Análise

Mentiras, equívocos e liberdade de expressão

Em busca de uma teoria capaz de compatibilizar liberdade dos cidadãos de expressarem a sua voz sem sacrificar o conhecimento técnico

agências reguladoras
Crédito: Fellipe Sampaio/SCO/STF

O avanço do inquérito das fake news conduzido pelo Supremo Tribunal Federal jogou luz sobre um debate que demanda cada vez mais atenção de governos, cidadãos e veículos de mídia: qual deve ser a proteção constitucional conferida às mentiras e, do lado oposto, ao conhecimento técnico?

Com o avanço de campanhas de desinformação e de discursos contrários a consensos científicos mínimos, é inevitável que as democracias respondam essa pergunta mais cedo ou mais tarde. Ela envolve dois fenômenos distintos, mas igualmente importantes.

Campanhas de desinformação são caracterizadas pela divulgação de informações falsas, criadas mediante o uso de artifícios fraudulentos, de forma consciente e deliberada, e com o objetivo de causar danosi a pessoas, grupos ou instituições. Por sua vez, ataques à ciência e às áreas técnicas de conhecimento nem sempre envolvem fake news, mas, em determinadas circunstâncias, podem representar uma ameaça tão grave quanto.

Em relação às fake news, é preciso partir do reconhecimento preliminar de que o exercício do poder político pelo povo pressupõe a livre circulação de fatos, ideias e opiniões, não importa o quão duras ou críticas sejam. Por isso, a liberdade de expressão é vista como um direito fundamental de caráter preferencial, expressamente consagrado no ordenamento jurídico de inúmeras democracias, inclusive a brasileira. E, no âmbito do direito eleitoral e da arena política, adquire importância reforçada: para o pleno exercício do direito de voto, é preciso que todas as questões relevantes para o interesse público sejam discutidas à luz do dia. Qualquer atuação do Estado no sentido de limitá-la deve ser vista com restrição e desconfiança.

Por outro lado, a legitimidade do processo eleitoral e do exercício do poder político também dependem de o eleitor manifestar as suas preferências autênticas. Notícias fraudulentas levam o eleitor a tomar as suas decisões políticas com fundamento em circunstâncias inverídicas e podem, consequentemente, representar um vício na formação de vontade e opinião política. Há uma ameaça real de que as decisões mais fundamentais de uma democracia serão tomadas de forma inautêntica, sem refletir a decisão que seria tomada com acesso aos fatos verdadeiros. Se o fenômeno ocorrer em ampla escala, o processo eleitoral e o poder político perderão a sua legitimidade, credibilidade e higidez. Em tradução literal da célebre frase de C. P. Scott, editor do jornal Manchester Guardian entre 1872 e 1929, “o comentário é livre, mas os fatos são sagrados”.

Há ao menos cinco fundamentos para se evitar a repressão de afirmações mentirosas ou equivocadas: (i) atribuir a instituições políticas a avaliação do que será considerado verdadeiro ou falso pode ser perigoso e arbitrário; (ii) a regulação do discurso, pelo ônus que traz, pode ter um efeito silenciador inclusive sobre afirmações verdadeiras; (iii) as pessoas podem aprender a partir do engajamento com fatos falsos, aprofundando o seu conhecimento sobre a matéria; (iv) é importante que as pessoas saibam o que os outros pensam, mesmo quando não seja verdadeiro; e (v) a proibição às afirmações falsas pode simplesmente levá-las a serem reproduzidas de forma obscura e sigilosa, dificultando o diálogoii.

Esses argumentos são fortes, mas insuficientes para lidar com as fake news.

No cenário atual, as mentiras criadas pelo uso de artifícios fraudulentos têm se tornado cada vez mais críveis e ameaçadoras às aspirações democráticas.

Elas se tornam virais em espaço de tempo surpreendentemente curto e, por motivos ainda investigados pela neurociência, se espalham mais rápido do que as verdades, porque são mais apelativasiii.

O problema é perverso e está se agravando. Por isso, é imprudente tomar essas razões como indicativos definitivos de que atuações destinadas a combater mentiras serão sempre inadequadas. Sem elas, o mercado desregulado de ideias pode levar muitos cidadãos a aceitarem e espalharem mentiras sobre indivíduos e, de forma ainda mais grave, sobre instituições, candidatos ou ocupantes de cargos públicos, e até mesmo sobre doenças.

