Execução penal

A burocracia da execução penal

Pular para conteúdo
Whatsapp
comentários

Capítulo 1

Encontros de Execução Penal e Administração Penitenciária

A administração penitenciária tem intenso relacionamento com juízes de Direito, promotores de Justiça, advogados e procuradores do Estado que atuam nas Varas de Execução Criminal. Relaciona-se também com as polícias militar e civil. Essas relações são extremamente complexas, porque as ações de uns têm direta consequência na área dos demais. A Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984) procurou definir a competência e as responsabilidades das instituições que atuam na execução da pena, tanto nas penas privativas da liberdade, como nas demais.

Para facilitar o entendimento aos leigos, farei uma brevíssima explicação sobre como funcionam essas relações. A partir do momento em que uma pessoa comete um crime, a responsabilidade pela apuração da autoria é da polícia civil. Havendo prisão em flagrante, o autor do crime é recolhido imediatamente em uma cadeia pública ou em um centro de detenção provisória para [simple_tooltip content=’Se o crime não for grave, aguarda o julgamento solto.’]aguardar o julgamento[/simple_tooltip]. Não havendo flagrante, normalmente o réu fica solto, salvo se for decretada a prisão preventiva, o que acontece somente nos casos mais graves ou quando o acusado representa sério risco para a sociedade.

Portanto, desde o momento em que ocorre a prisão, em flagrante delito ou preventivamente, começa o trabalho da secretaria da Administração Penitenciária, que tem a responsabilidade de assegurar ao preso todos os direitos previstos na Lei. Começam também as atividades dos promotores de justiça, dos advogados e dos juízes criminais. Não tendo o preso condições de pagar advogado, o Estado, por meio dos procuradores, presta a chamada [simple_tooltip content=’Procurador do Estado é o advogado que representa o Estado.’]assistência judiciária[/simple_tooltip].

Esse processo que se instaura para o julgamento da pessoa acusada tramita nas varas criminais e tem o nome técnico de “processo de conhecimento”. Nele atuam o promotor na acusação, o advogado na defesa e o juiz, conduzindo o processo até a decisão. Proferida a decisão, as partes podem recorrer aos tribunais, que têm a função básica de verificar se a sentença de primeira instância está correta e se as formalidades legais foram observadas.

Depois de esgotados todos os recursos previstos na Lei, inicia-se o “processo de execução”. Nessa fase também atuam juízes, promotores e advogados. O processo, que antes estava em uma vara criminal, passa a tramitar em uma vara de execução criminal – VEC. Essa execução penal [simple_tooltip content=’Artigo 1º da Lei de Execução Penal.’]“tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado ou internado”[/simple_tooltip].

O preso que aguardava julgamento em uma cadeia ou em um centro de detenção provisória, vai para uma penitenciária ou para colônia (agrícola ou industrial) a fim de cumprir a condenação, ou seja, para “efetivação da sentença”.

No processo de execução cabe ao promotor fiscalizar a execução da pena e da medida de segurança (art. 67 da LEP). Aos juízes e tribunais a responsabilidade de decidir todas as questões da execução penal em conformidade com a Lei de Execução Penal e do Código de Processo Penal (art. 2º da LEP). A secretaria da Administração Penitenciária deve promover a execução penal no âmbito administrativo e proporcionar condições para a reinserção social do condenado e do [simple_tooltip content=’Internado é aquele que recebe medida de segurança, por ser inimputável – louco, para facilitar o entendimento.’]internado[/simple_tooltip].

*     *     *     *

Por essas razões o relacionamento entre diretores de presídios, juízes, promotores e advogados é intenso. É sobre essa complexa relação que pretendo falar neste capítulo.

A secretaria da Administração Penitenciária, portanto, diferentemente das demais secretarias, não pode agir conforme a conveniência e oportunidade, seguindo apenas a política determinada pelo governador. Além de seguir as determinações do governador, é fiscalizada pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário; deve cumprir as decisões judiciais e está sujeita à corregedoria judicial, ou seja, [simple_tooltip content=’Artigo 66, VII da Lei de Execução Penal.’]os juízes podem corrigir, diretamente, o que entenderem inadequado nas unidades prisionais[/simple_tooltip].

Acontece, porém, que juízes e promotores, por força da natureza das relevantes funções que exercem, são independentes na sua atuação. No Estado de São Paulo [simple_tooltip content=’São cerca de 33 Varas de Execução Criminal.’]existem várias varas de execução criminal, cada uma com pelo menos um juiz e um promotor[/simple_tooltip]. Como o Direito não é uma ciência exata e as Leis comportam interpretações, os juízes de uma comarca costumam decidir de forma diferente dos juízes de outras. Às vezes isso ocorre na mesma vara onde trabalham mais de um juiz. Para que o leitor entenda a complexidade dessa situação, basta dizer que no Supremo Tribunal Federal, onde existem 11 ministros, em recente interpretação da Lei dos Crimes Hediondos, cinco votaram em um sentido e seis em outro. Muitos juízes de São Paulo estão seguindo a orientação vencedora, ao passo que outros seguem a corrente vencida.

Tudo isso é normal e permitido pelo Direito. Porém, no dia-a-dia das penitenciárias, essa situação, que para a ciência jurídica é normal, acaba gerando questões de difícil compreensão, especialmente para os presos, em sua grande maioria com pouca cultura. Imaginemos que duas pessoas foram condenadas por tráfico de entorpecentes ao cumprimento da pena de três anos de reclusão. Se o processo de execução estiver sob a direção de juízes diferentes, pode acontecer do condenado “A” ficar dois anos preso e o condenado “B” apenas um. Isto ocorre porque um dos magistrados segue a orientação vencedora no Supremo Tribunal Federal, ao passo que o outro, a corrente vencida.

Sob o ponto de vista jurídico não haverá injustiça, porque o sistema funciona assim e é normal que seja assim. Será razoável, no entanto, esperar que o preso “B” compreenda essa situação e aceite cumprir o dobro da pena de seu colega, condenado pelo mesmo crime?

Essas situações acontecem todos os dias nas penitenciárias e geram muita revolta. Revolta tímida de alguns e violenta de outros. Muitas rebeliões surgem por conta disso. Os diretores não conseguem explicar aos presos o porquê de funcionarem assim as coisas.

*     *     *     *

Para tentar encontrar uma forma razoavelmente uniforme de se executar a pena e para explicar aos juízes, promotores e procuradores as dificuldades que os diretores enfrentam, decidi promover um encontro convidando todos esses personagens, para ampla discussão sobre o tema e para conhecimento mútuo das dificuldades. Demos ao evento o nome de “Encontro de Execução Penal e Administração Penitenciária”.

