Arbitragem

Justiça de SP nega anular arbitragem questionada após sentença de R$ 4,2 milhões

Acórdão diz que discussão de parcialidade de árbitros deve ser feita em momento adequado, dentro do procedimento arbitral

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Crédito: Unsplash

A Justiça de São Paulo negou anular uma sentença arbitral por alegação de parcialidade do árbitro depois de concluído o procedimento. A decisão do tribunal arbitral foi desfavorável ao médico, que acionou o judiciário e questionou a arbitragem. Não é a primeira vez que o Judiciário é procurado em uma situação do tipo. Mas a decisão da Justiça paulista é tida como um precedente importante para consolidar a Lei de Arbitragem

“Incumbe às partes o dever ético de investigar eventuais causas de impedimento ou suspeição do árbitro e argui-las na primeira oportunidade que tiver de se manifestar”, diz o acórdão a 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo, da última terça-feira (22/11). A decisão tomada por maioria de votos seguiu o entendimento do relator do caso, Jorge Tosta. Também participaram do julgamento os desembargadores Ricardo Negrão, Grava Brazil, Natan Zelinschi de Arruda e Sérgio Shimura.

O caso

No caso em discussão, a empresa do médico Raphael Brandão celebrou, em 2017, um contrato de prestação de serviços em oncologia com a Empresa de Serviços Hospitalares (Esho), que compõe o grupo Amil. O contrato foi rescindido pela Esho após descoberta da quebra do dever de não competição por parte do médico ao abrir clínica particular vedada no contrato e desviar médicos e pacientes.

Médico e empresa instauraram arbitragem para discutir quem deveria arcar com a multa contratual prevista. Mas Brandão foi derrotado em decisão unânime do Tribunal Arbitral, que acolheu as teses da Esho e condenou o médico e a empresa a pagarem cerca de R$ 4,2 milhões. Ele acionou a Justiça, mas também saiu derrotado. O juiz Eduardo Palma Pellegrinelli, da 2ª Vara Empresarial e Conflitos de Arbitragem julgou improcedente o pedido dele. 

O médico alegou que o painel arbitral foi composto por um amigo íntimo da outra parte. O árbitro André Correia teria mentido no questionário ao não revelar a proximidade com os patronos da Esho, que da mesma forma escondeu a proximidade com Correia. Teria havido, portanto, violação do princípio da imparcialidade do árbitro. André Correia deveria ter revelado, segundo Brandão, que atua como advogado de uma sociedade que depende financeiramente da única sócia da Esho, a empresa KORA. E essa relação apenas teria sido conhecida no curso do processo. 

Na apelação, Brandão afirmou que houve violação ao dever de revelação, cerceamento de defesa dos apelantes no procedimento arbitral, atuação em conflito de interesses pelo árbitro André Correia. Ele diz, ainda, que foram usadas provas ilícitas durante a arbitragem, quando um relatório de compliance foi feito e usado sem o contraditório. 

A decisão

“O que se vê, todavia, não é a existência de fatos novos, a justificar seu conhecimento e consideração por ocasião de julgamento do mérito, nos termos do art. 493 do CPC, mas de alegação nova de fato pretérito, a propósito de conhecimento público e que era de fácil verificação antes mesmo da própria instauração do procedimento arbitral, e que constitui efetivamente alteração da causa de pedir” disse o relator. 

Jorge Tosta afirma que, de fato, a Lei de Arbitragem contém previsão específica acerca do dever de revelação do árbitro sobre “qualquer fato que denote dúvida justificada quanto a sua imparcialidade e independência”. E este dever está diretamente vinculado ao resguardo da confiança que as partes devem depositar no árbitro, desde a instauração e até o final do procedimento arbitral, no sentido de se manter isento e imparcial.

Mas na ação em questão não houve violação observada. O próprio Correia, ao responder questionário quando indicado à arbitragem, afirmou que, em 2015, o escritório do qual é sócio acompanhou um caso, “sem qualquer relação com as partes e com o presente litígio”, em trâmite no Rio de Janeiro em conjunto com Terra Tavares Ferrari Advogados. “Entendo que tal fato não afeta minha independência e imparcialidade e não tenho impedimentos para atuar no presente procedimento arbitral”, disse.

O desembargador entendeu, então, que o médico teve oportunidade de questionar a relação anteriormente e não o fez — o que também é dever da parte de investigar eventuais causas de impedimento ou suspeição do árbitro.

 “Não cumpre tais deveres e, portanto, viola o princípio da boa-fé objetiva, a parte que, mesmo tendo plenas condições de investigar previamente eventuais motivos de suspeição ou impedimento do árbitro, venha a fazê-lo somente após a sentença arbitral que lhe fora desfavorável, evidenciando manifesto comportamento desleal e atentando contra os deveres de transparência e colaboração que deve existir em todo procedimento arbitral, como, a propósito, em qualquer procedimento de caráter jurisdicional.”

Para o magistrado, tão grave quanto não revelar fato que denote dúvida quanto à imparcialidade e independência do árbitro é a não observância pelas partes do princípio da boa-fé objetiva no procedimento arbitral. 

