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Decisão inédita declarou ilegal a regra do ‘circuito fechado’ para o fretamento

Medida antieconômica da ANTT exige que viagens fretadas tenham mesmo veículo e passageiros na ida e na volta

Foto: Unsplash

Em janeiro deste ano, foi dado mais um importante passo na longa trajetória rumo à democratização do transporte coletivo rodoviário de passageiros no Brasil. 

Uma decisão inédita, proferida pelo desembargador federal Marcelo Saraiva, da 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3)1, colocou em xeque a legalidade da regra do “circuito fechado”, um dos principais entraves para o livre exercício das atividades desenvolvidas pelas plataformas de transporte coletivo de passageiros – como é o caso da startup Buser.

A decisão foi dada nos autos do agravo de instrumento interposto em um mandado de segurança coletivo impetrado pelo Sindicato das Empresas de Processamento de Dados e Serviços de Informática do Estado de São Paulo (Seprosp).2

Mas em que consiste essa regra?

A regra do “circuito fechado”, instituída por meio de um decreto federal editado há mais de 25 anos3 e disciplinado, posteriormente, pela Resolução da ANTT 4.777/2015, estabelece que, nas viagens de fretamento, os trechos de ida e de volta devem ser realizados no mesmo veículo e com a mesma lista de passageiros.

O artigo 3º, inciso XIV, dessa resolução prevê que:

“(…) na prestação de serviço de transporte rodoviário coletivo interestadual e internacional de passageiros realizado em regime de fretamento, considera-se: […] XIV. Circuito fechado: viagem de um grupo de passageiros com motivação comum que parte em um veículo de local de origem a um ou mais locais de destino e, após percorrer todo o itinerário, observado os tempos de permanência estabelecidos nesta Resolução, este grupo de passageiros retorna ao local de origem no mesmo veículo que efetuou o transporte na viagem de ida; (…)”.

Trocando em miúdos: se um ônibus fretado levar um grupo de passageiros de São Paulo ao Rio de Janeiro e deixar essas pessoas no porto para um cruzeiro de duração de uma semana, esse mesmo veículo terá que permanecer estacionado em Rio de Janeiro, por uma semana, aguardando a volta dos mesmos passageiros para, somente então, poder retornar a São Paulo. Parece absurdo, não é mesmo? Mas é exatamente isso que a regra do “circuito fechado” estabelece.

O fretador que desobedecer a essa regra pode ser autuado, e até ter o ônibus apreendido pela agência fiscalizadora durante a viagem, sob a pecha de “transporte clandestino”. Além disso, a apreensão do ônibus gera a necessidade de transbordo dos passageiros, o que muitas vezes ocorre de madrugada, colocando os viajantes em risco na beira da rodovia.

E essa regra, que, vale dizer, só existe no transporte rodoviário, aplica-se somente às viagens realizadas por transporte coletivo de fretamento (as viagens regulares, aquelas das “empresas de rodoviária”, não precisam segui-la). 

Nos dias atuais, em que a economia compartilhada veio para reduzir os custos de transações, fica praticamente impossível acreditar que uma regra assim – antieconômica, para dizer o mínimo – ainda exista. Ainda mais no caso específico do mercado de transporte rodoviário de fretamento, em que a redução dos custos é facilmente percebida ao se diminuir a ociosidade dos ônibus. 

Pois essa regra existe, mas a sociedade está atenta e clamando por mudanças. 

Há dois anos, por exemplo, a Secretaria de Advocacia da Concorrência e Competitividade (SEAE) do então Ministério da Economia, por meio da Frente Intensiva de Avaliação Regulatória e Concorrencial (FIARC), já havia declarado que a regra do “circuito fechado” é anticoncorrencial e causa um prejuízo anual ao país de cerca de R$ 1,055 bilhão.

Em extenso parecer, a SEAE classificou a regra como “bandeira vermelha”, o que significa “um ato normativo com caráter anticompetitivo”, pois “verificados fortes indícios de presença de abuso regulatório que acarretem distorção concorrencial”, “com efeitos potencialmente negativos sobre o bem-estar do consumidor”. 

A única razão de ser do “circuito fechado”, conforme também concluiu o estudo, é a criação de reserva de mercado, impedindo a entrada de novos concorrentes, retardando a inovação e a adoção de novas tecnologias, e, por conseguinte, prejudicando o ambiente de concorrência no mercado de transporte rodoviário de passageiros.

No âmbito legislativo, deputados federais estão trabalhando para derrubar a imposição do “circuito fechado” para o fretamento. Em dezembro de 2022, a Comissão de Viação e Transportes (CVT) da Câmara dos Deputados aprovou duas propostas de decreto legislativo com esse objetivo, deixando claro que a regra do circuito fechado é arcaica e importa em restrição à atividade econômica não prevista em lei.

