Resolução de conflitos

Com segurança jurídica, arbitragem na administração pública se expande

Instituto envolvendo o poder público tem singularidades, como a exigência de transparência nos atos

arbitragem tributária
Crédito: Pixabay

A arbitragem é um meio alternativo de resolução de conflitos que se consolidou no Brasil entre atores privados. Mais recentemente ganhou espaço e atenção também na administração pública pelo potencial que tem de fugir da morosidade da Justiça e com julgadores que conhecem as especificidades dos temas tratados, evitar prejuízos como obras paralisadas, licitações suspensas, atrasos em entregas e conclusões de infraestrutura, por exemplo.

Quando ainda era ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas exaltou o papel da arbitragem como fórum adequado para dirimir questões envolvendo concessões. Nas palavras dele, o instituto dá “enorme conforto” para os investidores estrangeiros que desejam aplicar capital no país. O então ministro também afirmou que a arbitragem não diminuiu o papel das agências reguladoras. “Se a agência não resolver, se ainda houver dissenso entre as partes, ninguém quer ficar anos e anos esperando na Justiça.”

Especialistas ouvidos pelo JOTA afirmam que a opção é vantajosa de muitas formas e que, para que funcione tendo o poder público como uma das partes, é preciso que câmaras e árbitros entendam as singularidades envolvidas. Um deles aponta que aspectos da arbitragem na administração pública já tem, inclusive, influenciado positivamente a arbitragem comercial.

Em 2019, o governo federal editou o Decreto 10.025, que tratou da arbitragem com a administração pública, mas para alguns setores específicos, ligados à infraestrutura — portuário e de transporte rodoviário, ferroviário, aquaviário e aeroportuário. O texto é considerado um marco, mas, antes ainda, a reforma legislativa de 2015 é tida como um divisor de águas para a matéria.

A especialista em arbitragem e integrante do Comitê Brasileiro de Arbitragem (CBAr) Ana Marcato explica que a modalidade com a administração pública já era feita há muitos anos, desde antes de a lei existir, mas havia um desconforto entre os atores públicos. “A alteração da Lei de Arbitragem trouxe esse primeiro marco mais importante. O ponto é que havia uma grande insegurança dos operadores do direito do setor público sem um respaldo legal para garantir o princípio da legalidade”, pondera.

Em 2015 veio, então, a regulamentação sobre a matéria, que serve de forma geral para todo e qualquer procedimento arbitral, com a possibilidade expressa de a administração pública regular os conflitos por meio de arbitragem. “Isso resolveu o problema do princípio da legalidade e, a partir dali, já teve um grande aumento de utilização.”

Quando houve a reforma da Lei de Arbitragem de 2015, surgiu uma especificidade, recepcionada pelo Decreto de 2019. A norma dispõe que a arbitragem envolvendo a administração pública é pública, quando a prática corriqueira é que as arbitragens comerciais sejam confidenciais. A regra da publicidade na arbitragem decorre do princípio constitucional da transparência, da própria publicidade da administração.

“O decreto definiu: quem são os destinatários da publicidade e o que significa esta publicidade. Com isso, essa prática da arbitragem pública começa a se expandir. A própria arbitragem comercial, sobretudo a societária, já se pretende pública”, destaca o advogado Gustavo Justino de Oliveira, pós-doutor em Arbitragem Internacional pelo Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo-Alemanha).

Para a arbitragem societária, segundo ele, a CVM também tem discutido um ato normativo sobre o tema. “É um ganho muito bom para a arbitragem, porque a torna mais transparente. O resultado da arbitragem acaba sendo comunicado e você começa a gerar uma jurisprudência, ao saber exatamente o que é decidido, quem decide, como decide.”

Nesse contexto, de 2015 para cá, com mais força desde 2019, ele avalia que houve uma “evolução muito grande, muito rápida, muito intensa” na arbitragem envolvendo pessoas de direito público. Para ele, “a administração pública federal assumiu quase como uma política de gestão de contrato, de conflitos contratuais”. Houve, ainda, a edição de uma lei que tornou possível a arbitragem e a mediação para definir indenizações de desapropriações. Neste ponto, ela ainda não está sendo aplicada com força, mas ele entende ser mais um incentivo, uma autorização legal para além dos conflitos contratuais.

A advogada e professora Selma Ferreira Lemes produz, anualmente, um estudo a respeito do tema que se tornou referência para a academia e é um dos mais tradicionais do mercado. Em 2019, ela apurou 48 novos procedimentos arbitrais tratando de administração pública. Isto representou um crescimento de 6,73% desde 2018. No estudo mais recente do “Arbitragem em Números e Valores”, são 56 novos processos, o equivalente a um crescimento ainda maior: 16,66%.