A preocupação da minha assessoria era enorme. Diziam, brincando, que seria quase igual misturar presos de facções inimigas num mesmo local. Certamente aconteceriam fortes discussões e, talvez, até brigas.

Resolvi correr o risco.

Conseguimos uma verba junto ao Ministério da Justiça que custearia praticamente todas as despesas do evento para cerca de 130 pessoas. O local teria que ser muito bem escolhido. Entrei em contato com Chieko Aoki, presidente do Grupo Blue Tree, que possui uma rede fantástica de hotéis. Ela fez um preço especial para um dos seus hotéis cinco estrelas, na cidade de Mogi das Cruzes.

Havia verba e local. Os diretores penitenciários e advogados da [simple_tooltip content=’Fundação de Amparo ao Preso, cujo nome correto é “Fundação Professor Doutor Manoel Pedro Pimentel”.’]Funap[/simple_tooltip] compareceriam, bastaria convocá-los. Será que os juízes, promotores e procuradores iriam, com simples convite? Como saber? Fui falar com o Presidente do Tribunal de Justiça, com o Procurador Geral de Justiça e com o Procurador Geral do Estado. Após expor os motivos da iniciativa, perguntei se estariam dispostos a convocar seus membros para o evento. Os três acharam ótima a ideia e se dispuseram a fazer a convocação. A presença das 130 pessoas estava, pois, garantida.

A organização de um encontro como esse é muito complexa. Começava pela questão da distribuição dos participantes nos apartamentos. Muitos não aceitam dividir os cômodos com estranhos. Isso aumentava as despesas. Havia ainda o problema da locomoção até o local do evento, pois alguns viriam de distantes comarcas, com mais de 500 quilômetros. Não era razoável marcar para um final de semana, porque haveria reclamação. Além dessas questões havia ainda a escolha dos palestrantes, dos temas, das reuniões em grupo, das conclusões do encontro.

A nossa experiência nesse tipo de evento se limitava a alguns seminários com pessoas da própria secretaria, o que simplificava sobremaneira os problemas. Nestes seminários os participantes, todos subordinados ao secretário, não teriam a ousadia de reclamar, ainda que ficassem insatisfeitos. Agora não. Viriam pessoas de outras instituições, na qualidade de convidadas. Pessoas sofisticadas, diria até que algumas eram sofisticadíssimas. Era preciso todo cuidado nos mínimos detalhes.

O ideal era contratar alguma empresa especializada na organização, mas para poupar despesas achei melhor usar o nosso pessoal mesmo. Convoquei o professor Francisco de Assis Santana, diretor da Escola de Administração Penitenciária, Rosangela Sanches, da assessoria de imprensa e Fabiane, chefe da Assessoria Técnica do Gabinete para que se incumbissem da organização. Fizeram várias reuniões e não se esqueceram de nada. A organização foi primorosa e o hotel ajudou: era um cinco estrelas para ninguém botar defeito.

Da minha parte participei apenas da escolha dos temas a serem abordados. Procuramos escolher assuntos práticos que trouxessem imediatas consequências benéficas no dia-a-dia de todos. Pedi para contratar um palestrante de fora da área jurídica, que tivesse habilidade para “quebrar o gelo” inicial. O escolhido foi Alfredo Rocha, um especialista em motivação empresarial, respeitado e admirado.

*     *     *     *

Marcamos a recepção para o início do Encontro em uma quarta-feira, dia 12 de novembro de 2003, a partir das 18 horas, com um coquetel regiamente servido, para que todos realmente começassem a “quebrar o gelo”. Os trabalhos seriam oficialmente instalados na quinta-feira pela manhã e terminariam ao meio dia de sexta-feira, quando todos seriam liberados após o almoço. Para a noite da quinta-feira programamos música alegre e ambiente descontraído. A Polícia Militar montou forte aparato de segurança, inclusive com uso de helicópteros. Afinal, juízes e promotores responsáveis pelos processos dos presos mais perigosos do Estado estariam ali reunidos e não convinha facilitar.

Os cuidados com a segurança foram tão providenciais que uma juíza só saiu do Encontro após fortemente escoltada por várias viaturas e com o helicóptero sobrevoando seu itinerário.

Durante a recepção coloquei uma bermuda e camiseta e fiquei ali na entrada junto com o Neto, meu secretário adjunto, com os coordenadores e assessores dando as boas-vindas aos convidados. Uma coisa simples como essa acaba trazendo um resultado muito positivo. Uma juíza amiga me contou depois que o fato de eu estar ali no meio de todos, conversando informalmente, causou surpresa aos presentes, pois imaginavam que o secretário só fosse aparecer na abertura solene do evento, como acontece com frequência. Minha postura, segundo essa amiga, serviu para “amolecer” os que estavam duros, intransigentes e, alguns, até mal humorados.

*     *     *     *

No dia da abertura, faltando cerca de 15 minutos do horário marcado, telefonei para minha casa para saber das novidades e descobri que o Arthur, meu filho do meio, havia batido o carro em um muro, machucara-se levemente e ainda estava no hospital. Essa notícia deixou-me seriamente abalado. Queria estar em Bragança para acompanhá-lo no hospital e também para lhe dar umas broncas. Bater em um muro… Só podia ter sido imprudência, excesso de velocidade ou bebedeira. Fui injusto. O acidente ocorreu por culpa de outro motorista.

Normalmente fazia meus discursos de improviso, porque dava mais naturalidade e transmitia mais sinceridade. Nesse dia, felizmente havia levado um pequeno rascunho do que deveria falar. Diante da notícia do acidente não conseguia concentrar meu raciocínio e tive que ler as minhas anotações. Acho que foi um péssimo discurso: frio, formal, distante. Não sei se alguém percebeu, mas como era apenas uma manifestação na abertura solene, deve ter passado sem chamar muito a atenção. Representando o Poder Judiciário falou o juiz Paulo Sorci; pelo Ministério Público discursou Rodrigo Pinho, na época chefe de gabinete do Procurador Geral. A procuradora Maria Rita representou a Procuradoria Geral do Estado e a diretora executiva da Funap, Berenice Gianella, falou em nome da fundação, todos realçando a importância da iniciativa.

*     *     *     *

Após breve intervalo entrou no palco Alfredo Rocha. Fez jus à fama que tinha. Sua palestra foi magnífica. Com seu jeito caipira cativou todos os presentes. Em meio a muitas piadas engraçadas transmitiu a importância do trabalho em grupo, do entendimento que deve haver entre pessoas que trabalham visando o mesmo objetivo. Levou a platéia às gargalhadas dizendo coisas como: “na minha terrinha, Limeira, ao invés de brainstorming, preferimos toró de parpites”. Terminou sua palestra exibindo cenas lindíssimas do filme “Resgate do soldado Ryan”, mostrando a importância da vida, ainda que em época de guerra.