Ocorre que, no âmbito administrativo regulatório, pelo simples fato de a Resolução ANTT 4.777/2015 exigir que o transporte por fretamento observe o “circuito fechado” – ainda que de forma completamente anticoncorrencial e inconstitucional – os fretadores que não observam tal regra são, na prática, indevidamente equiparados a transportadores clandestinos. Isso acontece embora eles detenham todas as licenças e autorizações para realizar o transporte por fretamento.

A discussão é acalorada e, enquanto o Legislativo segue curso para a busca da aprovação de lei que revogue a norma do “circuito fechado”, o Judiciário começou a dar importantes passos no mesmo sentido. A mais recente decisão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3) – na verdade, “decisões”, pois já são dois desembargadores com o mesmo posicionamento – traz um pouco de luz nessa briga.

Em 12 de janeiro de 2023, o desembargador federal Marcelo Saraiva afirmou que “o Decreto Federal 2.521/1998 e a Resolução ANTT 4.777/2015 criaram restrição ao transporte por fretamento, estabelecendo a obrigação de que este se dê apenas em circuito fechado – definido pelo inciso XIV do art. 3º da referida Resolução – sem amparo legal, tampouco constitucional5

Pouco tempo depois, em 31 de janeiro, a desembargadora federal Mônica Nobre ratificou tal entendimento, e complementou defendendo que:

a estipulação do ‘circuito fechado’ ao transporte por fretamento é desacompanhada de qualquer justificativa razoável, sendo inclusive prejudicial ao consumidor, nos termos do que recentemente constatado pela Secretaria de Advocacia da Concorrência e Competitividade (SEAE), da Secretaria Especial de Produtividade e Competitividade do Ministério da Economia (SEPEC/ME), a qual, analisando a regra do “circuito fechado” no transporte rodoviário intermunicipal de passageiros por fretamento, concluiu que o preceito cria custos de transação e operação, o que acaba impactando negativamente o preço das passagens ofertadas aos consumidores, dificultando a realização de novos modelos de negócios e a adoção de novas tecnologias – restrições que impedem a entrada de novos prestadores de serviço e que prejudicam a concorrência e o consumidor.6

Como bem apontado pela desembargadora Mônica Nobre, para além das questões regulatórias e anticoncorrenciais, a insistência na aplicação dessa regra anacrônica e antieconômica ignora, simplesmente, a existência de um importante personagem: o consumidor, maior prejudicado com a limitação do seu poder de escolha. 7

Portanto, o “circuito fechado” é uma regra restritiva de direitos, criada por decreto e sem amparo em lei, que se opõe à autonomia de vontade das partes, impede novos entrantes no mercado, limita o direito de escolha do consumidor e impõe uma venda casada de trechos de ida e volta.

Uma regra reconhecidamente anacrônica, antieconômica e anticoncorrencial não pode sobreviver à nova realidade imposta pelas novas tecnologias disruptivas.

Mas e o papel das plataformas de intermediação e vendas de viagens nesse cenário? 

A Buser, por exemplo, empresa brasileira que fomenta o transporte rodoviário, precursora do modelo “fretamento colaborativo”, tem colecionado vitórias nos tribunais. A popularização desse modelo de negócio vem facilitando o entendimento do Judiciário, que tem mostrado cada vez mais aptidão para entender seus benefícios para a sociedade brasileira, especialmente para aquela parcela menos favorecida da população.8

A tecnologia disruptiva de conexão das duas pontas – o transportador e o transportado – possibilita a otimização dos recursos ao tornar mais eficiente o encontro entre oferta e demanda, reduzindo a ociosidade das frotas dos fretadores (que é estimada em mais de 29 milhões de assentos por ano)9, assim como o custo final pago pelo viajante. 

Quando analisado sob a ótica da oferta de transporte ao consumidor, os números também chocam: de 2019 a 2021, por exemplo, o transporte fretado apresentou queda de quase 15% no número de empresas atuantes, e entre os regulares, a queda foi de cerca de 32%.

Como consequência da redução do número de empresas no setor de transporte rodoviário regular interestadual de passageiros, foi observado um aumento da concentração dos mercados, uma vez que a fração de mercados exclusivos, isto é, operados por uma única empresa, passou a ser de 73% em 2021.10

Entende-se que grande parte desses resultados poderia ser mitigado com o fim da regra do “circuito fechado”, permitindo maior liberdade econômica e atuação das empresas de fretamento, transferindo o poder de escolha da viagem ao próprio consumidor final.

