Arbitragem

Impugnação de árbitros pode se tornar casuística com PL que altera Arbitragem

Proposta fala em ‘dúvida mínima’ a respeito de parcialidade, termo que é considerado excessivamente vago

congresso Impugnação de árbitros
Congresso Nacional / Crédito: Valter Campanato / Agência Brasil

Na arbitragem, um conflito entre empresas é resolvido fora do Judiciário por um terceiro ator escolhido pelas partes: o árbitro. Essa figura deve também ser imparcial. Quando não o é, isso pode gerar a anulação da sentença arbitral. A legislação aponta parâmetros gerais para eventual impugnação. Um Projeto de Lei que tramita na Câmara dos Deputados altera alguns dispositivos a respeito do funcionamento dos critérios que definem essa parcialidade hoje. Mas há a preocupação que a mudança torne mais vagos os paradigmas atuais. 

A sentença de uma arbitragem é definitiva e não fica sujeita a recurso ou a homologação pelo Poder Judiciário. A Justiça não pode reanalisar o mérito dessa decisão, apenas se os aspectos formais foram descumpridos ou se ficaram comprovados vícios. Dentre eles, se a decisão foi dada por alguém que não podia ser árbitro, se houve um vício de consentimento, na indicação do árbitro, ou quando o árbitro diz que não tinha relação prévia com alguma das partes e depois foi comprovado que tinha.

A resposta sobre quem pode ser árbitro está no artigo 13 da Lei 9.307, de 1996, a Lei de Arbitragem. O texto define que “pode ser árbitro qualquer pessoa capaz e que tenha a confiança das partes”. O árbitro deve ser e permanecer independente e imparcial durante todo o processo arbitral. Para isso, não pode ter vinculação com as partes ou interesse no resultado do conflito. 

O art. 13, § 6°, dispõe sobre o código de ética do árbitro, sendo que este, no desempenho da função, deve atuar com imparcialidade, independência, competência, diligência e discrição. A arbitragem pode ser feita por um ou mais árbitros, instituindo-se um tribunal arbitral. Aos árbitros se aplicam as mesmas causas de impedimento ou suspeição dos juízes e para fins penais o árbitro se equipara ao funcionário público. Os árbitros têm o dever de atentar para o prazo estabelecido para exarar a sentença arbitral. Do contrário, é o árbitro responde civilmente pelos danos há a anulação da sentença arbitral.

Para além da legislação vigente, dois documentos são comumente usados como balizas mais detalhadas sobre o tema e com frequência referenciados: as diretrizes da International Bar Association (IBA, a comunidade jurídica global) sobre conflitos de interesses em arbitragem internacional, de 2014, e a nota da Corte Internacional de Arbitragem (ICC), de 2019. 

Proposta de alteração

No Brasil, o Projeto de Lei 3293/2021, de autoria da deputada Margarete Coelho (PP-PI), pretende modificar o procedimento. Mas ganhou o apelido, por parte de especialistas da área, de “PL antiarbitragem”. A norma vigente foi criada em 1996 em linha com recomendações da Uncitral, a Câmara de Direito Comercial Internacional da ONU. O projeto gerou polêmica ao sugerir, dentre outras, duas mudanças apontadas como sensíveis: publicidade de todas as decisões, incluindo valores envolvidos; e a instituição de um limite de 10 processos simultâneos para cada árbitro. Mas há outros pontos em debate. 

Gustavo Schiefler, advogado no escritório Schiefler Advocacia e doutor em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP), afirma que a imparcialidade do árbitro é um princípio que, necessariamente, por força da Lei da Arbitragem, deve ser respeitado. Inclusive, existe o chamado “dever de revelação” a quem é indicado para ser árbitro. 

Ou seja, é preciso comunicar qualquer fato que denote dúvida justificada quanto à imparcialidade e independência dele para a avaliação das partes. Se o árbitro incidir em alguma das hipóteses de suspeição e impedimento, previstas no Código de Processo Civil (CPC), entende-se que não pode ter a confiança das partes e que não poderá aceitar a função. “O raciocínio é simples: como alguém que não atende ao requisito da imparcialidade não pode ser árbitro, então a sentença por ele emanada será considerada nula. Esta solução é prevista na própria lei”, explica Schiefler. 

De acordo com ele, o que o PL 3293/2021 traz em relação ao tema da imparcialidade é um conjunto maior de restrições à atuação dos árbitros. Por exemplo, amplia o dever de revelação, prescrevendo que a pessoa deve indicar qualquer fato que denote dúvida mínima quanto à sua imparcialidade e independência, o número de arbitragens em que atua e, mais importante, que a obrigação é permanente: não se restringe ao momento anterior à aceitação da função, como é hoje, mas vale para todo o curso do procedimento arbitral.

De acordo com Gustavo Justino, professor de Direito Administrativo na Faculdade de Direito da USP, árbitro, advogado e consultor em Direito Público, o PL é controverso por elencar regras que não são muito usuais em legislações de arbitragem internacionais. Muito embora o reforço ao dever de revelação de uma maneira mais contundente é, para ele, importante. 

Ele acredita que o PL vai pressionar as câmaras a se organizarem internamente para terem parâmetros e regras mais claras de governança na arbitragem. De acordo com Justino, as câmaras muitas vezes silenciam sobre pontos como um conflito ou uma parcialidade. “Isso vai minando aos poucos o sistema.”

Ele cita as câmaras da Bovespa ou a própria CCI como bons exemplos nesse aspecto. Mas Justino defende que haja um incentivo para que todas as câmaras tenham procedimentos claros e transparentes sobre a forma como julgam impugnações com a atuação dos próprios árbitros também, um comitê. 