As fake news são um fenômeno novo e as sociedades democráticas ainda estão assimilando-o. Há um aprendizado institucional em curso e poucas respostas claras. Por isso, o tratamento adequado da matéria envolverá uma atuação coordenada do Estado, dos meios de comunicação e da sociedade civil. Mas o ponto de partida deve ser o reconhecimento de que não mais se sustenta a antiga noção de que o mercado livre de ideias é a melhor forma de depuração da verdade, especialmente em um mundo em que o excesso – e não mais a escassez – de informação representa a maior ameaça à liberdade de expressão. Trata-se do reconhecimento de que o mercado desregulado de ideias, assim como o livre mercado, possui falhas que, em hipóteses restritas, exigem a intervenção estataliv.

Não se propõe, naturalmente, a regulação de informações erradas ou falsas em todas as suas modalidades. A regulação do discurso deve se preocupar em encontrar mecanismos adequados de lidar apenas com afirmações objetivamente falsas quando criadas e divulgadas mediante o uso de artifícios fraudulentos e de maneira consciente e deliberada para causar danos a pessoas, grupos ou instituições. É esse o caso das fake news e dos deep fakes, em que há manipulação de imagens e vídeos para retratar indivíduos em situações que nunca existiram. Com o avanço da tecnologia, será cada vez mais difícil para cidadãos identificarem essas alterações fraudulentas, justificando ainda mais a regulação do discurso nesse aspecto.

O segundo fenômeno relevante engloba os ataques à ciência e às áreas técnicas de conhecimento, que não necessariamente envolverão fake news, mas que ainda assim podem trazer consequências graves sobre a legitimidade democrática. Nesse campo, deve-se cogitar da legitimidade de uma teoria da liberdade de expressão que atribua a autoridades públicas, no exercício de suas funções e em campanhas políticas, um ônus maior de veracidade e tecnicidade do que aquele que pode ser exigido de cidadãos comuns. Seria o reconhecimento de um dever democrático de embasar a sua fala e as suas condutas em informações técnicas, produzidas a partir de processos metodológicos minimamente consistentes.

O ponto é importante porque algumas lideranças internacionais têm feito afirmações que contrariam consensos científicos ou consensos de outras áreas que exigem conhecimento técnico. Nesse cenário, é preciso considerar que as teorias sobre a liberdade de expressão devem contemplar exigências mínimas de que autoridades públicas não interfiram na produção e disseminação de conhecimento técnico e não façam declarações públicas contrariando unanimidades científicas, sob pena de a democracia sucumbir ao charlatanismo populista.

Não se discute que à política e às decisões de governantes deve ser conferida flexibilidade para permitir que líderes eleitos implementem as pautas para as quais foram eleitos. Em democracias, há amplo espaço para o exercício legítimo da ideologia e discricionariedade.

Contudo, dado que é impossível que todos os cidadãos sejam experts em todas as matérias que exigem conhecimento específico, há uma evidente assimetria de informação entre os que são treinados nessas matérias e aqueles que apenas ‘receberão’ o conhecimento produzido, sem capacidade de realizar a sua própria investigação sobre a veracidade da informação. Justamente por isso, sociedades modernas não são capazes de sobreviver e prosperar sem a produção de conhecimento técnico que se sujeite a procedimentos metodológicos que assegurem a sua confiabilidade.

Por exemplo: pessoas sem qualquer deficiência visual são capazes de identificar, sem estudo prévio, árvores à sua frente. Por outro lado, um indivíduo que não tenha estudado técnicas científicas jamais seria capaz de avaliar o impacto do cigarro sobre a saúde das pessoas. Esse tipo de conhecimento é diferente daquele que pode ser apreendido por experiências pessoais. Conforme observado pelo Professor de Yale, Robert Post, algumas áreas de estudo exigem instrução técnica específica, de modo que a produção de conhecimento nessas áreas só pode ser adequadamente promovida por pessoas que tenham sido treinadas para tantov.

Reconhecer esse ponto, é certo, implica reconhecer também que nem todos os cidadãos poderão participar livre e igualmente da produção desse conhecimento. Significa, em outras palavras, “discriminar” entre discursos bons e confiáveis, quando produzidos em conformidade com essas normas, e discursos fracos e não confiáveis, quando produzidos em desconformidade com essas normas. Esse fato parece em tensão com teorias da liberdade de expressão que garantem a todos os indivíduos a liberdade de se manifestar independentemente da qualidade ou profundidade de suas afirmaçõesvi.

