

Criada para incentivar a profissionalização e a empregabilidade de jovens, e voltada para o atendimento da demanda do país por trabalhadores qualificados, a legislação de aprendizagem profissional é alvo de propostas para ser modernizada no Congresso Nacional.
Empresas de médio e grande porte devem contratar jovens com idade entre 14 e 24 anos como aprendizes, com contrato de trabalho de até três anos. O objetivo é capacitar os estudantes na instituição formadora e na empresa, combinando formação teórica e prática.
Pelas regras atuais, as empresas devem ter entre 5% e 15% de aprendizes em relação ao número de funcionários cujas funções demandam formação profissional metódica. O aprendiz deve ter idade entre 14 e 24 anos, estar matriculado a partir do 9º ano do ensino fundamental/Educação de Jovens e Adultos (EJA) ou já́ ter concluído o ensino médio.
No entanto, alguns dados mostram as distorções sofridas na aprendizagem no decorrer dos anos. O país tem cerca de 450 mil aprendizes. Desses, 60,4% trabalham em áreas administrativas – funções menos especializadas e que logo deverão ser automatizadas. Isso contribui para os baixos níveis de empregabilidade: apenas 44% estão empregados um ano depois de encerrado o contrato; só 14% na mesma empresa e 7% na mesma ocupação.
Dados como esse indicam que o programa precisa ser modernizado para que jovens profissionais sejam efetivamente formados para o mercado de trabalho, com excelência, abrindo oportunidade de contratação definitiva ao fim da aprendizagem.
Para mitigar essa disfunção na empregabilidade dos jovens, tramita no Congresso o projeto de conversão em lei da Medida Provisória (MP) 1.116/2022, publicada no início de maio.
A MP tem o objetivo, dentre outros pontos, de ampliar o acesso de adolescentes e jovens ao mercado de trabalho por meio da aprendizagem profissional; garantir o cumprimento integral da cota de aprendizagem profissional; ofertar incentivos para a regularização da contratação de aprendizes; e estabelecer procedimento especial para regularização da cota de aprendizagem profissional dos setores que apresentem baixa taxa de contratação de aprendizes.
Para tanto, a Medida Provisória prevê, por exemplo, a possibilidade de aproveitar a carga horária de qualificação prévia na parte teórica da formação profissional de aprendiz, caso ele tenha concluído o curso na mesma área em até um ano antes do contrato da aprendizagem; e o incentivo para continuidade dos estudos ao permitir a prorrogação do contrato da aprendizagem por mais um ano para aqueles que prosseguirem com uma formação, como uma graduação tecnológica, na área de atuação.
Segundo a Confederação Nacional da Indústria (CNI), a modernização da aprendizagem profissional proposta pela Medida Provisória confere maior efetividade ao Programa, pois fomenta a contratação dos jovens que estão ou passaram por vulnerabilidade social; possibilita a ampliação da vigência do contrato de aprendizagem; e permite que as empresas regularizem pendências relativas à aprendizagem, trazendo mais eficiência e eficácia ao Programa.
Até a edição da MP, o prazo máximo de contrato de aprendiz era de dois anos, de forma que o estudante que começa aos 14 anos terminava a experiência ainda menor de idade, não podendo ser efetivado em boa parte das funções.
Na visão de Hélio Zylberstajn, professor sênior da Faculdade de Economia da USP e coordenador do Salariômetro da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), é necessária uma reforma estrutural para lidar com o que chama de “aprendizagem light”.
“A MP tem aspectos positivos, como a contabilização em dobro desse público para a cota de aprendizes, mas ela tem um problema. Ela parte do seguinte: o jovem tem dificuldade de se inserir no mercado de trabalho, mas vamos manter esse programa de aprendizagem light e resolver apenas situações de extrema carência”, disse. “Como você vai formar mão de obra de excelência contratando aprendiz por um ano sendo que ele passa duas tardes no centro de formação e três na empresa?”, questionou.
Hélio Zylberstajn volta aos anos 40 para explicar a trajetória da aprendizagem no país e porque a questão pode ser mais profunda do que parece. Segundo o economista, à época a CLT fez uma lista pequena de ocupações que precisariam passar por um período de aprendizagem longo, como por exemplo a de torneiro mecânico.
“Isso acabou gerando no Brasil um segmento no nosso sistema educacional muito qualificado, ainda que muito pequeno, que são as escolas técnicas” disse.
O professor explica que as empresas nas quais houvesse ocupações na pequena lista da CLT tinham que contratar 5% de aprendizes. “O Estado garantia a renovação da mão de obra qualificada para a indústria”, afirmou. Segundo ele, foi isso que permitiu o desenvolvimento do Sistema S, por exemplo, em 1942.
O projeto idealizado nos anos 40 só passou por mudanças mais profundas durante o Governo Lula, quando aquela cota que era garantia de fornecimento passou a ter foco apenas na contratação de jovens – e a lista de ocupações especializadas passou ao total de ocupações previstas na CLT.
