PL 6229/2005

Nova lei de falências pode dificultar crédito agrícola, apontam especialistas

Aprovado na Câmara, texto permite recuperação judicial à pessoa física que comprovar 2 anos de atividade rural

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Crédito: Pexels

A Câmara dos Deputados aprovou nesta quarta (26/08) o projeto de lei 6.229/2005, que altera a lei 11.101/2005, de falências e recuperação judicial. O texto, que agora segue para o Senado, ratifica a permissão de recuperação judicial aos agricultores que exercem a atividade há dois anos. Especialistas ouvidos pelo JOTA, entretanto, alertam que a norma trará um impacto no crédito rural, com a exigência de mais garantias do produtor nas negociações, uma vez que deixa de existir a distinção entre aqueles que atuam como pessoa física e aqueles que têm empresa inscrita.

O projeto de lei também facilita a recuperação judicial para os agricultores que tiverem dívidas de até R$ 4,8 milhões. Nesses casos, o processo terá um plano especial, nos moldes dos processos envolvendo micro e pequenas empresas. Além disso, o texto permite negociação prévia com credores, com estímulo à mediação, e facilita que empresas que passam por recuperação judicial tenham acesso a crédito.

Os produtores rurais que exercem a atividade como pessoa física e querem pedir recuperação judicial precisarão, de acordo com o PL, apresentar informações contábeis relativas a receitas, bens, despesas e dívidas para provar que trabalham no campo há pelo menos dois anos. Essas exigências, porém, são alvo de críticas. “É uma exigência da entrega de documentos que o agricultor não tem como pessoa física. Isso aumenta a burocracia”, diz Nilson Leitão, consultor da presidência da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA).

Já Pedro Fernandes, diretor de Agronegócio do Itaú BBA, considera as exigências essenciais. “Um ponto caro é quanto à obrigatoriedade da apresentação de balanços e dos fluxos de caixa dos últimos dois anos com validação de contador”, diz. “São informações primordiais para a manutenção do mercado de crédito”, afirma. “O que nós temos observado é um grande descolamento dos passivos informados pelos clientes ao longo do tempo e dos passivos registrados no plano de recuperação judicial, gerando fortes indícios de fraudes em muitos casos”.

Para quem tem registro de pessoa jurídica, mas com menos de dois anos do pedido de recuperação, será necessário apresentar a Escrituração Contábil Física (EFC).

Dois anos

Se aprovado pelo Senado, o projeto ratifica em lei o entendimento da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Em novembro do ano passado, por três votos a dois, o colegiado definiu, após a análise do REsp 1.800.032, que o produtor rural pode requerer recuperação judicial logo após o registro empresarial se comprovar exploração da atividade no campo há mais de dois anos.

Após o entendimento da 4ª Turma do STJ, vários tribunais passaram a ampliar a permissão de recuperação judicial no agronegócio. Isso trouxe impactos na postura dos credores. “Quando é feita a análise de uma pessoa física, são levados em consideração aspectos mais simples do que quando há uma análise para uma empresa”, lembra Marina Piccini, fundadora da AgroSchol, que oferece cursos sobre agronegócio. “A empresa se dispõe a financiar o produtor de uma maneira e no final é surpreendida com outros instrumentos jurídicos que não tinha mapeado inicialmente”, diz. “As empresas acabam se protegendo mais, pedindo mais garantias, com taxas de juros diferenciadas, querem remunerar esse risco maior”, destaca.

A dificuldade de acesso a crédito pelos produtores rurais pode ficar ainda mais difícil, segundo Pedro Fernandes, do Itaú BBA. “A existência dessa lei necessariamente nos torna mais seletivos”, diz. “Isso significa que para quem tem boas condições financeiras nós vamos manter o preço e o apetite de crédito, mas para quem tem alguma fragilidade financeira, a decisão acaba sendo pelo não estabelecimento da parceria”.

Segundo especialistas, há quem faça uso dessa facilidade de má fé para entrar em recuperação judicial. “Sou advogada de um credor que emprestou uma relevante quantia a um empresário que não tinha nada de produtor rural. Esse empresário comprou gado no Tocantins, se disse produtor rural e pediu recuperação judicial”, conta Laura Bumachar, sócia do Dias Carneiro Advogados. “Isso cria uma insegurança jurídica muito grande, porque meu cliente emprestou dinheiro para uma pessoa física, não para um produtor rural”.

Com relação aos produtores rurais que exercem a atividade e chegam ao ponto de precisar de recuperação judicial, o histórico geralmente é de má administração. “Costuma ser um problema interno e não propriamente do mercado”, explica Fábio Flores, especialista em recuperação judicial agro da TCP Partners, que presta assessoria para empresas que necessitam de reestruturação. “Vemos casos de empresários que são excelentes gestores de uma fazenda, sabem como produzir em uma terra e viram oportunidade de expansão em 2008 e 2009, quando havia muita liquidez”, diz. “Eles compraram quatro ou cinco fazendas e continuam produzindo como se tivessem uma fazenda, sendo que é necessária uma técnica de gestão muito mais elaborada”.