Na comparação com os dados da iniciativa privada, o número pode parecer baixo. Mas os especialistas e profissionais da área concordam que, na realidade, é relevante. “Esse número é bastante expressivo se a gente pensar que a lei é de 2015. O que se observa é que a maior parte dos casos são para discutir contratos de concessão pública ou de parcerias público-privada. Então os números chamam realmente a atenção. E há espaço para aumentar”, diz Ana Marcato.

Gustavo Justino segue linha semelhante. “Veio para ficar arbitragem com a administração pública”, conclui Marcato. Para ela, a contingência da pandemia potencializou esse cenário. “Com a Covid-19 nesses dois anos, e daqui a pouco batendo três, o fato é que muitas áreas que envolvem concessões públicas, muitos contratos acabaram sendo descumpridos, ou acabou-se requerendo reequilíbrio econômico financeiro e muitos desses contratos são firmados com entes públicos. Imagino que muitos deles possam estar envolvidos em cláusulas arbitrais e gerarem conflitos na arbitragem a serem resolvidos”, diz.

Especificidades

Apesar das particularidades que a arbitragem envolvendo a administração pública tem em relação àquela feita apenas com entes privados, a avaliação é de que alguns desafios historicamente postos já foram superados. O primeiro seria justamente o estranhamento com a arbitragem por parte dos gestores públicos, e também a diferença de atuação quanto ao Judiciário, que prevê prazos em dobro, dilatados, e recursos infindáveis.

Como regra geral, há a necessidade de que a arbitragem trate de conflitos que envolvem direitos patrimoniais disponíveis. “Então há muita indisponibilidade quando a parte é a administração pública”, pontua Gustavo Justino. Ele explica que, no caso do Direito Privado, geralmente a lei detalha aquilo que não pode ser tratado. “Mas no Direito Público essa questão não é tão fácil de resolver, e vai depender sempre do caso.”

Justino enfatiza, também, outro aspecto particular. Existem temas mais complexos quando a administração pública é uma das partes. “Há temas muito sensíveis nos conflitos, em que, por exemplo, tocam o meio ambiente, direitos de populações ribeirinhas, de quilombolas. Ou seja, a arbitragem do contrato daquele conflito que envolve a construção da infraestrutura muitas vezes vai ter impactos em interesses e áreas sensíveis”, ressalta.

O profissional tem defendido, então, que mesmo em se tratando de direitos patrimoniais disponíveis, o tribunal arbitral deva ser aberto à sociedade para permitir a intervenção de terceiros. “Com uma espécie de amicus curiae, para proteção de direitos indígenas, por exemplo”.

Todos os advogados ouvidos também mencionam terem observado o aumento de agentes públicos em congressos da área. A Procuradoria-Geral de São Paulo (PGE-SP), por exemplo, instituiu um núcleo específico para tratar do tema.

Desafios

Ficam ainda algumas questões em discussão. “Dois pontos que entendo hoje como mais desafiadores é, primeiro, a questão de alocação orçamentária, e, em segundo lugar, a questão da escolha do árbitro e a forma como o árbitro lida com as questões públicas”, elenca Ana Marcato.

Sobre os recursos destinados, ela explica que todo o procedimento arbitral demanda que o ente estatal pense em quanto vai gastar. Entes estatais precisam de dotação orçamentária prévia definida, o que nem sempre é possível na arbitragem. O procedimento é flexível, imprevisível do ponto de vista de necessidade de eventual perícia, por exemplo.

“As arbitragens estão crescendo, então é um desafio, mas não é impeditivo”, diz. “Com a prática o ente público vai se acostumando e já vai prevendo uma dotação orçamentária específica e destinada para os contratos que sabe que têm cláusula arbitral e vai se organizando. Com o passar do tempo, isso vai ficando mais claro.”

No último ponto, a questão do accountability sobre o manejo das questões de interesse público e como escolher árbitros afeitos a essas questões. De novo, não é um impeditivo. Cada vez mais as câmaras estão se especializando em lidar com conflitos arbitrais do tipo.

Precatórios

Pela Constituição Federal, a Fazenda Pública, quando condenada, arca com os custos por meio de precatórios, sem ter de fazer um pagamento imediato. E essa é uma discussão que acontece também no meio da arbitragem, ou seja, como funciona o ressarcimento em caso de derrota?

Os especialistas explicam que há divergências de entendimento em relação a isso. Uma linha entende que o pagamento também se dá por meio de precatório, porque decisão diferente violaria o princípio da isonomia, impessoalidade, a moralidade, impressos na Constituição.

“Outro grupo defende que, da mesma forma que o Poder Público paga outras contas sem precatórios, como em desapropriações, em acordos, em reconhecimento de dívida, porque não quando é condenado em sentenças transitadas em julgado de procedimentos arbitrais?”, aponta Marcato.

Segundo ela, é possível observar, em leitura de alguns julgados do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), uma mitigação da obrigatoriedade de pagar por precatórios em casos específicos. O TJSP tem entendido que o poder público pode pagar diretamente o ente privado em casos de prestação de serviços no curso de um contrato administrativo, por exemplo.

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