Lavagem de dinheiro

Reporte de transações suspeitas ao Coaf é urgente no mercado de criptomoedas

Mesmo sem regulamentação, especialistas defendem permissão a exchanges de comunicar transações suspeitas

criptoativo transações suspeitas
Crédito: Unsplash

A Lei 14.478/2022, que oferece diretrizes para a atuação de corretoras de ativos virtuais, obriga as exchanges a manter registro das transações no Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), órgão responsável por fiscalizar e combater a lavagem de dinheiro e o financiamento ao crime organizado e o terrorismo. A nova legislação, que foi sancionada em dezembro de 2022 e entrará em vigor em junho deste ano, será aplicada somente a crimes praticados por corretoras (exchanges) com cadastro no Brasil.

O especialista em mercado de criptomoedas Isac Costa, que é advogado e professor do Ibmec e do Insper, diz que a lei não terá efeitos imediatos mesmo em vigor, já que carece de regulamentação. Ele prevê que deve levar quase dois anos para que a regulamentação seja finalizada e as primeiras exchanges já tenham licença para operar. 

Segundo Costa, trata-se de um tempo considerável para se esperar a obrigatoriedade de reporte de operações suspeitas ao Coaf, diante do ‘elevadíssimo’ risco desse mercado, cujo volume transacionado aumenta a cada ano, em especial no Brasil. Uma das maiores preocupações de autoridades sobre o mercado cripto é a facilidade para o cometimento de crimes como a lavagem de dinheiro e o  financiamento ao terrorismo, principalmente por não se ter informações sobre o cliente final.

O especialista critica a decisão de agosto de 2022 do Coaf que bloqueia o acesso de exchanges ao Siscoaf, sistema de comunicação de operações suspeitas de lavagem de dinheiro do órgão. “A decisão do Coaf carece de motivação pública e é inoportuna, por transmitir uma mensagem negativa aos agentes de mercado, buscando apoio em uma lei que demorará uma ‘eternidade’ para ter algum efeito prático”, destaca o especialista. Costa complementa ainda que exchanges que investiram em sistemas de comunicação, preocupadas em atuar em conformidade com a regulação, foram prejudicadas com a mudança.

Eduardo Dotta, professor de Direito do Mercado Financeiro do Insper, embora discorde de que o mercado cripto seja “um bom lugar” para lavagem de dinheiro, por haver lugares mais propícios como o de artes, joias, animais e imóveis, considera a comunicação de corretoras de criptomoedas ao Coaf “importantíssima”. “A exchange informar operações com indícios de irregularidades é fundamental no marco em construção, não só por questão de lavagem de dinheiro, mas também por outros crimes como sonegação fiscal”, complementa.

Dotta elogia o movimento de algumas empresas do setor em construir documentos de autorregulação do sistema de criptomoedas e destaca que se trata de uma “barreira” de qualidade de compliance e governança, cujas empresas que adotarem terão marca de distinção no mercado.

Experiências internacionais

Na visão de Guilherme Cremonesi, especialista de Direito Penal Econômico e sócio da Finocchio & Ustra Advogados, por não serem físicas e terem surgido com o intuito de serem moedas globais não regulamentadas, as criptomoedas trazem elevado risco para fraudes e uso para crimes como de lavagem de dinheiro. “Por isso, há um movimento global (liderado pelo Grupo de Ação Financeira Internacional – Gafi) buscando construir uma regulamentação mínima para esse sistema. Entre os países mais avançados nessas discussões estão os Estados Unidos”, diz.

Há países como Portugal, em que não há legislação específica, nem qualquer garantia legal para movimentações envolvendo criptomoedas. Em nove nações, incluindo a China, o uso de moedas virtuais é proibido. Já em países como o Brasil e a Inglaterra busca-se uma regulamentação mínima para o sistema de ativos digitais.

Com a nova lei, as exchanges passam a ter que identificar clientes e ter o registro de transações de troca de moeda por cripto, entre outras obrigações. No entanto, a norma não abordou a rastreabilidade das operações com moedas virtuais. 

“Teoricamente, a rastreabilidade das transações acaba sendo efetivada pelo próprio blockchain, tendo em vista que as transações envolvendo cripto são sempre feitas por meio dessa tecnologia”, afirma Felipe Leoni Carteiro, sócio da área de Direito Digital do escritório Rayes e Fagundes Advogados Associados. Mas ele não descarta que a questão poderá ser objeto de regulação futura.

Para a efetiva implementação da nova lei, será necessário ainda regulamentar outros pontos, entre os quais como serão feitos os registros de transações de troca de moeda por cripto e o funcionamento do Cadastro Nacional de Pessoas Expostas Politicamente (CNPEP). 

