais endurecimento. Desagrada presos, seus parentes e familiares, ideólogos de direita e de esquerda. A prisão, enfim, não agrada a ninguém.

Iniciamos a conversa e perguntei como tem sido sua vida como mãe de um preso.

— “Em primeiro lugar, gostaria de dizer que fiquei surpresa quando o senhor quis saber da minha reação de mãe que tem um filho em uma penitenciária, porque acredito que minha família não pode ser considerada típica. O pai do meu filho é uma pessoa famosa, fato que traz em si uma série de privilégios e consequências. Além disso, meu filho é apenas acusado e as provas que apresentaram contra ele são incompletas mesmo de acordo com a promotoria; ele nunca foi julgado e já está preso há quase um ano e meio. Isso acresce ao sofrimento, ao desespero, a sensação de impotência. Depois que passou o primeiro perigo, a ideia de perigo dele ser atacado por gangs ou morto por algum grupo organizado, por que ele continuou preso? Por que ele ainda está preso? Ele foi solto em dezembro, ficou 40 dias em liberdade e foi preso de novo. Ele está cumprindo pena sem ter sido provada nenhuma culpa.  Tanto as acusações não são suficientes que levou um ano de três meses para a promotora chegar à base das evidências que mostraram o envolvimento de oito policiais. Então, evidentemente, quando ela mandou prender meu filho, não tinha todas as evidências. A única coisa que ela tem são conversas em gíria pelo telefone, sem mencionar nada sobre compra ou venda de drogas. Nada a ver com nada. Mas o primeiro choque que atingiu a família inteira foi o período em que Edinho passou no Denarc. Foram 21 dias sem ver o sol, dormindo no chão, num armário. Não tinha janela, rodeado por biombos finos e policiais fazendo ameaças. O mesmo cidadão, cujo nome não vou dizer, vinha falar que estava fazendo de tudo para que meu filho pudesse voltar para casa. Em seguida ia a programas de TV de baixo nível para dizer que ele é criminoso, traficante. O mesmo homem, o mesmo homem… Ele fez isso na única vez que pude visitar meu filho. Veio falar comigo com aparente civilidade e em seguida foi à televisão para proferir ofensas. Ele só não o chamou de “santo”. Só pude visitá-lo uma única vez, escondida durante a madrugada. Também não entendo isso. No dia seguinte, vários parentes e não-parentes fizeram visitas pela porta da frente e só eu tive que entrar pela porta dos fundos, na madrugada, escondida de todos”.

— Gostaria que a senhora contasse um pouco qual foi sua reação ao tomar conhecimento da notícia da prisão.

— “Imediatamente foi desespero. Olha, eu conheço meu filho, ele praticamente foi criado só por mim. E eu conversei com ele. A educação dele fui eu que dei. Por isso sei quando ele está falando a verdade, quando responde para mim. Eu tenho confiança nele e ele tem confiança em mim. Sei que é suspeito uma mãe dizer isso, mas eu sei quando ele está dizendo a verdade. Perguntei e ele respondeu: mãe, eu não fiz nada, não comprei e nem vendi nada. Só conheci esse moço (referindo-se ao chefe da quadrilha, Naldinho) faz quatro meses, depois tem prova disso, o depoimento da pessoa que o apresentou a ele. Eu estava ajudando ele a perder peso, estava incentivando a fazer operação do estômago. Não tenho nada a ver com isso que estão me acusando. Então pra mim eu sabia que ele era inocente. Escutava pela imprensa oficiais dizendo: ele faz parte da gang; faz parte da gang; Edinho é da gang. Aquilo foi um choque terrível”.

— Na época a senhora morava no exterior?

— “Eu ainda moro no exterior. Mas eu nunca mais saí daqui e nunca mais vou sair daqui enquanto… Eu sou residente em Nova Iorque e estava apenas visitando meus familiares. Pretendia voltar em uma semana, porque era aniversário da minha outra neta que mora lá. Não vou sair daqui enquanto meu filho não estiver livre, com seu passaporte nas mãos, com sua ficha limpa, com sua liberdade restaurada”.

*     *     *     *

A esta altura não pude deixar de pensar como a prisão altera profundamente a vida dos que estão ao redor de quem é preso. Penso também o quanto é importante a rapidez da decisão judicial. É certo que o processo, muitas vezes difícil de ser instruído, demora muito mais que o desejo dos juízes que o conduzem. No entanto, é preciso ver e sentir o lado dos que são atingidos pela demora. Enquanto não existe a palavra oficial do Estado reconhecendo a culpa ou a inocência do acusado, a revolta que essa situação provoca é muito grande. Não é à toa que a Constituição Federal determina que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória” (art. 5º LVII). Apesar disso, por longos meses, às vezes anos, as pessoas ficam sofrendo, têm que mudar de vida, de país, e ficam aguardando pacientemente a sentença judicial.

