

Na era do home office, como as equipes não ocupam o mesmo espaço e não mais se vê o trabalho sendo cumprido – justamente o que aconteceu na pandemia da Covid-19, com a decadência do expediente presencial como regra –, algumas empresas passaram a supervisionar os trabalhadores por meio das telas dos computadores de trabalho. Esta ferramenta capaz de observar as movimentações digitais do trabalhador é chamada de bossware.
Essa é uma tendência nos Estados Unidos e na Europa – embora ainda seja cedo para afirmar o quanto ela poderá perdurar. No caso americano, uma pesquisa encomendada pelo site Digital.com com 1,2 mil empregadores que têm funcionários trabalhando de forma remota constatou que seis em cada dez deles estão usando algum tipo de software para monitorar a navegação durante o expediente.
Entre os que monitoram, 88% disseram que demitiram funcionários após implementar a supervisão digital. Metade desses patrões também afirmou que os colaboradores passam de uma a quatro horas engajados em atividades não relacionadas às suas funções – eles não foram perguntados sobre quantos estão trabalhando por mais tempo do que deveriam.
Geralmente, os programas armazenam informações sobre tempo de uso de aplicativos, número de mudanças de páginas, digitação e movimentação do mouse, períodos em reunião, mas também é possível fazer capturas de tela e ativar câmeras e microfones.
Não se trata mais da possibilidade de fiscalizar e-mails corporativos ou atividades no sistema da empresa – o que não representa qualquer novidade para empregados nem costuma levantar debate sobre sua validade –, mas de um acompanhamento que pode acontecer minuto a minuto.
A principal motivação para implementar esse tipo de ferramenta seria entender como as equipes estão gastando o tempo de serviço, segundo os empresários ouvidos pela pesquisa. Para 14% dos empregadores, o monitoramento é um segredo não compartilhado com os trabalhadores.
Diante desse movimento, alguns estados americanos têm leis determinando que os empregadores compartilhem como e quando haverá monitoramento. Esse é o caso de Nova Iorque, desde maio, além de Connecticut e Delaware, mas não há limitações específicas ao uso do mecanismo nem uma lei federal, então a maioria dos empregados no país não estão protegidos.
Por outro lado, há países que já avançaram em tratar da situação. Em Portugal, entrou em vigor neste ano uma alteração no Código do Trabalho prevendo que a direção e controle do serviço no teletrabalho devem ser exercidos, preferencialmente, por meio dos equipamentos e sistemas relacionados à atividade do trabalhador, e conforme procedimentos previamente conhecidos por ele e compatíveis com o respeito pela sua privacidade.
Também diz que o controle da prestação de trabalho, por parte do empregador, deve respeitar os princípios da proporcionalidade e da transparência, sendo proibido impor a conexão contínua durante o expediente por meio de imagem ou som – é o que diz o artigo 169-A do Código do Trabalho português.
No Brasil, a tendência do bossware já começa a ser importada. Entre os clientes da Radar Produtividade, que oferece esse tipo de serviço, há um banco varejista com contrato para monitoramento de 3 mil computadores e empresas de call center com até 700 pessoas supervisionadas. Os próximos passos são levar a tecnologia a empresas com demanda menos massiva, até de 15 computadores.
A empresa recomenda o uso da ferramenta como instrumento de gestão — e não para espionar ninguém. “Conseguimos controlar os horário que a pessoa está trabalhando, os aplicativos que ela está usando, as páginas acessadas. Se ela fica muito tempo inoperante, há um aviso. É possível saber se havia uma reunião ou se ela fez um telefonema”, explica o CEO, Antonio Villela Sequeira.
Na prática, também é possível ver as telas do computador, o que não costuma ser demandado. Já é comum também o uso para verificar se os trabalhadores estão se dividindo para prestar serviços a outras empresas – profissionais de tecnologia que abrem determinados programas que não são usados pela companhia estariam nessa lista.
“Além do controle horário, a ideia é que o gestor entenda quem é mais ou menos produtivo e possa fazer ajustes, por isso a ferramenta funciona melhor quando se trata de atividades facilmente comparáveis”, diz Sequeira. A primeira cliente da empresa, em 2018, reduziu em um terço o número de funcionários de call center ao fazer essa análise de dados.
Ainda é cedo para dizer o quanto o bossware pode se consolidar como o futuro da supervisão feita pelos empregadores, mas, por aqui, algumas disposições da legislação trabalhista podem servir de impulso para a adoção de novas ferramentas.
Uma delas é o dever de registrar a jornada de trabalho. Até o início deste ano, o teletrabalho estava entre os regimes excepcionais de controle de jornada horária pelo empregador (no artigo 62, III, da CLT, introduzido pela reforma trabalhista). Na prática, havia divergência no entendimento da Justiça do Trabalho sobre se haveria ou não dispensa do registro nesses casos.
A dúvida foi assentada com a edição de uma medida provisória, que consolidou a figura do trabalho hibrido e deu origem à Lei 14.442/2022, sancionada em setembro. Ficaram dispensados do controle de horário apenas os trabalhadores que prestam serviço em home office por produção ou tarefa. Para quem cumpre jornada, é preciso que a empresa faça o controle.
Com isso, empresas que até então não faziam esse registro precisaram passar a fazer. Ela se soma à garantia ao empregador de fiscalizar o trabalho, conforme já era disposto pela CLT, e também à chamada inversão do ônus da prova em disputas trabalhistas – isto é, cabe ao empregador mostrar que cumpriu o controle e que não houve horas extras, se isso for eventualmente pleiteado.