Com o espírito de todos aberto para o diálogo e para a busca de soluções comuns, passamos às demais palestras técnicas, voltadas para a finalidade do encontro. Na parte da tarde os participantes foram divididos em grupos onde se travaram intensos debates. No dia seguinte colocamos os temas em votação no plenário e conseguimos obter consenso em alguns itens, dali extraindo a “Carta de Mogi das Cruzes”, com 10 conclusões que seguem abaixo:

ENUNCIADO 1: Os processos de execução e as guias de recolhimento poderão ser transportados por funcionários da Secretaria da Administração penitenciária, previamente credenciados, mediante alteração das normas da Corregedoria Geral de Justiça.

ENUNCIADO 2: As contas de liquidação de penas podem ser feitas pelas unidades prisionais, segundo orientação da Vara de Execuções Criminais. Será feita proposta ao Conselho Superior da Magistratura, para edição de provimento de uniformização dos cálculos.

ENUNCIADO 3: As unidades prisionais encaminharão certidões e demais documentos à Vara de Execuções Criminais.

ENUNCIADO 4: O requerimento de direitos independe de período de prova.

ENUNCIADO 5: É possível a remição de pena pelo estudo, com comprovado aproveitamento, à razão de 18 horas/aula por dia remido (maioria de votos).

ENUNCIADO 6: O visto do juiz corregedor não é necessário nos alvarás de soltura e nas transferências do preso para regime semi-aberto (maioria de votos).

ENUNCIADO 7: A oitiva do sentenciado, a que se refere o art. 118 da Lei de Execuções Penais, pode ser feita por escrito ou realizada pelo diretor da unidade prisional, na presença de advogado.

ENUNCIADO 8: Recomenda-se que o processamento dos pedidos de remição da pena seja feito uma vez ao ano, desde que não haja prejuízo ao sentenciado.

ENUNCIADO 9: a)- A visita que tentar entrar na unidade prisional com qualquer aparelho de comunicação será excluída do rol pelo prazo de um ano; b) Recomenda-se a instalação de aparelho de bloqueio de qualquer artefato de comunicação em unidades do regime fechado; c) A posse de aparelhos de comunicação nos presídios constitui falta grave (maioria de votos); d) Os diretores deverão comunicar o fato ao juízo da execução; e) Será encaminhada ao Congresso Nacional proposta para tipificação deste fato como crime.

ENUNCIADO 10: O Estado deve garantir a segurança de todos os operadores vinculados à área de execução penal.

*     *     *     *

Pela leitura dos enunciados pode-se ver que vários problemas tinham solução muito simples. No primeiro Enunciado os funcionários da administração penitenciária foram autorizados a transportar processos e guias, porque, por incrível que possa parecer, a remessa de um processo de uma comarca para outra, em alguns casos, chegava a demorar de três a seis meses. O Enunciado 3 foi proposto porque funcionários da secretaria da Administração Penitenciária sequer podiam encaminhar documentos aos juízes, porque alguns entendiam que era prerrogativa exclusiva dos cartórios judiciais. Havia juízes e diretores de presídios que estabeleciam prazos para que os presos pudessem pedir o reconhecimento de direito. Daí a razão do Enunciado 4. O Enunciado 7 trouxe extraordinária economia para o Estado. No lugar de apresentar dezenas, centenas de presos ao juiz para um depoimento simples previsto no art. 118 da LEP, autorizou-se a tomada das declarações pelo diretor do estabelecimento penal. Muitas viaturas deixaram de ser empregadas e milhares de litros de combustível foram economizados. Com toda certeza só esta economia deu para pagar as despesas deste e de futuros encontros. Por força do Enunciado 9 encaminhamos ao Congresso Nacional proposta de tipificar como crime a posse de aparelho celular nos presídios. Enviada em novembro de 2003, até hoje os deputados nada deliberaram. Após a “Crise de Maio” (relatada em outro capítulo) voltaram a tocar no assunto, aprovando-se o projeto no Senado. Todavia, na Câmara Federal, ao que tudo indica, ainda está aguardando apreciação.

*     *     *     *

Em suma, com menos de dois dias de debate e trabalho, com boa vontade dos participantes, milhares de presos foram beneficiados com essas medidas. Providências moralizadoras foram tomadas, como a de considerar falta grave a posse de telefone celular. Valorizou-se a formação cultural do preso, reconhecendo-se o direito à remição da pena pelo estudo. Todos saíram ganhando com as conclusões: os presos, a justiça, a administração penitenciária e a sociedade que passou a receber um serviço público de melhor qualidade e com mais economia.

*     *     *     *

Na noite de quinta-feira aconteceram coisas muito interessantes. Com música suave tocando, todos descontraídos no ambiente informal, grupos heterogêneos foram se formando. Conversavam animadamente juízes, promotores, procuradores, advogados, diretores de presídios e membros da minha assessoria. Alguns dançavam, outros cantavam, riam alegremente e, como é normal sempre que se reúnem homens e mulheres, as “paqueras” também rolaram. Alguns apartamentos, contaram-me depois, ficaram vazios, enquanto outros tiveram mais de um ocupante…

O entendimento dos “personagens da execução penal” haveria de ser melhor dali para a frente.

Ao final do evento, que não tivemos a coragem de denominar “Primeiro Encontro”, porque não sabíamos se haveria o segundo, o sucesso era perceptível nos comentários gerais. No discurso de encerramento não tive dúvida em convidar a todos para o “Segundo Encontro de Execução Penal e Administração Penitenciária”, no próximo ano. Fui aplaudido de pé.

*     *     *     *

E assim foi feito. Nos anos seguintes, em 2004 (23, 24 e 25 de junho) e 2005 (29/30 de junho e 1º de julho), realizamos mais dois desses eventos, ambos em um belíssimo hotel na cidade de São Roque. Em 2004 a palestra de abertura foi feita pelo campeão olímpico, Lars Grael, secretário da Juventude, Esporte e Lazer do governo de São Paulo. No seguinte contratamos uma orquestra regida pelo Maestro Lourenção.

Lars Grael, com seu extraordinário exemplo de vida e capacidade de vencer dificuldades, transmitiu de forma emocionante a luta para conservar a vida após sofrer grave acidente. Foi a estrela do evento. Juízes e juízas, promotores e promotoras, com aspecto sério e circunspecto, não tiveram vergonha de se enfileirar para tirar fotografias ao lado do ídolo.