*     *     *     *

— “A minha reação, — prosseguiu Rosemeri —  meu sentimento pessoal foi… É uma coisa estranha de dizer, mas foi como um luto. Na época eu tirei tudo do meu guarda-roupa que tinha cor. Eu não conseguia usar nada com cor. Eu destruí todos os meus projetos. Eu gosto muito de tecnologia e trabalhava muito com computador, com fotografia. Eu destruí tudo… até o livro que escrevi. Para mim a vida tinha acabado ali. Perdi 8 quilos em 15 dias, sem tentar. Foi um sofrimento indescritível”.

— E a mulher e os filhos de Edinho?

— “Suas filhas são muito ligadas a ele. Hoje uma tem 7 e a outra 4 anos. São ligadíssimas a ele; de brincar todos os dias com ele, de adormecer com ele ao lado, de acordar com ele ao lado… Essas meninas sofreram demais, estão hoje transformadas, perderam a cor e emagreceram. São hoje meninas tristes, muito tristes… A esposa dele também está muito abalada. No começo, no primeiro momento, a família toda se uniu… A família nuclear, eu ele e minhas filhas, a família inteira se uniu. Minha filha veio imediatamente de Nova Iorque. A família distante também se uniu. Conforme o tempo foi passando, a frustração de cada um foi fazendo… — vou falar de mim, mas imagino que aconteceu com todos, pois todos reagiram da mesma forma – foi fazendo que todos perdessem a paciência um com o outro. Foi fazendo a gente não agüentar nada um do outro. Aquela união foi se quebrando… Todo mundo estava com tudo muito doído. Ainda está tudo muito doído. Não dá para ter nenhum contato social. É como uma ferida aberta…”

— Imagino que a senhora pensava que em alguns dias, no máximo uma semana, estaria tudo resolvido?

— “O advogado falou, quando ele foi levado preso: ele volta hoje de noite. Não voltou. Amanhã de noite ele volta. Não voltou. Assim passou uma semana e eu passei a não acreditar mais. Estava fora do seu controle. Hoje, olhando para trás, vejo como a dinâmica é interessante. No começo a gente se une e pensa que pode conseguir a liberdade rapidamente. Depois vamos vendo que não temos poder para isso. No afã de conseguir a liberdade, o tempo vai passando e a frustração crescendo. E em cima vem… vem…”

Interrompeu o relato que vinha fazendo e para descrever o que vinha depois, ela parou. Parecia estar escolhendo a palavra correta que iria usar e eu tentei ajudá-la, sugerindo: “vem a revolta”.  Não era isso.

— “Não quero pôr culpa nenhuma na sua posição, mas vem a humilhação e os maus tratos que a gente recebe quando vai fazer a visita. É uma coisa que… Eu quero lhe pedir uma coisa pessoalmente, mesmo que nunca mais tenha nada a ver com penitenciárias, com prisões. Eu gostaria que alguém se dedicasse a um estudo do tratamento de visitantes nas penitenciárias”.

— Deve ser o problema das revistas íntimas, cortei sua exposição, certo de que seria isso.

— “Não é isso. A revista em si é problema só da primeira vez, porque a gente não conhece, não sabe como é, não tem idéia do que vai acontecer. É um choque. Mas a revista faz parte da precaução”.

*     *     *     *

A resposta me surpreendeu, pela lucidez e pela compreensão de que a revista íntima é feita por rigorosa necessidade de segurança. Confesso que não esperava essa compreensão e nem essa resposta. Imaginava que o fato de ter de retirar as roupas e se submeter, perante estranhos, a uma revista fosse a coisa mais humilhante de todas. Aí é que está o equívoco: quando as pessoas fazem o que é justificável, não geram revolta. A revolta e o sentimento de humilhação vêm quando se faz algo sem necessidade, sem justificativa, pelo simples prazer de fazer o mal, de humilhar… Por isso é que Rosemeri se sentiu atingida quando o policial prometia uma coisa e em seguida ia à TV para dizer outra. É esse tipo de coisa que o ser humano não aceita: a mentira irresponsável, a maldade pela maldade. Quando uma ação envolve em si um mal, mesmo assim será compreendida se houver uma justificativa a ampará-la.

— “O difícil é a humilhação que a maioria, não todos, faz o visitante passar: a humilhação pessoal; a humilhação que é feita com um sorriso nos lábios. Eu entendo que é um jogo de poder. Eles fazem questão de mostrar que o poder está nas mãos deles. O visitante não está pedindo nada além de se avistar com a pessoa amada, mas alguns servidores fazem questão de humilhar, só para mostrar que mandam”.

