Tramitação no Congresso

PEC da Relevância traz risco de insegurança jurídica

De volta à Câmara, proposta pode transformar questões federais em estaduais, dificultar o acesso à Justiça e desrespeitar o princípio da isonomia

IRELGOV
Prédio do Congresso Nacional. Crédito: Pixabay

O Judiciário brasileiro pode passar por uma mudança significativa – e controversa – nos próximos tempos. Uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) em debate promete causar grande impacto no Superior Tribunal de Justiça (STJ). A chamada PEC da Relevância foi aprovada no Senado no começo de novembro. Como sofreu modificações, voltou à Câmara dos Deputados para análise.

A intenção seria descongestionar o STJ. Afinal, só em 2020, foram distribuídos 354.398 processos à sobrecarregada Corte – uma média de 10.739 para cada um dos 33 ministros do órgão. O texto indica a criação de filtros para que um recurso seja admitido nesta instância. Em uma nova etapa, o recorrente precisaria demonstrar a relevância de seu caso e submetê-la à análise do tribunal. O voto de dois terços dos juízes, a exemplo de três dos cinco ministros de uma das turmas, já veta a apelação.

A proposta, entretanto, trouxe questionamentos porque poderia retirar a garantia de uniformidade da aplicação da lei nacional em todos os Estados pelo STJ e trazer um instrumento de viés subjetivo e não isonômico para a escolha dos recursos a serem julgados. “Isso deverá causar uma grande insegurança jurídica. Afinal, nunca se sabe o que o relator vai aceitar ou não como relevante, qual será o critério. Trata-se de mais um filtro para o cidadão”, acredita Christina Aires Correa Lima, advogada da Confederação Nacional da Indústria (CNI).

Um dos pilares do princípio federativo é, justamente, a uniformidade da aplicação da norma federal e, a PEC transformaria questões federais em estaduais, que poderiam ser decididas de forma distinta pelos 27 Tribunais de Justiça ou pelos cinco Tribunais Regionais Federais. “A competência do STJ é unificar a interpretação das leis federais. Qual lei federal não é relevante para a uniformidade de interpretação? Questões nacionais não podem se tornar estaduais. Não há lógica em existir uma compreensão no Piauí, outra em Minas, outra no Amazonas…”, explica a advogada.

As alterações ocorridas no Senado ajudaram a tornar o texto menos amplo e delimitaram uma série de situações em que o recurso será considerado automaticamente relevante. São elas: ações penais, ações de improbidade administrativa, causas de valor superior a 500 salários mínimos, ações que possam gerar inelegibilidade e hipóteses em que o acórdão recorrido contraria jurisprudência do STJ.

O advogado Nabor Bulhões, presidente da Comissão Nacional de Defesa da República e da Democracia e membro honorário vitalício da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), foi relator de uma comissão de juristas designada pelo conselho da entidade para tratar do assunto no Senado e apresentar propostas, depois acolhidas pela Casa. 

“Sou contra a arguição de relevância com a conformação ampla e genérica como aprovada pela Câmara. Os tribunais estaduais não estão preparados para proferir decisões definitivas em temas de Direito federal infraconstitucional, que afetam profundamente nossas vidas. Mas, se o Congresso deliberar pela sua instituição, que seja com os condicionamentos estabelecidos na versão aprovada no Senado”, atesta. 

Aqueles que conhecem a fundo a história do STJ assistem a uma espécie de repetição do passado e temem pela perda da função original do órgão. Criado pela Constituição de 1988 e instalado no ano seguinte, o STJ apareceu como uma saída para desafogar o Supremo Tribunal Federal (STF). 

“Em 1977, foi criada a arguição de relevância no Supremo, pois os onze ministros não conseguiam dar vazão à grande quantidade de recursos. Mas pouquíssimas arguições eram admitidas, o que causou uma revolta nos operadores do Direito”, conta Marcelo Ribeiro, ex-ministro do Superior Tribunal Eleitoral (TSE). “Em razão dessa pressão, criou-se o STJ, para uniformizar a aplicação das leis. Não deixa de ser irônico que se venha a falar, agora, novamente, em arguição de relevância”.

Vale lembrar que já existe um mecanismo em prática no STJ que busca aliviar o vultoso número de pendências por lá. Trata-se do Recurso Repetitivo (RR), que representa um grupo de recursos com teses idênticas. O presidente ou vice-presidente do tribunal de origem escolhe dois ou mais que possuam fundamento em uma questão igual. Assim, os demais recursos sobre o mesmo tema têm a tramitação suspensa e, após julgamento, a mesma solução é aplicada ao grupo.

“Desta forma, racionaliza-se o processo e não se barra o acesso à Justiça, um direito fundamental. Em vez de retirar a matéria do STJ, como pode acontecer com a PEC, ela chega até lá para apreciação, mas uma vez só. Aplica-se a decisão para todas as cortes e resolve-se um problema de massa”, diz a advogada da CNI. 

Com a volta à Câmara, a PEC 209/2012 deve gerar mais discussão. Ainda existe o receio da mudança trazer um viés subjetivo e não isonômico para a escolha dos recursos a serem julgados. Além disso, apesar das mudanças no Senado, muitos defendem que seguem presentes as inconstitucionalidades da proposta.

“Os bens mais caros à vida, embora assegurados pela Constituição, estão regulamentados pela legislação federal infraconstitucional. Isto impõe a existência de um tribunal com competência para julgar recursos que possibilite a garantia da inteireza do Direito federal e a uniformização de sua interpretação e aplicação em todo o território nacional. Não sendo assim, haverá o risco de estadualização do Direito federal com tribunais falando diferentes linguagens. Seria uma tragédia. Se não conseguirmos garantir esse controle, essa uniformidade, teremos um problema sério com a desfuncionalização do sistema”, afirma Nabor Bulhões, completando: “Precisamos acabar com essa ideia de fazer reformas no Judiciário para os juízes. Elas devem ser pensadas para a sociedade”.

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