Para Pedro Fernandes, diretor de Agronegócio do Itaú BBA, o PL analisado nessa quarta pela Câmara vai beneficiar poucas pessoas, o equivalente a um número menor do que os 257 votos necessários para a aprovação. Segundo ele, essa inferência pode ser feita a partir dos relatos de produtores rurais que estariam se preparando para uma recuperação judicial e do volume daqueles com capacidade de arcar com os altos custos que o procedimento impõe.

Luciana Abreu, advogada especialista em direito empresarial e sócia do escritório Garmeiro Advogados, diz, porém, que com a eventual aprovação do PL fica a dúvida quanto aos pedidos de recuperação judicial de produtores com menos de dois anos de inscrição na junta comercial que estavam em andamento. “Os pedidos feitos anteriormente são válidos? Tem a questão temporal para saber se eles serão aceitos em razão da lei posterior”, diz.

CPR e plano especial

De acordo com o projeto de lei, ficam de fora da recuperação judicial os créditos e garantias cedulares vinculados à Cédula de Produto Rural (CPR) com liquidação física, ou seja, quando o produtor se compromete a pagar o crédito com sua colheita. A exceção é se houver um caso fortuito ou de força maior que comprovadamente impeça o cumprimento parcial ou total da entrega do produtor.

Já as CPRs financeiras, em que o produtor rural se compromete a pagar o crédito no fim da colheita com dinheiro, poderão ser incluídas na recuperação judicial.

As dívidas com cooperativas não poderão se sujeitar aos efeitos da recuperação judicial. Essa distinção veio no último parecer apresentado pelo relator, deputado Hugo Leal (PSD-RJ), que acolheu emenda apresentada pelo deputado Arnaldo Jardim (Cidadania-SP). O parecer diz: “não nos parece ainda o momento adequado para submeter esses agentes (cooperativas e entidades beneficentes de assistência social) aos institutos de recuperação judicial e falência, vez que são entidades que não são sociedades empresárias e possuem peculiaridades e características tributárias bem definidas em legislações próprias, que as impede de serem consideradas como tais”.

Outra novidade é a permissão para que o produtor rural possa apresentar um plano especial de recuperação judicial nos mesmos moldes e regras definidas para as micro e pequenas empresas. Para tanto será necessário que o valor máximo das dívidas seja de R$ 4,8 milhões. Uma das vantagens é que no plano especial as condições são estabelecidas pela própria lei. Entre elas, está o parcelamento das dívidas em no máximo 36 meses e com acréscimo de juros equivalentes à taxa Selic, hoje em 2% ao ano. Além disso, o teto de remuneração ao administrador judicial tem um limite de 2% do valor devido aos credores, e não de 5%, como nos demais casos.

“A mudança é bem-vinda, porque um dos motivos que afastam agricultores da recuperação judicial é justamente o valor que se paga ao administrador judicial”, destaca Daniel Bucar, sócio do Bucar Marano Advogados e professor de Direito Civil do IMBEC/RJ. “Essa novidade vai trazer menos burocracia e um custo menor para o pequeno agricultor realizar a recuperação judicial”.

O advogado Thomas Felsberg, sócio-fundador do Felsberg Advogados, avalia que a nova lei pode melhorar o ambiente de negócios do país. “A lei é importante porque vai eliminar uma série de gargalos na legislação atual”, diz.

Mediação e acesso a crédito

O projeto de lei permite negociação prévia entre empresa e credores antes da recuperação judicial. As tratativas ficariam sob responsabilidade do Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSC) do Tribunal competente ou câmara especializada. A negociação prévia pode ser feita de forma virtual, desde que o CEJUSC ou a câmara responsável conte com a estrutura.

“A negociação preventiva é interessante, mas o problema é que vai levar para o Judiciário, que já está cheio, um processo de negociação”, pondera Marcelo Godke, especialista em Direito Empresarial e sócio do escritório Godke Advogados. “O lado bom é que faz as partes sentarem para uma negociação em vez de entrar em uma disputa, mas essa negociação será feita pelo Judiciário, o que não faz o menor sentido”.

De acordo com Luiz Deoclécio, CEO fundador da OnBehalf Brasil, que presta serviços de administração judicial, há situações em discussão na Justiça em que uma simples conversa entre as partes teria resolvido o conflito: “Muitas vezes, a situação que vemos de litígio é a falta de comunicação ou a comunicação falha”.

Em relação ao acesso ao crédito durante a recuperação judicial, a novidade é a autorização para que um juiz permita o financiamento com prioridade ao credor em caso de falência. “Essa novidade parte da lógica de que sem empréstimo não existe recuperação judicial”, diz Pedro Teixeira, advogado especialista em insolvência empresarial que auxiliou diretamente o deputado relator, Hugo Leal, no desenvolvimento do projeto.

O financiamento pode ser realizado por qualquer pessoa, de acordo com o texto do parecer final ao PL, “inclusive credores sujeitos e não sujeitos à recuperação judicial, familiares, sócios e integrantes do grupo devedor”. Ou seja, os próprios sócios vão poder aportar dinheiro na empresa durante recuperação judicial e com a garantia de que terá prioridade para rever o valor cedido em caso de falência.

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