“Calcula-se que exista 1 milhão de vagas a serem preenchidas”, disse Zylberstajn. “Naquela época, a cota de 5% fazia sentido porque era um número pequeno de ocupações. Perdeu-se nesse processo completamente o conceito de aprendizagem”, afirmou.
Para lidar com as distorções, o professor da USP defende a transformação do ensino médio, acadêmico, em profissionalizante. “Toda escola formaria aprendizes, que aprenderiam as matérias e uma ocupação”, disse.
Em outras palavras, é preciso estimular a contratação em atividades fins das empresas e fornecer uma formação de qualidade em instituições especializadas. Além disso, para aumentar o número de jovens em situação de vulnerabilidade nos programas, que geralmente chegam com déficits de aprendizagem, é preciso criar incentivos.
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) defende o processo de aprendizagem baseado em “diálogo social, definição clara de papéis e responsabilidades, estabelecimento de marco legal e arranjos de financiamento”.
“Uma aprendizagem de qualidade é um mecanismo sofisticado baseado na confiança mútua e na colaboração entre as partes interessadas, isto é, entre aprendizes, empregadores, trabalhadores, governos e instituições de formação”, disse a instituição em nota.
Segundo a OIT, países de todos os níveis de desenvolvimento têm colocado a aprendizagem como uma das prioridades de suas agendas políticas, reconhecendo seu potencial para suavizar a transição dos jovens da escola para o mundo do trabalho.
“A capacidade que a aprendizagem de qualidade possui para abordar os desafios relacionados ao emprego juvenil evidencia a necessidade de melhorar a variedade de sistemas de aprendizagem existentes no mundo”, diz a nota.
É justamente o que defende o diretor-geral do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), Rafael Lucchesi. Ele acredita que o caminho para resolver o problema é fortalecer o caráter educacional da aprendizagem profissional, aumentando sua qualidade por meio da adoção de dispositivos que viabilizem e estimulem as empresas a concentrar seus programas de aprendizagem profissional nas áreas fins de atuação, com desenvolvimento de perfis de profissionais alinhados às competências requeridas para aumento da produtividade e competitividade das empresas.
“Isso ampliará o interesse das empresas em investir na contratação de aprendizes, seguindo as tendências observadas no cenário internacional”, disse.
Na União Europeia, por exemplo, 86% das empresas contratam aprendizes buscando garantir funcionários qualificados, 62% para selecionar os melhores e 45% visam a melhorar a produtividade.
“Este reconhecimento ajuda a explicar por que na Suíça o percentual de aprendizes em relação ao número total de trabalhadores é de 4,4%, na Austrália é 4%, no Canadá 3%, Reino Unido 2%, Itália 2,4% e no Brasil o índice alcança apenas 1%”, lamentou.
Por isso, um dos pleitos do Senai é a aprovação definitiva da ampliação para três anos do tempo de contrato, como prevê a Medida Provisória, viabilizando a integração do ensino médio e do itinerário de formação técnica com a aprendizagem.
Em contraponto ao argumento de que a MP vai reduzir a quantidade de aprendizes, Lucchesi afirma que a inclusão do quadro de profissionais com formação de técnico e tecnólogo para o cálculo dos 5% a 15% da cota deve aumentar em 156 mil o número de vagas.
Ainda na ausência de uma lei do aprendiz bem definida, André Valentim, gestor de Recursos Humanos da Ruplast, definiu práticas que aumentaram o aproveitamento de jovens aprendizes na empresa em que trabalha.
“Eu acho que as empresas entendem muito negativamente o projeto de Jovem Aprendiz, como uma obrigação. Sempre como cota. Isso termina sendo repassado de forma cultural aos gestores de todas as áreas”, disse. Segundo ele, esta mentalidade faz com que o aprendiz chegue de forma “distorcida” ao setor.
Para mitigar esse efeito, Valentim, que também já treinou mais de 2.000 jovens em uma instituição de preparo para o mercado de trabalho, trouxe o gestor para perto no processo de seleção.
“Em outras empresas, o RH faz o processo de seleção e despeja o profissional no setor. O aprendiz fica ali, tirando xerox, fazendo um serviço muito simplório”, lamentou. “O ideal é envolver o gestor da área no processo de seleção, escolhendo o jovem mais indicado para o que a área precisa”, prosseguiu.
Ele afirma que o método garante a efetivação de 80% dos aprendizes que passam pela Ruplast. “Mesmo os que não ficam, é muito gratificante o retorno. “Não tenho dúvidas de que estarão mais preparados para o mercado de trabalho”, completou Valentim.
Iniciativas individuais como a de Valentim são louváveis. Mas só com uma política ampla de inclusão no mercado de trabalho, que passa pela modernização da Lei do Aprendiz, é possível vislumbrar um futuro mais promissor para os jovens brasileiros.