“E tudo isso sem falar em uma das funções primordiais da boa-fé objetiva, que é a de limite ao exercício de direitos subjetivos, notadamente a vedação a comportamento contraditório, o que parece estar evidenciado no caso dos autos, na medida em que houve a aceitação dos árbitros sem qualquer restrição e, após a sentença arbitral desfavorável, a alegação de quebra do dever de revelação, com base em fatos pretéritos que os autores sabiam ou deveriam saber e que, a rigor, nem mesmo implicaria na quebra da necessária isenção e imparcialidade do árbitro”, resumiu. 

No que tange ao apontamento de que a sentença arbitral padece de vício de fundamentação, por ter misturado conceitos e consequências jurídicas de rescisão motivada e imotivada, o desembargador afirmou que os apelantes pretendiam rediscutir o mérito da sentença arbitral, o que é vedado ao Poder Judiciário.

Momento oportuno

De acordo com a professora e advogada Selma Lemes, que publica anualmente a Pesquisa Arbitragem em Números, que se tornou referência na área, é dever das partes entender que, quando incluem cláusula compromissória nos contratos, estão escolhendo um rito próprio. “Isso faz com que você se submeta aos bônus e aos ônus. Nenhum juiz vai poder mudar o que um árbitro decidiu”, diz. 

Lemes classificou o acórdão como “um golaço”. A decisão é acertada, na visão dela, por entender que é importante observar o motivo da revelação, não apenas a revelação em si. Ou seja, se aquilo que está sendo revelado tem relevância para a arbitragem em questão. Ela também comemora o fato de ter sido dada pela Justiça de São Paulo, que serve de parâmetro na área por contar com varas especializadas e câmaras consolidadas. 

“É um avanço muito grande para que a gente evite a chamada nulidade algibeira, ou de bolso: se for desfavorável a mim, puxo do bolso para questionar. É um termo usado inclusive no STJ (Superior Tribunal de Justiça). Nada mais é que um comportamento contraditório, que o direito não alberga”, explica. A contradição advém do fato de a parte apenas investigar o árbitro após ser derrotada na arbitragem, quando tal investigação deve ser feita desde logo, no contexto do chamado ‘dever de curiosidade’ da parte. 

A professora afirma que os questionamentos de sentenças arbitrais não são comuns. Porém, no universo de ações de nulidade movidas, a parcialidade dos árbitros é recorrente. Isso porque este seria o elo mais vulnerável, especialmente quando a sentença arbitral segue todo o protocolo. “Depois que a sentença arbitral é editada, o motivo mais vulnerável é o árbitro. E aí começa-se a procurar questões, criar de forma subjetiva para dizer, aos olhos deles, que o árbitro não poderia ser árbitro.” 

Selma Lemes diferencia conflito de interesse de interesses em comum. O primeiro seria o impedimento para atuação em uma arbitragem, como quando realmente há uma relação próxima, um trabalho recente feito para uma das partes, um interesse econômico envolvido. O segundo caso se dá pela participação em bancas acadêmicas, seminários, orientação de teses e dissertações e mesmo atuação profissional em arbitragem, mas de casos distintos, pelo fato de ser a área de atuação e especialização dos atores envolvidos.  

“É algo que vem também da doutrina francesa. Nós da área jurídica transitamos no ambiente jurídico como professores, proferimos palestra, participamos de bancas de doutorado e de mestrado, participamos de lançamento de livro, escrevemos livros em obras coletivas que também tem outros advogados. E isso não é motivo para nos impedir de sermos árbitros. As empresas quando indicam árbitros, elas procuram por pessoas qualificadas na área”, ressalta a professora. 

Selma Lemes celebra ainda que o acórdão do TJSP cita um enunciado da II Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial do Conselho da Justiça Federal (CJF), que se deu em agosto de 2021. É o Enunciado 110, segundo o qual “A omissão do árbitro em revelar às partes fato que possa denotar dúvida quanto à sua imparcialidade e independência não significa, por si só, que esse árbitro seja parcial ou lhe falte independência, devendo o juiz avaliar a relevância do fato não revelado para decidir ação anulatória”.

O Enunciado 97 é outro que, no entendimento dela, deve servir de baliza para casos semelhantes: “O conceito de dúvida justificada na análise da independência e imparcialidade do árbitro deve observar critério objetivo e ser efetuado na visão de um terceiro que, com razoabilidade, analisaria a questão levando em consideração os fatos e as circunstâncias específicas”.

Neste segundo, a professora explica que, caso, durante o procedimento arbitral, como alegou o médico à Justiça, surgisse algum fato novo, deveria ter sido comunicado ao tribunal arbitral para que este chamasse um terceiro independente para avaliar a questão. Antes disso, os questionamentos devem ser feitos no momento da indicação dos árbitros. 

“Teria que ter objetado na arbitragem e não levou. O sistema da arbitragem dispõe de uma forma de resolver isso, que é a instalação de um comitê de impugnação. Ele poderia fazer uso de um incidente de impugnação em que a pedido da parte, instala-se um comitê, formado por três outros árbitros que não atuam no caso, para analisarem a questão, abrindo a oportunidade para as partes falarem, à luz da lei”, descreve. 

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