Efetivamente é uma coisa para se pensar. Não só para se pensar, mas para sugerir aos futuros administradores penitenciários: a busca de uma fórmula para evitar essa humilhação camuflada, dificilmente comprovável em uma sindicância ou em um processo administrativo. Como demonstrar um sorriso sarcástico, dissimulado, maldoso, pequenos gestos, algumas palavras que podem ferir mais que uma espada afiada? Essa questão nunca me foi colocada, ao menos dessa forma, enquanto estive na secretaria. Sabia das humilhações que os visitantes passam, mas imaginava que o problema maior estivesse na revista íntima, quando, na verdade, a questão é mais grave. Há funcionários que, deliberada e maldosamente, fazem os visitantes sofrer pelo simples prazer de mostrar poder.

Não sei exatamente qual é a fórmula de se corrigir isso, mas certamente o caminho está, de novo, em recorrer ao auxílio da comunidade para vencer mais este desafio. As pessoas de fora do funcionalismo público podem ajudar a manter a neutralidade e o respeito com as visitas dos presos. Os servidores acabam, com o tempo, se contaminando com a disputa diuturna pelo espaço de poder dentro das prisões. Além disso, os interesses conflitantes em jogo acabam criando esse clima de animosidade, ficando de um lado os servidores e de outro os presos e seus parentes. É preciso que existam pessoas trabalhando nas prisões sem envolvimento no clima de conflito.

Outra providência seria fazer pesquisa, em todas as semanas após o encerramento das visitas, para ouvir dos visitantes como foi o tratamento recebido. Certamente o resultado será diferente de uma unidade para outra. Medidas corretivas poderiam ser tomadas naqueles locais onde o problema se apresenta de forma mais grave.

*     *     *     *

Rosemeri prosseguiu em seu relato sobre o que passou após a prisão de seu filho. A reclamação voltou para o RDD:

— “Minha primeira visita depois da remoção do meu filho do Denarc se deu em Presidente Bernardes. Apesar dele ter ido lá com o argumento de que seria para sua proteção, recebeu um tratamento de criminoso de alta periculosidade. Por isso, ficou em solitária durante trinta dias, sem contato com ninguém. Isso para mim era uma contradição: ele foi para lá para proteção, mas ninguém avisou na penitenciária que meu filho não era um criminoso de alta periculosidade. O diretor não acatou esse conceito de que ele não era um criminoso de alta periculosidade”.

Tentei explicar:

— Não havia sustentação jurídica para a internação de seu filho para proteção. Logo, tive que usar, ainda que para proteção, a motivação de que, pertencendo a uma quadrilha perigosa, ele era também era perigoso…

— “Eu entendo. Eu entendo. Sou da filosofia de que, na vida, tudo o que fazemos está predeterminado, nem certo e nem errado. A gente faz porque tem que fazer. Por isso, não culpo a promotora e nem o juiz de Praia Grande, eu não ponho a culpa em ninguém. Esse é um pedaço que nós tínhamos que passar na vida. Eu não culpo, portanto, sua decisão e nem sua opção de mandar meu filho para lá, de forma alguma. Mas eu quero que o senhor compreenda minha situação: meu filho que não tinha cometido nada,  foi tratado literalmente como um criminoso de alta periculosidade, tanto que nos cinco meses de sua permanência em Bernardes não tive nenhum contato físico com ele. As visitas eram feitas com uma gradinha nos separando, onde só dava para passar um dedinho no meio. Então eu só podia encostar o dedinho nele. No entanto, quando o pai dele esteve lá, a visita foi feita em uma sala. Além das coisas de fora (os aborrecimentos), ainda tinha esse tipo de coisa”.

Esse comentário me faz repensar várias coisas. A primeira é a necessidade de melhor comunicação entre a administração pública e as pessoas atingidas pelos atos dessa administração. Por falta de melhor explicação sobre as razões dos atos e por mais bem intencionados que sejam esses atos, as pessoas não os compreendem. Na verdade, as explicações, neste caso, foram dadas ao advogado que representava o Edinho. Só que, vê se agora, não chegaram ao destinatário com a fidelidade que deveriam chegar. O segundo ponto: como dar melhores explicações para milhares de presos novos que entram no sistema? São cerca de 4 a 5 mil todos os meses. A resposta é óbvia: os servidores precisam ser melhor treinados. No momento da inclusão, especialmente quando se trata de alguém que está sendo preso pela primeira vez, todos os pontos precisam ser minuciosamente explicados, à exaustão, inclusive para os familiares.

Essa providência, na verdade, tentamos introduzir, com o treinamento dos assistentes sociais e psicólogos em vários seminários e cursos. A entrevista de inclusão e o preenchimento de formulários, com minuciosa descrição do contato entre o técnico e o preso foram assuntos em que mais nos empenhamos. No entanto, o resultado foi pífio. Se nem a ex-mulher do Pelé foi suficientemente esclarecida, fico eu a pensar: e os demais?