De mais a mais, a conclusão é apenas uma: as restrições regulatórias impostas ao transporte rodoviário coletivo privado não possuem razão de ser e unicamente prejudicam a prosperidade do setor.

Não é de hoje que as novas tecnologias encontram resistência dos mercados tidos como “tradicionais”. Os defensores do status quo estão presentes nos mais diversos setores. Presenciamos isso nos idos dos anos 1990, quando a indústria das máquinas de datilografia resistia à nova realidade dos computadores pessoais, e a indústria da fotografia lutava para sobreviver à era das câmeras digitais. 

Em um passado mais recente, foi assim do ramo de streaming ao ramo de delivery – casos como os da Netflix, Spotify, Uber e Ifood já ganharam manchetes. Os holofotes, no momento, estão apontados para o mercado de transporte rodoviário de um país com dimensões continentais. 

Enquanto a regulação e as empresas tradicionais tendem a ignorar a evolução e a disrupção dos meios de transporte, a sociedade clama pelo livre acesso a um transporte rodoviário seguro, confortável e mais barato. 

1 Referida decisão, vale dizer, foi ratificada posteriormente pela Des. Monica Nobre, também da 4ª Turma, ao conceder efeito suspensivo ao recurso de apelação interposto pela Buser (autos n. 5001433-26.2023.4.03.0000).
2 Agravo de Instrumento n 5000213-90.2023.4.03.0000, TRF3.
3 Decreto Federal 2.521/1998:
Art. 35. Constituem serviços especiais os prestados nas seguintes modalidades:
I – transporte interestadual e internacional sob regime de fretamento contínuo;
II – transporte interestadual e internacional sob regime de fretamento eventual ou turístico;
Ill – transporte internacional em período de temporada turística;
Art. 36.  Os serviços especiais previstos nos incisos I e II do caput do art. 35 têm caráter ocasional, só podendo ser prestados em circuito fechado, sem implicar o estabelecimento de serviços regulares ou permanentes e dependem de autorização da Agência Nacional de Transportes Terrestres, independentemente de licitação, observadas, quando for o caso, as normas dos tratados, convenções e acordos internacionais, enquanto vincularem a República Federativa do Brasil.”
4 PDL 494/2020 e PDL 69/2022.
5 Agravo de instrumento n. 5000213-90.2023.4.03.0000, TRF3.
6 Efeito Suspensivo à Apelação n. 5001433-26.2023.4.03.0000, TRF3.
7 Não à toa a sentença proferida pela Justiça Federal de Porto Alegre, RS, declarou que modelos de negócios como o da Buser empoderam o consumidor, na medida em que “este, em última análise, é quem ganha com a possibilidade de utilizar de um fretamento coletivo para viajar a um mesmo destino com outros consumidores, que podem usar então de um modelo privado de transporte, caso entendam melhor e mais barato.” (Processo n. 5005487-53.2020.4.04.7100, 2ª Vara Federal de Porto Alegre/RS).
8  De acordo com a Pesquisa sobre Perfil de Usuários Buser, 62% dos usuários da Buser declararam renda mensal de até 3 salários mínimos. 
9 Quanto à ociosidade do transporte coletivo, estudo elaborado pela LCA Consultores em março de 2022 sobre a “Avaliação dos potenciais impactos da abertura do circuito de operação para atividades de fretamento turístico rodoviário” aponta que “Sob a ótica da oferta, com base em dados da ANTT, tem-se que em 2019 apenas 66,9% dos assentos ofertados em viagens interestaduais estiveram ocupados, o que representa um montante de cerca de 20 milhões de assentos vagos em todo o ano. Já no que se refere ao serviço por fretamento, cerca de 26,3% da frota das empresas está ociosa nos dias úteis, segundo levantamento de 2017 da Confederação Nacional dos Transportes (CNT). Tomando por base os dados cadastrais da ANTT, que apontam a existência de 25.449 ônibus, uma média de 42 assentos por ônibus e a hipótese que os ônibus ociosos poderiam ser utilizados ao menos uma vez por semana para realizar uma viagem de ida e volta, o serviço de fretamento acumularia uma ociosidade de 29,2 milhões de assentos por ano”. Somando-se a estimativa de ociosidade entre fretamento e transporte regular, “é possível estimar que existam mais de 48,8 milhões de assentos ociosos ao ano, o que denota o baixo aproveitamento da capacidade instalada no setor. Em termos de receita, considerando o ticket médio do transporte rodoviário de passageiros em 2019 (R$108,449), o subaproveitamento da capacidade instalada do setor se reflete em um custo de oportunidade de aproximadamente R$ 5,4 bilhões de reais para o setor de transporte rodoviário de passageiros”.
10 Dados também obtidos pelo estudo elaborado pela LCA, acima referenciado.

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