No encontro de 2005 o Maestro Lourenção, durante a apresentação de sua excelente orquestra, convidou alguns dos presentes para ouvir a apresentação no palco sentados no meio dos músicos. Um diretor de presídio regeu a orquestra por alguns minutos. Eu também passei por isso em outra ocasião, embora não soubesse nem o lado de pegar a batuta. É uma experiência única e indescritível. Os privilegiados que se misturaram aos músicos falaram sobre o que sentiram. Uma advogada da Funap, parece que da região de São José do Rio Preto, deu um depoimento tão emocionante que levou muitos dos ouvintes às lágrimas.

*     *     *     *

Na noite anterior à abertura do Encontro de 2004 também aconteceram coisas muito interessantes. Um dos juízes, justamente aquele escalado para falar em nome do Poder Judiciário, se excedeu um pouco nos aperitivos e ficou madrugada adentro tentando levar alguma jovem para seu quarto. Dizem que tentou com todas, até terminar com conhecida procuradora de Justiça, famosa tanto pelas posições radicais na defesa da linha dura na execução penal, como pela aparência, digamos assim, não tão jovem e nem tão atraente. Mesmo com ela não obteve êxito e acabou indo embora durante a madrugada, não se sabe se de vergonha pela bebedeira, ou pela frustração de não conseguir seus objetivos. Outro teria tentado agarrar uma promotora na entrada de seu apartamento. Este atrevimento gerou séria briga depois com um dos meus auxiliares mais próximos, que era namorado da moça.

Outro juiz foi incumbido de falar na abertura solene. Pego de surpresa e não habituado a discursos, quase deu um vexame em sua curta fala. Ao invés de dizer que tinha certeza do sucesso do evento, disse que o Encontro certamente seria um insucesso. Corrigiu em seguida, mas ficou a impressão de que não estava mesmo preparado para falar.

*     *     *     *

Um dos palestrantes foi Pedro Egydio, ouvidor da Pasta. Como sempre, falou com profundidade, desceu ao âmago das questões da execução penal. Sua posição era conhecida e defendeu com veemência a visão progressista do Direito, a humanização das prisões, a necessidade do respeito aos direitos humanos. Seu discurso irritou alguns dos presentes. Chegaram a faltar com a educação e o respeito à sua pessoa. No intervalo do almoço perguntavam “quem era aquele cara” que defendia posições absurdas. Outro dizia que Pedro Egydio tinha que ser preso por se mostrar tão defensor dos direitos humanos. Falaram até em cumplicidade com criminosos. Um absurdo inominável. Ainda bem que foi uma minoria que reagiu assim.

Os debates nos grupos foram acalorados. Mais que isso, chegaram em alguns grupos quase às vias de fato, tal era a veemência na defesa da tese que entendiam correta. A presença de pesos pesados da execução penal do País, como [simple_tooltip content=’Vice-presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária.’]Maurício Kuehne[/simple_tooltip], [simple_tooltip content=’Secretário de Justiça do Amazonas e vice-presidente do Conselho Nacional de Secretários de Justiça, Direitos Humanos e Cidadania.’]Carlos Lélio Lauria[/simple_tooltip], [simple_tooltip content=’Diretor do Departamento Penitenciário Nacional – DEPEN.’]Clayton Alfredo Nunes[/simple_tooltip], [simple_tooltip content=’Jurista e conselheira do CNPCP – Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária.’]Ana Sofia Shimidt de Oliveira[/simple_tooltip], enriqueceu e valorizou o evento.

Ao final, com alguma dificuldade conseguimos fechar as conclusões nos dois Encontros, com os enunciados abaixo:

ENUNCIADO 11: O cálculo de liquidação de penas, elaborado nas unidades prisionais e constante do Boletim Informativo do preso, dispensa a remessa dos autos executórios ao Contador Judicial, se houver anuência das partes (maioria de votos).

ENUNCIADO 12: Nos termos do § 1º do art. 185 do Código de Processo Penal, com a redação dada pela lei nº 10.792, de 1º de dezembro de 2003, os interrogatórios dos acusados presos serão progressivamente realizados nos estabelecimentos penais onde se encontrarem, em sala própria, desde que o órgão competente do Estado garanta a segurança do lugar para a realização do ato processual, e a administração proveja o referido espaço dos equipamentos necessários a esse fim; recomenda-se que o Estado providencie a instalação de salas de vídeoconferência para a realização dos atos processuais (maioria de votos).

ENUNCIADO 13: É necessária a formulação de um anteprojeto de lei de execução penal paulista, criando-se para esse fim, na Administração Penitenciária, um grupo multidisciplinar, que receberá as sugestões da comunidade jurídica sobre o tema.

ENUNCIADO 14: As alterações introduzidas pela Lei nº 10.792, de 1º de dezembro de 2003, no art. 112 e parágrafo único da Lei de Execução Penal, dispensaram o exame criminológico e o parecer da Comissão Técnica de Classificação para fins de apreciação judicial de pedidos de benefícios (maioria de votos).

ENUNCIADO 15: As atividades jurisdicional e administrativa na execução da pena devem ser objeto de ampla discussão, em virtude da complexidade do tema, principalmente no que se refere à constitucionalidade de seus vários aspectos (maioria de votos).

ENUNCIADO 16: Recomenda-se que a Secretaria da Administração Penitenciária, o Ministério Público e demais órgãos responsáveis aproximem-se para somar esforços e informações no combate às facções criminosas. Seria benéfico, nesse sentido, que, entre outras entidades, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP, apresentasse ao Congresso Nacional, projeto de lei que atribua às empresas de telefonia celular a responsabilidade pelo bloqueio técnico em certas áreas de sua concessão, do respectivo sinal, sem prejuízo de gestões imediatas junto à ANATEL, para eventual solução desse problema.

ENUNCIADO 17: É recomendável, nos termos da decisão interlocutória do Supremo Tribunal Federal, que os juízes das Varas de Execução Criminal, processem e concedam cautelarmente os pedidos de progressão de regime carcerário, referentes a sentenciados por tráfico de entorpecentes e drogas afins e por crimes definidos como hediondos (maioria de votos, com abstenção dos participantes do Poder Judiciário e vencido o Ministério Público).