O marco legal cria o artigo 12-A na Lei 9.613/98, que trata do crime de lavagem de dinheiro, e determina que o Poder Executivo federal deve regulamentar o funcionamento do CNPEP. “Exchanges, assim como os demais setores sensíveis elencados no artigo 9º da Lei 9.613/98, deverão obrigatoriamente consultar o CNPEP para se certificar se o cliente é ou não pessoa exposta politicamente”, explica Guilherme Cremonesi, especialista de Direito Econômico Penal do Finocchio & Ustra Advogados.

Lei cria novo tipo penal

A lei brasileira criou um novo tipo penal que foi incorporado ao Código Penal e trouxe aumento de pena para os crimes previstos na Lei de Lavagem de Dinheiro quando praticados de forma reiterada e com o uso de ativos digitais.

No Código Penal, a lei criou um estelionato qualificado, em que se atribui pena de reclusão de quatro a oito anos e multa para quem organizar, gerir, ofertar ou distribuir carteiras ou intermediar operações envolvendo ativos virtuais mediante fraude.

A pena do estelionato simples é de reclusão de um a cinco anos. Segundo Cremonesi, o crime praticado com criptoativos traz outros agravos como a impossibilidade da suspensão condicional do processo e torna mais difícil a substituição da pena de reclusão por detenção, como ocorre no estelionato simples.

Um ponto da nova legislação que precisará de adaptações futuras, na visão de Maria Jamile José, especialista em Direito Penal Econômico, é a equiparação das corretoras com instituições financeiras para fins de aplicação da Lei 7.492/86, sobre crimes contra o sistema financeiro.

Impactos de mudança do Coaf para o Ministério da Fazenda 

A Medida Provisória 1.158/2023 trouxe mudanças na Lei 13.974/2020, que trata das competências do Coaf e terá influência na inteligência e fiscalização das atividades do mercado de criptomoedas. Entre os principais pontos está a transferência do conselho do Banco Central para o Ministério da Fazenda e a remoção de trecho de artigo que trata da competência do Coaf na prevenção e no combate à lavagem de dinheiro.

As mudanças dividem especialistas. Para Ricardo Inglez de Souza, sócio do IWRCF Advogados e vice-presidente da Comissão de Direito da Concorrência e Regulação Econômica da OAB-SP, o retorno do Coaf ao Ministério da Fazenda representa um retrocesso e risco de “politização” do conselho. 

“O Coaf estava em uma trajetória de ganhar mais independência ao estar vinculado ao Banco Central, que é o órgão que controla o sistema financeiro e é independente”, afirma Inglez de Souza.

Já na visão de Cremonesi e José a mudança foi positiva. Originariamente, quando foi criado em 1998, no governo Fernando Henrique Cardoso, o conselho era vinculado ao Ministério da Fazenda. Tem como função receber, armazenar e organizar informações não só do sistema financeiro, mas de outros setores sensíveis, como o de obras de arte, o de joias e o imobiliário. 

“A mudança contribuirá mais para o desenvolvimento do Coaf, pois o órgão tem atuação mais ampla e multidisciplinar”, diz Cremonesi. “O mais importante é que, mesmo com a mudança, seja garantida a autonomia do Coaf.”

Já em relação à retirada do trecho da lei que trata de competência na prevenção e lavagem de dinheiro, segundo Inglez de Souza, há brechas para questionamentos no Supremo Tribunal Federal (STF), para se defender que o Coaf não é competente para esse tipo de investigação. “Não se pode subtrair competências de um órgão sem deixar claro quem é o novo responsável”, pontua Inglez de Souza.

Para Cremonesi, é provável que houve erro legislativo sobre o trecho removido, mas que não traz resultado prático já que na Lei 9.613/98, que trata de lavagem de dinheiro expressa a competência do Coaf como órgão responsável pela fiscalização desse tipo criminal. Na visão de José, à primeira vista, a supressão da parte final do inciso parece ampliar o escopo de atuação do Coaf, que, anteriormente, tinha sua atividade de inteligência voltada para a prevenção e o combate à lavagem de dinheiro. “Agora, não parece mais existir essa limitação”, destaca a especialista.

Autorregulação do mercado de criptoativos

Antes da aprovação do Marco Legal das Criptomoedas, a Associação Brasileira de Criptomoeda (Abcripto) consolidou um manual de práticas de conduta e prevenção à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo para exchanges brasileiras. Além disso, a partir deste ano, passará a certificar as empresas adequadas à autorregulação da entidade, em processo de adesão voluntária.

Já a Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima) propôs audiência pública para discutir com o mercado regras para fundos e carteiras administradas que investem em ativos virtuais com o objetivo de proteger o investidor por meio de maior transparência das informações. O conjunto de regras de autorregulação, previsto para 2023, fará parte do Código de Administração de Recursos de Terceiros.