Contudo, o texto do PL neste ponto está longe do ideal. Gustavo Schiefler entende que “regras que ampliam o dever de revelação são bem-vindas, desde que não gerem insegurança jurídica. Além disso, é preciso ter cautela com disposições que eventualmente mitiguem a autonomia da vontade das partes”, avalia. 

Dos pontos questionáveis, está a intenção de, em vez de exigir a revelação sobre fatos que denotem “dúvida justificada” quanto à imparcialidade e independência do árbitro, passar-se a fatos que denotem “dúvida mínima”. Os especialistas entendem que a expressão deixa a ideia vaga demais, difícil de ser compreendida, o que abre espaço para decisões casuísticas. Assim, embora o professor considere louvável a busca por ampliação do dever de revelação, a legislação poderia gerar insegurança jurídica — ou seja, ir em direção oposta ao que se pretende. 

“Dúvidas mínimas sobre a imparcialidade de uma pessoa, seja qual for o parâmetro, já que se trata de conceito indeterminado, gerariam a inaptidão para a função de árbitro? Parece-me que não é o objetivo. Então, o texto do projeto, como está, poderá trazer obstáculos à fluidez do procedimento, com o aumento de impugnações inadequadas, já que não há clareza sobre o que seja uma dúvida mínima, nem o que deve ser feito a partir da revelação dela”, detalha. 

Outras regras polêmicas são as de que não poderá haver identidade absoluta ou parcial dos membros de dois tribunais arbitrais em funcionamento, sob a presunção de que isto poderia afetar a independência e a imparcialidade dos árbitros. 

Para Gustavo Justino, apesar das controvérsias, o PL tem o êxito de reforçar os deveres e responsabilidades do árbitro. Outro ponto positivo seria o trecho que impede integrantes da secretaria ou diretoria executiva da câmara arbitral de funcionar em qualquer procedimento administrado pelo órgão como árbitro único, coárbitro ou presidente do tribunal, ou ainda como patrono de qualquer das partes.

“Sempre achei absurdo. Isso é um monopólio, uma concentração que se cria. É até um pouco aviltante. As partes podem se sentir um pouco constrangidas em aceitar algumas indicações”, avalia Justino. “Ao menos durante o mandato, acho que é bem interessante que ele não receba mesmo casos. E depois deve haver ainda uma quarentena, que o PL não fixa, mas que seria super importante.”

Balizas internacionais

Existe uma tensão entre o direito das partes à revelação de circunstâncias que possam pôr em causa a imparcialidade ou independência de um árbitro, e, por outro, a necessidade de evitar impugnações desnecessárias dos árbitros de modo a salvaguardar a possibilidade dos envolvidos de selecionar livremente os julgadores que lhes compete designar.

As Diretrizes da IBA sobre Conflitos de Interesses em Arbitragem Internacional têm ampla aceitação na comunidade arbitral internacional, desde a aprovação, em 2004. Em 2014, o texto passou por uma revisão. Um dos entendimentos da entidade é que o fato de ser exigida revelação não implica a existência de dúvidas acerca da imparcialidade ou independência do árbitro. 

Na tentativa de tentar estabelecer um guia, as Diretrizes incluíram listas de situações específicas que indicam se é justificável, ou não, a revelação ou desqualificação de um árbitro. Essas listas se assemelham a um semáforo: sinal vermelho, laranja e verde para situações de conflito evidentes, ambíguos ou inexistentes, respectivamente. As Diretrizes não têm força de lei, nem prevalecem sobre qualquer legislação nacional aplicável ou sobre regras arbitrais escolhidas pelas partes. 

Por exemplo, o sinal vermelho estabelece como irrenunciável quando o árbitro tem interesse financeiro ou pessoal significativo no sucesso de uma das partes ou no resultado da arbitragem. A vermelha renunciável, por sua vez, identifica situações sérias, mas não tão graves, como quando o árbitro prestou assessoria jurídica, ou deu parecer, a respeito do litígio a uma parte ou a uma afiliada de uma das partes. 

A laranja aponta casos como quando o árbitro foi nomeado, nos três últimos anos, como árbitro em duas ou mais ocasiões por uma das partes ou por uma afiliada de uma das partes. A verde, por fim, enumera fatos que o árbitro não tem dever de revelar, como quando ele e o mandatário de uma das partes já atuaram juntos como árbitros.

A CCI, por sua vez, exige que todos os candidatos a árbitro preencham e assinem uma Declaração de Aceitação, Disponibilidade, Imparcialidade e Independência. “Em caso de dúvida, o árbitro ou o candidato a árbitro deve optar por fazer a revelação.” 

Da mesma forma que a IBA, a CCI defende que uma revelação não implica necessariamente a existência de conflito. “Os árbitros que fazem revelações, ao contrário, consideram-se imparciais e independentes, apesar dos fatos revelados.” E, embora a não revelação de fatos não seja, por si só, motivo para desqualificação, ela deve ser levada em consideração na avaliação de uma objeção à confirmação ou para uma impugnação.

Todo árbitro e candidato a árbitro deverá avaliar quais as circunstâncias eventualmente existentes poderiam colocar em dúvida a independência aos olhos das partes ou suscitar dúvidas razoáveis sobre a imparcialidade. A CCI também elenca alguns exemplos que podem levantar essa suspeição, como quando o árbitro ou o candidato a árbitro, ou o escritório de advocacia de que faz parte, é ou foi representante legal ou consultor de uma das partes ou de qualquer das afiliadas. 

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