ENUNCIADO 18: Enquanto não se edita lei ordinária para disciplinar o inciso LXXVIII do art. 5º da Constituição da República e com o intuito de preservar esse direito fundamental do sentenciado, o juiz, ultrapassado o prazo de 90 dias, contados da data do protocolo do requerimento em cartório, concederá cautelarmente o pedido de benefício do sentenciado, sem prejuízo de eventual e posterior revogação, com retorno à situação original (maioria, com abstenção dos participantes do Poder Judiciário, vencido o Ministério Público. Vencidos na quantificação do prazo os participantes da PGE e FUNAP).

ENUNCIADO 19: os documentos para instruir os requerimentos de benefícios são tão somente os seguintes: boletim informativo, atestado de conduta carcerária e folha de antecedentes criminais atualizada (maioria de votos, vencidos os participantes do Poder Judiciário e o Ministério Público).

ENUNCIADO 20: Recomendam-se os seguintes pontos em matéria de cumprimento de medida de segurança: a) que a Secretaria crie novas vagas em Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico; b) que seja substituída por tratamento ambulatorial a internação, quando possível; c) sejam mais céleres os procedimentos de cessação da periculosidade; d) que sejam feitas gestões junto à Secretaria da Saúde e à sociedade civil para melhor equacionamento do problema da medida de segurança, com ênfase na questão de gênero.

*     *     *     *

Novamente a leitura dos enunciados permite ao leitor sentir o grau de dificuldade para se encontrar consenso. Poucas foram as conclusões por unanimidade. Sempre que houve voto vencido, e como ninguém gosta de ficar vencido, os debates foram muito acalorados. Em alguns temas os membros do Judiciário e do Ministério Público se abstiveram de votar. Em outro, no de nº 18, os advogados da Funap e os procuradores da PGE ficaram vencidos somente no prazo.

*     *     *     *

Em suma, apesar de todos os problemas que enfrentamos, da desconfiança de que pretendíamos “fazer lavagem cerebral” para soltar presos, a verdade é que os três eventos fizeram história no sistema penitenciário. Pela primeira vez autoridades de várias áreas sentaram-se ao redor da mesma mesa, apresentaram e discutiram vários problemas, sem preconceito, buscando o que interessa a todos, que é o aperfeiçoamento dos serviços públicos.

No lado dos coordenadores e diretores penitenciários, também houve excelente repercussão. Mais que isso. Estas pessoas sofrem preconceito de todos os lados, são incompreendidos e criticados pela imprensa e pela população; ficam com fama de corruptos e espancadores, quando a grande maioria é constituída de pessoas sofridas e decentes. Ficaram, desta vez, orgulhosos de poder debater com pessoas de outras áreas, no mesmo nível, sem sentimento de inferioridade.

Antonio Paulo Veronezi, coordenador da Região Noroeste, antigo servidor do sistema penitenciário, que iniciou a carreira como guarda de presídio, disse mais ou menos o seguinte:

— “Dr. Nagashi, pela primeira vez conseguimos ser ouvidos por juízes e promotores com respeito e atenção. Estou orgulhoso de poder participar do evento. Antigamente mal conseguíamos ser recebidos pelos juízes. Jamais imaginei que um dia pudesse debater com eles em pé de igualdade. O senhor nos faz sentir gente, de ter orgulho da profissão que exercemos”.

Capítulo 2

Transferências de presos

O papel do juiz

Além dos Encontros, vale a pena registrar outros fatos relacionados ao Poder Judiciário, que vivi na secretaria.

Como já disse, essa relação administração penitenciária/judiciário, sempre foi muito difícil. Há divergência sobre o que seja atribuição de um e de outro. Começa pela competência para movimentação de presos: alguns entendem que a movimentação deve ser precedida de autorização judicial. Outros, que o assunto é exclusivo do Poder Executivo, bastando comunicar as transferências posteriormente.

*     *     *     *

Na época em que fui juiz de execução em Bragança Paulista, defendia ardorosamente a primeira posição. Achava que o administrador não podia transferir um preso de uma comarca para outra, sem prévia autorização judicial. Acho até que essa minha antiga posição tem forte sustentação na Lei. É o que se extrai do que está escrito no art. 66, V, letra “g”, da Lei de Execução Penal. Na defesa desse entendimento, baixei portarias proibindo o ingresso e a saída de presos da cadeia pública de Bragança Paulista, sem autorização judicial.

Uma dessas portarias foi submetida à apreciação do Corregedor Geral da Justiça, por provocação do Delegado Seccional de Polícia da época. Na Corregedoria, além de revogada, a portaria foi duramente criticada. Constou da decisão do corregedor-geral que o juiz não podia se imiscuir nesses assuntos, que eram de total competência do Poder Executivo. Mais que isso: a decisão foi publicada no diário oficial, para cumprimento em todo o Estado, com expressa recomendação de que ordens dessa natureza deviam ser desconsideradas pelas autoridades administrativas.

Fiquei decepcionado na época. Achei que tinha sido desprestigiado, desmoralizado e que todo o trabalho que se realizava na cadeia pública iria por água abaixo, porque o delegado, vitorioso na sua posição, poderia trazer e levar presos de todo o tipo para a cadeia, inviabilizando [simple_tooltip content=’Esses trabalhos estão minuciosamente descritos no capítulo sobre os Centros de Ressocialização.’]o trabalho que se iniciava[/simple_tooltip]. De qualquer forma dei cumprimento à decisão e não a discuti. Engoli em seco e continuei tocando minha vida.

*     *     *     *

Como o mundo dá voltas, alguns anos depois, na secretaria da Administração Penitenciária, o coordenador da COESPE, Sérgio Ricardo Salvador, veio me informar que estava recebendo várias intimações do DECRIM, trazidas por oficiais de justiça, com prazo de 24 ou 48 horas para remover presos de um lugar para outro, sob pena de desobediência. Dizia que acabaria preso, pois não tinha condições materiais de cumprir aquelas decisões.

Sérgio estava com séria dificuldade de relacionamento com os juízes do DECRIM. Tudo começou com sua nomeação. O juiz Octávio Augusto Machado de Barros, pessoa com quem eu tinha bom relacionamento, ao tomar conhecimento da sua nomeação, veio à secretaria para reclamar. Ele entendia que eu deveria tê-lo consultado para escolher o coordenador. Essa conversa foi muito desagradável. Achei até que foi desrespeitosa. O fato de ter sido seu colega não lhe dava o direito de fazer esse tipo de consideração. Para não complicar a situação, informei que a pessoa escolhida tinha qualidades que justificavam a escolha.