*     *     *     *

— Perante as pessoas de seu relacionamento, dos amigos do Edinho, a prisão gerou algum tipo de preconceito, ou a senhora sentiu mais reações de solidariedade? – perguntei.

— “Foi de total e absoluta solidariedade. Eu moro hoje no apartamento em que meu filho morava. Minha vizinhança inteira adora o Edinho. Pelo menos 10 pessoas de lá ainda têm a camisa de goleiro do Santos que o Edinho andou dando de presente. Pelo menos uma vez por semana eles usam essas camisas e fazem questão de mostrar para mim, dizendo: olha, estou usando de novo. Todos eles acreditam na inocência do meu filho. Eles pensam que deve existir algum outro motivo, alguma outra razão para a prisão. Todos, ainda que não falem, sabem que o fato dele ser filho de pessoa famosa, pode estar ajudando alguém, a gente não sabe quem. Não sei se era para pegar a gang, se é interesse de promoção pessoal; não sei se alguém teria coragem de fazer isso, mas a verdade é que ninguém duvida de sua inocência”.

—- E a situação dele hoje, no presídio de Tremembé, certamente está melhor do que em Bernardes?

—- “A diferença é da água para o vinho. Não que se trate de vinho de boa qualidade, um francês de safra, mas a diferença é enorme. O fato dele ter contato com outros seres humanos, de ter um companheiro de cela, é muito importante”.

— E a nova prisão, depois do período em que ele esteve solto?

— “Na manhã do dia em que foi preso pela primeira vez, Edinho tinha uma reunião com o presidente do Santos Futebol Clube, porque estava contratado para organizar as equipes menores. Ele ia tomar conta das equipes menores. Na segunda vez ele tinha seu primeiro dia de trabalho junto com o Luxemburgo, que é o técnico do Santos. Não pode ir, porque foi preso. A frustração foi maior ainda, porque estava começando a reconstruir sua vida”.

*     *     *     *

Falamos ainda sobre várias outras coisas. Algumas banais e outras muito sérias. Algumas das suas revelações sobre fatos que eu já desconfiava que tivessem ocorrido, infelizmente não podem ser escritas porque não podem ser provadas. A conversa foi muito instrutiva para mim. Embora esteja lidando com presos há tantos anos e tenha mantido contato com inúmeros parentes, a cada novo dia mais vamos aprendendo. A pena de privação da liberdade precisa ser repensada pela humanidade. Tenho afirmado e reafirmado: a prisão deve ser reservada a quem efetivamente oferece risco físico para os semelhantes. Quando se trata de outro tipo de perigo, outras alternativas de punição precisam ser encontradas. Para a prisão cautelar é preciso muito mais cuidado ainda, pois é decretada sem base em culpa comprovada. Ao final do processo pode vir o reconhecimento da inocência. As dramáticas conseqüências na vida do preso e de seus familiares jamais poderão ser consertadas.

É este o registro da conversa com Rosemeri Cholbi Nascimento.

Certamente seu sofrimento não é muito diferente do sofrimento de milhares de outras mães. Certamente não é muito diferente do drama que o pai famoso está passando. Com relação a ele, eu imagino, ainda existe o problema adicional de não poder visitar o filho com a mesma liberdade dos cidadãos anônimos. Por onde vai, a presença do Rei Pelé ainda provoca alvoroço, movimenta a imprensa e gera notícias sensacionalistas. Deve ser uma situação de extraordinária angústia e sofrimento.

Para terminar, sintetizando no que consiste esse sofrimento, transcrevo a mensagem que Rosemeri me enviou respondendo o e-mail de agradecimento que lhe enviei:

“No caminho de volta pensava no que me faz ficar triste de preocupação com meu filho e cheguei a esta lista:

Quando faz frio, porque onde ele está é muito mais frio;

Quando faz calor, porque lá é muito mais quente e ele trabalha ao relento;

Quando deito na cama limpa e macia;

Quando saio de casa;

Quando faço uma refeição;

Quando penso nas minhas netas;

Quando penso nos outros netos e fatalmente os comparo;

Quando abro o chuveiro quente no inverno;

Quando entro num supermercado e vejo coisas que ele gosta;

Quando escuto uma música;

Quando vejo esportes na TV;

Quando leio nos sites oficiais que muita gente foi julgada e condenada por crime hediondo e podem aguardar os recursos em liberdade;

Quando ele diz que está agüentando;

Quando ele não fica bravo para não me preocupar;

Quando leio sobre alguma novidade eletrônica e não posso contar para ele;

Quando acaba a visita e eu tenho que sair e ele fica;

Quando abro os olhos, e

Quando fecho os olhos”.

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