Além disso, a lei do teletrabalho não tratou da possibilidade de fiscalização das condições de trabalho na residência do empregado nem detalhou quais seriam limites para a supervisão à distância.
Enquanto não temos uma resposta direta, a partir do que já há tanto em dispositivos legais quanto em entendimentos sólidos da Justiça é possível traçar os limites entre o tolerável e o abusivo quando se trata de bossware.
O primeiro princípio a ser considerado são as garantias fundamentais à privacidade e à intimidade. “Hoje, se entende que ferramentas de trabalho, como e-mails e arquivos, podem ser fiscalizadas desde que isso não extrapole para a vida pessoal do empegado. Por essa lógica, os computadores corporativos também seriam abrangidos”, afirma Tatiana Bhering Roxo, advogada trabalhista especializada em privacidade e proteção de dados pessoais.
Ela aponta que esse tipo de monitoramento precisa ser pautado pela proporcionalidade – em outras palavras, para a finalidade proposta, como controle de jornada ou de produtividade, quais ferramentas são realmente necessárias.
“Ligar câmeras ou microfones ultrapassaria isso, pois além de expor a intimidade da casa das pessoas, não é uma medida proporcional para atestar se o trabalho está sendo cumprido”, exemplifica. Em eventuais disputas trabalhistas, o uso desse tipo de registros como provas também precisaria respeitar as mesmas garantias.
Novas ferramentas de monitoramento, como o registro de dados biométricos (o reconhecimento facial como forma de bater ponto fora da empresa, por exemplo) e de geolocalização dos funcionários. entram nessa lógica. Esta última, inclusive, tem sido aceita como prova de controle de ponto pela Justiça – nos casos em que o acompanhamento dos dados foi feito diretamente pela empresa.
“Há ferramentas digitais de controle de jornada de trabalho, que podem ser adotadas pelas empresas, e que trazem consigo essa funcionalidade. Nesse caso, a geolocalização poderia ser utilizada em juízo”, afirmou Nelson Mannrich, professor de Direito do Trabalho da Universidade de São Paulo, ao JOTA em reportagem que discutiu o uso dessas informações em disputas trabalhistas.
Entre os objetivos legítimos para usar a supervisão digital de maneira mais incisiva estão a prevenção ao vazamento de informações confidenciais, como relativas à propriedade industrial, e de ocorrência de ilícitos, caso em que a empresa pode responder solidariamente em eventual responsabilização civil. Novamente, os meios usados precisam ser adequados também a essas finalidades.
Outro elemento prévio a esse monitoramento é a necessidade de abrir aos funcionários sobre a ocorrência e os objetivos dessa supervisão – avisar aos empregados seria o mínimo.
A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) prevê que o tratamento de dados pessoais, com exceção de hipóteses como proteção à vida e outros casos pontuais, depende do consentimento dos titulares das informações. Quando são dados sensíveis (o que incluiria biometria) a proteção é maior, devendo ser destinada a usos específicos.
Nas relações de trabalho, não se fala em consentimento – como se fosse uma assinatura de termos de um aplicativo, em que é possível discordar. Normalmente, o fundamento legal previsto na LGPD é o legítimo interesse da empresa. Mas há um vício de consentimento nesses casos, por conta da assimetria da relação empregador e empregado”, explica Rony Vainzof, sócio do escritório especializado em proteção de dados Opice Blum, Bruno e Vainzof, em São Paulo.
Segundo ele, vale como guia o princípio da transparência adotado pela LGPD, pelo qual a finalidade do uso de dados e do monitoramento deve ser informada com clareza, de preferência de forma acessível para que todos entendam.
As empresas também precisam levar em conta que, quanto mais dados elas coletam e armazenam, mais cuidados com o tratamento e a segurança deles precisam ser colocados em prática. O que, evidentemente, tem custos.
Nessa linha, os dados não podem ser compartilhados com terceiros para finalidades distintas e devem seguir prazo de armazenamento que corresponda aos objetivos da coleta – se é para controlar jornada, não precisam permanecer no controle da empresa além do prazo prescricional para uma demanda judicial, por exemplo.
O norte para os limites ao bossware passam também, de forma bastante intuitiva, por admitir o que já não seria aceitável nas relações presenciais. “Imagine haver um supervisor ao lado da mesa do trabalhador o tempo todo, de forma ostensiva e permanente. É simples perceber que seria abusivo”, aponta Leandro Fernandez, juiz do Tribunal Regional do Trabalho da 6ª Região (TRT6) que estuda novas tecnologias nas relações trabalhistas.
“O acompanhamento ao logo da jornada, inclusive de produtividade, é aceitável, mas a gestão não pode ser feita por intimidação. Isso inclui a imposição do monitoramento como forma de ameaça ou terror constante”, completa.
A demarcação da linha entre supervisão e assédio vai nesse sentido. Inclusive, o monitoramento ostensivo, embora possa ser visto como potencialmente capaz de melhorar os níveis de produtividade de empresas, oferece riscos justamente quando essas zonas não estão bem separadas.
Em última análise, o empregador pode ser responsabilizado e condenado a indenizar ex-funcionários se for constatada a caracterização de assédio ou que adoecimentos psicológicos foram causados por esse tipo de comportamento.
Também já está consolidado que exigência de metas impossíveis e parcos intervalos para descanso ou idas ao banheiro não são toleráveis, então os mesmos parâmetros seriam aplicáveis quando esse controle é feito por programas de computador.