O problema se agravou na primeira visita que o Sérgio fez aos magistrados daquele departamento. Durante a conversa informal, já que era simples visita de cortesia, Sérgio teve a infelicidade de se dirigir a uma das juízas dizendo “minha querida, acho que esse assunto…”. A magistrada ficou ofendida com essa forma de tratamento, que entendeu desrespeitosa. Ele contou que recebeu uma humilhante esculhambação da juíza…

*     *     *     *

Voltando às intimações, peguei-as todas, separei-as por nome de cada juiz e fiz uma representação contra eles dirigida ao Corregedor Geral da Justiça, com base na velha decisão de Bragança que me aborreceu tanto na época. Transcrevi a parte que dizia não poder o juiz se imiscuir em transferência de presos, por ser o assunto de competência exclusiva do Poder Executivo. Pedi uma reunião e levei debaixo do braço as representações.

— “Ou Vossas Excelências recolhem todos os mandados que dirigiram ao meu coordenador, ou saio daqui diretamente à Corregedoria Geral para entregar estes envelopes com representação oficial contra os senhores”, foi o que falei, mostrando a cópia da decisão que nem todos conheciam.

A conversa foi suficiente para resolver o assunto, com bom senso e maturidade. Sem a decisão que involuntariamente provoquei na Corregedoria Geral da Justiça, não seria possível administrar as penitenciárias de São Paulo. Não havia a mínima possibilidade de pedir autorizações judiciais para transferência de presos, tal era o número das movimentações.

Como diz o velho ditado popular, “há males que vêm para o bem”. O mundo dá voltas, foi o que pensei…

Capítulo 3

Enfrentando as resistências do TJ-SP

Troca de favores

Tive um dia reunião no Palácio dos Bandeirantes com o governador Geraldo Alckmin e o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos. O assunto era verba do Fundo Penitenciário Nacional. No Governo Lula a liberação dessa verba havia caído sensivelmente e estávamos com séria dificuldade para construir penitenciárias em número suficiente para fazer frente ao aumento do número de presos, cerca de 800 por mês. Estávamos em outubro de 2003.

No meio da conversa falei dos processos que tramitavam nas VECs e da demora nas decisões judiciais. Eram cerca de 10 mil que aguardavam julgamento. Em tese os presos poderiam estar saindo das prisões, caso as decisões fossem mais rápidas. Ainda que reduzíssemos esse número pela metade, representava quase sete penitenciárias, ao custo unitário de aproximadamente 20 milhões de reais. Os juízes não têm culpa, esclareci, porque faltam funcionários e eles não têm como decidir mais rapidamente.

O ministro fez as promessas de praxe e a reunião terminou. Ficaram os dois, ministro e governador, muito impressionados com os dados que apresentei.

Naquela mesma noite o Dr. Geraldo telefonou fazendo referência à conversa da tarde e dizendo que aquela situação era absurda e que algo tinha de ser feito. Ponderei que se tratava de competência do Poder Judiciário e que não vislumbrava nenhuma providência imediata, a não ser sugerir ao Tribunal de Justiça para contratar mais escreventes.

— “Mas essa solução é muito demorada. Você tem que pensar em algo mais rápido, tem que ter alguma ideia para mudar isso. Não é possível deixar tudo como está. Trate de encontrar uma solução, e rápida”.

— “Sim, senhor”, respondi, o que mais poderia dizer?

Mal consegui dormir naquela noite. Fiquei rolando na cama exercitando meus neurônios. Já tínhamos programado o Encontro com os juízes, havia o projeto de acabar com os exames criminológicos, a informatização da secretaria, tudo enfim, para apressar as decisões judiciais. Muitos diziam que minha obsessão era a de soltar os presos. Reconheço que havia um pouco de verdade nessa afirmação, mas não era só isso. Resumir minhas iniciativas nesse objetivo era fazer pouco caso das minhas intenções.

Já com o dia raiando veio a ideia da criação do Servec[simple_tooltip content=’Serviço de apoio às Varas das Execuções Criminais’]Servec[/simple_tooltip]. Por que não montar um serviço auxiliar do judiciário, com pessoas contratadas pela secretaria, com caráter itinerante? Não era nada absurdo, nenhuma maluquice. Fui animado ao trabalho, chamei minha assessoria, o Dr. Pedro Egydio e apresentei a ideia. Todos gostaram. Acharam que era um projeto simples e factível. Basicamente consistia em pedir autorização ao governador para contratar 10 bacharéis em Direito que seriam colocados à disposição do Poder Judiciário para executar os serviços cartorários. A secretaria faria o treinamento, disponibilizaria dados cadastrais com caráter prioritário, separaria os presos com processos mais simples, os quais seriam os destinatários do serviço. Ao judiciário caberia ceder local para funcionamento e designar um juiz. Esses 10 funcionários, pelas minhas contas, teriam condições de preparar cerca de 800 processos por mês para decisão. Se tudo desse certo conseguiríamos mensalmente vagas equivalentes a uma penitenciária.

Entusiasmado com a ideia, telefonei ao governador e pedi autorização para dar andamento ao projeto.

— “Manda bala” — ele respondeu, sem fazer nenhuma objeção — “vou mandar a Casa Civil colocar esses 10 cargos à sua disposição”.

Fui falar no mesmo dia com o Presidente do Tribunal, desembargador Luiz Elias Tâmbara, com o Corregedor Geral da Justiça, desembargador José Mário Cardinali, com o Procurador Geral da Justiça, Rodrigo Pinho, e com o Procurador Geral do Estado em exercício, Dr. Mendes Júnior. O desembargador José Cardinali, corregedor geral, ficou me olhando com um ar de espanto no começo da explicação, assim como seus auxiliares. Um olhava para o outro com os cantos dos olhos e imagino que estivessem pensando: lá vem esse cara com suas maluquices para conseguir vagas no sistema. Ao final da exposição, porém, achou boa a proposta e pediu para que a apresentasse por escrito. Os demais aceitaram sem restrições. O procurador Mendes Júnior ficou entusiasmado:

— “Fazemos questão de participar dessa equipe gloriosa” — foi o que disse.

A Fabiane (sempre ela me socorrendo) fez a minuta do convênio, providenciou na Casa Civil a relação dos cargos e os ofícios de encaminhamento. Levei a cada um, pessoalmente, o projeto. O Rodrigo Pinho telefonou a um assessor perguntando se via algum problema jurídico e ante a resposta negativa, ligou para uma promotora e a convocou para estar com ele no mesmo dia. Esclareceu que era uma excelente profissional e que, caso aceitasse, seria designada para atuar no Servec. O Rodrigo é rápido nas decisões e nas ações. Brincando, ele finalizou a conversa dizendo:

— “Não pense que essa promotora é uma doadora de benefícios. Ela é ponderada, tem bom senso e vai ajudar muito nesse seu objetivo”.

