Aos nove anos, Marivaldo Pereira (PSOL-DF) já trabalhava como feirante. Por influência de sua mãe, diarista que sabia da importância de manter seu filho na escola, nunca deixou de estudar. Advogado com extensa trajetória no setor público, Marivaldo é hoje um dos candidatos a deputado distrital apoiados pelo Quilombo nos Parlamentos, uma iniciativa da Coalizão Negra Por Direitos para aumentar a representatividade de negros e desenvolver a pauta antirracista no Congresso e nas assembleias legislativas.
A ação agrega, até o momento, mais de 150 candidaturas negras de partidos progressistas — PT, PSOL, PSB, PCdoB, Rede, PDT, UP e PV. A maioria dos nomes está na disputa para as assembleias legislativas e para a Câmara Distrital. A Câmara dos Deputados aparece em segundo lugar. Para o Senado, há apenas um postulante.
Marivaldo quer representar na Câmara Legislativa do DF as pessoas que, assim como ele, possuem uma vida repleta de obstáculos por conta de sua cor e classe social. Depois que completou os estudos, como queria sua mãe, e preocupado com o futuro após o ensino médio, descobriu a Fuvest. E decidiu conversar com uma professora sobre o vestibular de ingresso na Universidade de São Paulo (USP). A resposta foi a seguinte: “Olha, compra uma calça jeans que você vai aproveitar melhor o seu dinheiro”.
Nessa época, matriculou-se no Cursinho da Poli e escolheu como destino a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. O interesse inicial surgiu da temática trabalhista, que esteve sempre presente em sua vida, bem como da curiosidade de entender o que eram aquelas papeladas que levavam todo ano à favela onde morava para ameaçar tirá-lo de lá. Entre as horas de sono perdidas e os assaltos no ponto de ônibus, Marivaldo não passou no vestibular — um momento que o marcou para a vida.
“Ali, tomei consciência que o sistema é feito para que nós, negros, moradores da periferia, não extrapolemos os limites; para que a gente fique exatamente onde está, para produzir um sistema de exclusão social. Naquele momento, decidi que iria contrariar as estatísticas, que iria vencer o sistema e que entraria na Universidade de São Paulo. Naquele momento, ouvindo Racionais MC’s, foi quando eu tomei essa consciência.”
No dia seguinte ao resultado, Marivaldo voltou a estudar e, no ano seguinte, entrou em Direito na USP. Lá, envolveu-se com movimentos de moradia e emendou um mestrado em Processo Civil. Saiu de capital paulista para o Distrito Federal, sua terra natal, e atuou na reforma do Judiciário, na Casa Civil e na Secretaria-Executiva do Ministério da Justiça.
Aquilombar parlamentos
A meta do Quilombo nos Parlamentos é duplicar o número de negros na Câmara e nas assembleias legislativas, afirma Sheila de Carvalho, diretora do Instituto de Referência Negra Peregum e integrante da Coalizão Negra por Direitos. No entanto, ela faz uma ressalva. Dados do Observatório Equidade no Legislativo mostram que 24,20% dos eleitos em 2018 eram negros. Como o critério é a autodeclaração, segundo Carvalho, essa não é necessariamente a realidade fática do Congresso brasileiro. Pelas suas contas, somam 10 os parlamentares alinhados à pauta antirracista. O objetivo é dobrar esse número. O mesmo vale para as assembleias estaduais e do Distrito Federal. Para o Senado, com apenas uma candidatura, a projeção não é animadora.
Carvalho esperava fortalecer a iniciativa para as próximas eleições gerais e trilhar um caminho para o Executivo. Ela citou a chegada ao poder da vice-presidente colombiana Francia Márquez, a primeira mulher negra a ocupar o posto. “Temos visto os países avançando nessa discussão, e o Brasil não tem se colocado. Estamos falando de um processo de transformação política a longo prazo. Há um manifesto da Coalizão Negra que se chama ‘Enquanto houver racismo, não haverá democracia’. A nossa luta, num país tão marcado pelo racismo como é o Brasil, é que a gente tenha uma democracia de fato. E para ter essa democracia de fato, precisamos que a população brasileira seja devidamente representada nesses espaços.”
Emergência negra
O Brasil demorou a dar bola para os enunciados do movimento negro. Douglas Belchior (PT-SP), coordenador da Uneafro Brasil e membro da Coalizão Negra por Direitos, explica que, durante todo o século 20, a estratégia foi a de negar o racismo. O discurso vencedor foi o da democracia racial, segundo o qual não haveria barreiras estruturais em função da raça no Brasil, a despeito dos gritos do movimento negro.
Isso mudou na abertura do novo século, quando ganharam impulso as discussões políticas de ações afirmativas. Nos últimos cinco ou seis anos, o debate sobre racismo passou a permear toda a sociedade. Um marcador histórico na política brasileira foi o assassinato de Marielle Franco. Belchior, que também é candidato a deputado federal, compara o impacto da morte da vereadora sobre o Brasil com o efeito do assassinato de George Floyd sobre o mundo. Os eventos fizeram “o debate sobre racismo emergir na sociedade como um todo, de maneira que, no campo da política, passou a ser impossível não discutir o tema. Ou seja, o assunto que era quase restrito a nós, os negros organizados — a gente falava sozinho, veio pregando no deserto, sobre tudo isso — passou a ser dito publicamente, passou a ser um debate público”.
Apesar dos avanços, as mudanças ainda continuam centradas na esfera discursiva. Dirigentes partidários, frequentemente brancos de idade avançada, falam de racismo e discursam sobre os problemas da população negra. Belchior afirmou que falta muito para isso se concretizar em ações. É preciso representação política do campo organizado do movimento negro, e pessoas que respondam para a agenda e para reivindicações históricas, segundo argumenta. Também não basta ser negro. Na política institucional, a questão é de representação do segmento.
Debaixo da pirâmide
Segundo Lélia Gonzalez, ativista cofundadora do Movimento Negro Unificado (MNU) e uma das propositoras do pensamento interseccional, abaixo dos negros estavam as mulheres negras, vítimas da discriminação racial e de gênero. Elas compunham a base da pirâmide social brasileira. Nessa estrutura, mulheres negras trans e travestis nem aparecem.
Como expôs Robeyoncé Lima (PSOL-PE), candidata a deputada federal, o lugar da mulher negra trans no Brasil é de invisibilidade, marginalização e vulnerabilidade. Dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) indicam que, no ano passado, houve ao menos 140 assassinatos de pessoas trans no Brasil — 135 mulheres e cinco homens. O dossiê “Assassinatos e violências contra pessoas Trans em 2021” mostrou que, a cada 10 assassinatos de pessoas trans no mundo, quatro ocorreram em solo nacional. O Brasil é líder em assassinatos de pessoas trans no mundo.
O objetivo da candidata é fundar, em conjunto com outras lideranças, uma bancada trans negra no Congresso. A frente pode vir a ser um importante símbolo da bancada antirracista que está sendo articulada pela Coalizão Negra Por Direitos e buscaria trazer um viés de gênero para o debate racial.
Mas é preciso chegar lá primeiro. O resultado do Quilombo nos Parlamentos ainda é incerto, mas mostra a ambição do movimento negro de, como aconteceu nas universidades públicas, ocupar os espaços de poder.