*     *     *     *

O tempo foi passando e não vinha a resposta do Tribunal de Justiça. Telefonei mais de 10 vezes para buscar informações e não conseguia nada. Eu enviara a proposta no final do mês de outubro e esperava ver o Servec funcionando no máximo em janeiro de 2004. Depois de mais ou menos cinco meses veio um ofício contendo o parecer de um juiz auxiliar, dizendo que a proposta, embora bem intencionada, não tinha condições de prosperar. O argumento? Constava que havia o grave inconveniente do juiz designado para o Servec decidir de forma diferente dos juízes das VECs. Dizia ainda que referido magistrado ficaria muito visado pelas facções criminosas.

Era absurda a conclusão, em minha opinião.

Nesse ínterim, os 10 bacharéis contratados para o Servec já tinham tomado posse e precisavam ser designados para algum trabalho. Estávamos nas vésperas do carnaval de 2004. Falei com o Edmar Ciciliatti, juiz de Tupã e coloquei-os à sua disposição. Com muito boa vontade e acreditando no projeto, Edmar recebeu todos em sua comarca, arrumou uma casa para alojá-los e deu a eles o treinamento prático do trabalho cartorário. Ficaram em Tupã cerca de cinco meses. Todos me disseram depois que foi um período inesquecível em suas vidas. Uma experiência fantástica, que fez nascer um forte espírito de equipe e de amizade entre eles.

Fiquei imaginando qual seria a melhor estratégia para mudar a posição do juiz auxiliar da presidência do Tribunal de Justiça. Falei com o secretário Alexandre de Moraes e combinamos levar o assunto ao governador na primeira oportunidade em que houvesse audiência com o Presidente do TJ. Demorou um pouco, mas o dia propício chegou: o presidente iria pedir ao governador apoio para aprovar uma lei de criação de cargos de desembargador.

Na hora marcada, antes de tratar do assunto dos desembargadores, o Dr. Geraldo pediu ao desembargador Tâmbara seu apoio para a criação do Servec. O presidente, muito educado e solícito, disse que verificaria pessoalmente como estava o procedimento. Até então havia confiado o andamento do pedido ao seu auxiliar. Naquela mesma semana recebi outro parecer, desta vez favorável à assinatura do convênio.

A burocracia do Estado tem dessas coisas terríveis. Se não tivermos habilidade para mexer com as peças certas nos momentos certos, boas iniciativas acabam se perdendo em meio a centenas de papéis.

*     *     *     *

No final de agosto de 2004 o Servec estava instalado no Fórum da Barra Funda. No final do ano, com quatro meses de funcionamento, apresentou números fantásticos: nossos 10 funcionários, sob a direção do juiz designado, conseguiram produzir mais que 164 servidores do judiciário. É verdade que só cuidavam de processos simples, mas deu para demonstrar que a separação dos casos complicados dos simples traz resultados extraordinários.

O sucesso da novidade foi de tal ordem que no início de 2006 mais dois Servecs foram instalados, um deles com a específica incumbência de trabalhar com os processos das mulheres. Ao invés de escolher aleatoriamente as pessoas que trabalhariam nesses serviços, embora a lei não exigisse concurso, por se tratar de cargos em comissão, fizemos o processo seletivo com publicidade e escolhemos os mais preparados por meio de provas, entrevistas e exames dos currículos. Esses dois novos Servecs foram solenemente instalados com a presença do governador Cláudio Lembo e de toda a cúpula do Tribunal de Justiça no fórum da Barra Funda no dia 02 de maio de 2006. O juiz responsável pelo DECRIM já era Carlos Fonseca Monnerat, que havia atuado na VEC de São Vicente, com muita eficiência. Aliás, foi ele quem sugeriu o nome Servec – Serviço Auxiliar das Varas de Execução Criminal, que acabamos acolhendo. Recentemente, no mês de agosto de 2006, a imprensa publicou uma entrevista do Ministro da Justiça, onde consta que dentre as medidas para amenizar o problema da superlotação nos presídios estava propondo a criação de mais Servecs em todo o País.

É muito gratificante criar novidades que acabam sendo copiadas e levadas para outros pontos do País. Valeu a noite mal dormida.

Capítulo 4

O congestionamento das Varas de Execução Penal

Um juiz para 6 mil presos

Antigo e angustiante problema era o acúmulo de serviços judiciários nas Varas de Execução Criminal no interior. O absurdo da situação chegava ao ponto de encontramos em algumas comarcas um único juiz responsável por processos de mais de 6 mil presos, enquanto na capital havia 10 ou 12 para mais ou menos 8 mil sentenciados.

Na comarca de Guarulhos a situação era gravíssima. Houve época em que o cartório de lá demorava cerca de 6 a 8 meses só para juntar um documento aos autos. Preocupado com essa situação caótica, que trazia reflexos gravíssimos junto aos presos, no final de 2003 fui procurar o juiz da execução e as demais autoridades da comarca a fim de buscarmos juntos uma solução emergencial para a situação. Na reunião convocada pelo magistrado estiveram presentes o promotor responsável pelas execuções, o procurador do Estado, o advogado da Funap e serventuários do cartório. O diagnóstico era claro: havia processos demais e funcionários de menos. O espaço ocupado pelo cartório era tão exíguo que não permitia a designação de funcionários das penitenciárias para auxiliar. Depois de longas ponderações, com boa vontade de todos os participantes da reunião, chegamos ao consenso de que formando-se uma força-tarefa composta por representantes de todas as instituições envolvidas, em um ou dois meses, teríamos condições de pelo menos atualizar a juntada dos documentos. Com mais um mês de trabalho os processos estariam preparados para as decisões.

Fizemos mais uma reunião na sede da SAP e ali costuramos todas as pontas para perfeito funcionamento da força-tarefa. Tratamos dos mínimos detalhes para que a experiência não fracassasse: desde a maneira da separação dos documentos, a seleção dos processos, as formalidades para retirada do cartório e o local onde os trabalhos seriam desenvolvidos.

Após tudo acertado, inclusive a data para o início dos trabalhos, recebemos na semana seguinte a desanimadora notícia de que a Corregedoria Geral da Justiça, consultada pelo juiz de Guarulhos, decidiu de forma diferente, determinando a temporária transferência de todos os processos de réus presos para o DECRIM em São Paulo. Esses processos ficaram por mais de dois anos na capital com pouquíssimo resultado prático. Os presos de Guarulhos continuaram descontentes com o atraso nas decisões de seus pedidos.

Diante do que ocorreu, passei a pensar seriamente em pedir ao Tribunal de Justiça que criasse mais varas de execução nas comarcas do interior, especialmente naquelas em que o volume de serviço era insuportável. Nessa situação se encontravam as comarcas de Bauru, Campinas, Presidente Prudente, Taubaté e Araçatuba. A de Guarulhos, com a transformação da maior parte das penitenciárias em Centros de Detenção Provisória, acabou ficando com número razoável de processos de execução.

Enquanto estudávamos uma maneira mais adequada de apresentar essas propostas, no final de 2005 foram eleitos para compor o Conselho Superior da Magistratura os desembargadores Celso Limongi (presidente), Canguçu de Almeida (vice-presidente) e Gilberto Passos de Freitas (corregedor). O novo corregedor, logo após sua eleição, fez um gesto muito significativo mostrando sua preocupação com a área de execução penal. Acompanhado do juiz Carlos Fonseca Monnerat, responsável pelo DECRIM, veio à secretaria para almoçarmos e conversarmos sobre o tema. Era a primeira vez, em seis anos, que um corregedor geral da justiça procurava a secretaria da Administração Penitenciária para se colocar à disposição e também para se inteirar das dificuldades que enfrentávamos. Esse primeiro contato foi muito produtivo: pedi ao corregedor e a seu auxiliar para que fizessem uma lista das principais reivindicações ao governador. Eu me incumbiria de marcar uma reunião onde os pedidos seriam apresentados. Disse a ambos que o Dr. Geraldo sempre demonstrou muita preocupação nesse assunto e que, com certeza, atenderia tudo o que fosse pedido.

Assim foi feito. No dia 24 de fevereiro de 2006 o governador recebeu em seu gabinete o corregedor geral da justiça e sua equipe. Convocou para participar o secretário chefe da Casa Civil, deputado Arnaldo Madeira e a Presidente da Febem, Berenice Maria Gianella. As reivindicações foram apresentadas e o governador, de imediato, prometeu atender a todas sem exceção. Os pedidos eram simples: a agilização no procedimento de informatização das VECs e das Varas da Infância, bem como a criação de mais dois Servecs. Tomei todas as providências na parte que me dizia respeito e os Servecs foram formalmente instalados no dia 02 de maio de 2006, como relatei acima.

*     *     *     *

Com os novos ventos que a administração Passos de Freitas apresentava na área da execução penal, os juízes do interior começaram a se interessar em apresentar propostas para criação de mais unidades judiciárias, o que vinha ao encontro das nossas velhas reivindicações. O primeiro magistrado a se entusiasmar com essa possibilidade foi Davi Márcio Prado Silva, da comarca de Bauru, uma das mais assoberbadas do Estado. Ele passou a fazer contato constante comigo, na expectativa de contar com meu apoio para reativar um pedido que fizera no passado para criação da 2ª Vara de Execução Criminal daquela comarca. Esse pedido, segundo me informou, não seguiu adiante por uma série de dificuldades. Imediatamente coloquei-me à sua inteira disposição, pois, como disse, seu desejo era coincidente com o nosso. Outras comarcas tinham o mesmo problema de acúmulo insuportável dos serviços. Para falarmos sobre isso marcamos um almoço para o dia 10 de fevereiro de 2006, onde compareceram, além do juiz Davi Márcio, o Monnerat, do Decrim, Fábio D’Urso, de Presidente Prudente, e as juízas Érika Cristina Lacerda Raskin e Suely Zeraik, das comarcas de Campinas e Taubaté, respectivamente. Meu secretário adjunto, Clayton, também participou do almoço.

A reunião não foi muito produtiva, porque as duas juízas, meio magoadas comigo por problemas pontuais ocorridos em suas comarcas, estavam fechadas e acabaram criando um ambiente pouco favorável ao diálogo. As duas, não sei se de forma combinada ou não, começaram a determinar realização de blitz nas penitenciárias pela Tropa de Choque da polícia militar, sem meu conhecimento, e a tomar medidas que no meu entendimento invadiam a esfera de competência da secretaria. Contra elas havia representado junto à Corregedoria Geral, fato que criou esse ambiente desfavorável ao diálogo. A Suely, da comarca de Taubaté, ao invés de interessar-se pelo assunto que era relevante na diminuição da carga de serviço de sua Vara, ficou durante todo o almoço perguntando o nome de um preso que estaria envolvido em uma tentativa de fuga nos dias anteriores. A Érika nem olhava para mim, tal era sua má vontade.

De qualquer forma, os outros juízes, especialmente Davi e Fábio, demonstraram muito interesse em trabalharmos juntos para a criação das segundas varas em suas comarcas. O Davi forneceu todos os dados técnicos que permitiriam essa decisão pelo Tribunal de Justiça e minutou o ofício que eu dirigiria ao Conselho Superior da Magistratura. Com pequenos ajustes na minuta assinei o ofício e o encaminhei. Mais que isso: falei pessoalmente com o governador Lembo sobre a importância do atendimento desse pedido. O governador, que havia acabado de assumir o cargo em 31 de março de 2006, transmitiu o pedido ao Presidente do Tribunal e empenhou-se para obter êxito, pois afinal era o primeiro pedido que fazia ao Judiciário. Sei disso porque, em uma reunião no Palácio do Bandeirantes, para tratar de assunto orçamentário, o juiz Cláudio Gracioto, assessor da Presidência do TJ, veio falar comigo a pedido do próprio governador. A ele apresentei, de forma veemente, a importância da criação dessas novas varas de execução penal no interior. Cláudio ficou sensibilizado pelos meus argumentos e trabalhou para a viabilização do pedido.

Em pouco tempo, creio que no início do mês de junho, logo após minha saída da secretaria, veio a boa notícia: o Tribunal de Justiça, depois de 16 anos da descentralização dos serviços de execução penal, decidiu criar mais cinco varas no interior, nas comarcas de Bauru, Presidente Prudente, Taubaté, Campinas e Araçatuba. A vontade política do governador, o empenho do corregedor Passos de Freitas, o auxílio firme do juiz Gracioto, e a iniciativa do magistrado Davi Márcio fizeram mudar a face da execução penal no Estado de São Paulo. Finalmente, depois de tantos anos, os presos receberiam tratamento prioritário.

Essa foi a última contribuição que deixei no serviço público e não pude ver sua concretização e seus efeitos na administração penitenciária. O trabalho de interação entre os dois poderes, a vontade de buscar soluções conjuntas, iniciado com os Encontros e que prosseguiu com os Servecs, finalmente passaria a produzir resultados concretos mais fortes. Valeu a pena, ainda que tudo isso ocorra depois da minha saída da secretaria, porque a semente de uma execução penal mais rápida, mais justa e mais eficaz ficou lançada.