Contudo, o conhecimento técnico não pode ser produzido meramente por meio de um engajamento indiscriminado de todos os indivíduos. Nesse campo, o maior número de interlocutores não significa uma melhor qualidade da informação produzida. Conhecimentos técnicos não se tornam confiáveis simplesmente porque são amplamente compartilhados: são confiáveis porque se sujeitam a critérios de verificabilidade, reprodução e falseabilidadevii.

Por mais que seja inviável estabelecer essas exigências para todos os indivíduos que desejam participar do fórum público de debate, elas podem e devem ser exigidas de instituições que produzem conhecimento técnico e científico. Sem isso, não haverá conhecimento técnico para embasar discussões e debates políticos, que se degenerariam em discussões puramente ideológicas. Não se trata de uma avaliação sobre resultados em si, mas de um reconhecimento preliminar de que o que conta como informação confiável nessas áreas é apenas o que seja resultado de um processo que respeite as normas metodológicas de produção de conhecimento da disciplina.

É preciso, portanto, desenvolver uma teoria capaz de compatibilizar a liberdade dos cidadãos de expressarem a sua voz no debate públicoviii, sem, porém, sacrificar o conhecimento técnico e a veracidade de fatos.

A produção e divulgação de conhecimento técnico confiável são imprescindíveis para o autogoverno e para a própria legitimidade da democracia. Sociedades contemporâneas têm os seus rumos amplamente influenciados pelo conhecimento técnico e científico. Atribuir ao Estado a capacidade de interferir e manipular a produção desse conhecimento significaria conferir-lhe o poder de minar a capacidade dos cidadãos de formarem opiniões críticas e autônomas embasadas em fatos. A capacitação cognitiva dos cidadãos para participarem do debate público depende da produção de conhecimento técnico especializado. No mesmo sentido, se a democracia depende da subordinação do governo à opinião pública, cidadãos munidos de conhecimento técnico de melhor qualidade serão capazes de exercer esse controle de forma mais eficazix.

Assim, autoridades públicas no exercício de suas funções e em campanhas políticas, devem ter o dever de embasar a sua fala e as suas condutas em informações técnicas e verdadeiras, produzidas a partir de processos metodológicos minimamente consistentes.

Nesse cenário, quando informações divulgadas como técnicas e científicas sejam produzidas em desconformidade com os parâmetros metodológicos impostos para a produção de conhecimento em determinado campo, não devem ter a mesma proteção conferida a outros discursos. Esse tipo de proteção à circulação de conhecimento técnico legítimo requer que as cortes, ao analisarem determinada fala sobre conteúdo técnico, verifiquem se aquela informação foi produzida com observância às regras disciplinares daquela área de conhecimentox. Não é um controle do conteúdo, mas um controle da forma de produção. Nos casos em que a informação que se apresenta como técnica não tiver sido produzida consoante o método científico da disciplina, ela poderá vir a ser limitada em maior medida.

Não se desconhece que, em muitos casos, é difícil alcançar consenso científico inclusive quando a literatura científica for produzida em atenção às exigências metodológicas previamente mencionadas. Nessas circunstâncias, haverá ampla margem para que o governo exerça a sua discricionariedade. Por outro lado, quando houver consenso científico sobre determinado tema, tentativas de suprimir a produção do conhecimento ou de agir de forma contrária a ele poderá ser percebida como uma escolha ideológica, não amparada em fatos. Haverá, assim, maior espaço de controle da política pública e do discursoxi.

O presente artigo abordou dois fenômenos distintos, mas igualmente graves e, por vezes, complementares entre si. O primeiro, é o fenômeno das campanhas de desinformação, propositalmente definidas de forma restrita, para impedir a regulação excessiva do discurso dos cidadãos. O segundo, é o fenômeno de ataque ao conhecimento técnico e científico, que tem se proliferado entre lideranças mundiais. Ambos demandam respostas distintas e adaptadas à realidade de cada país.

Mas é preciso conduzir um debate que reconheça a importância dos fatos e da ciência para a definição dos rumos de uma sociedade democrática e para o pleno exercício da liberdade de expressão. Citando Hannah Arendt, “a liberdade de opinião é uma farsa, a menos que a informação factual seja garantida e os fatos em si não estejam em disputa…A verdade dos fatos informa o pensamento político”xii.

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i WARDLE, Claire; DERAKSHAN, Hossein. INFORMATION DISORDER: Toward an interdisciplinary framework for research and policy making. Council of Europe Report DGI(2017)09. 2017.

ii Cass Sunstein, Falsehoods and the First Amendment. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3426765.

iii Soroush Vosoughi, Deb Roy & Sinan Aral, The Spread of True and False News Online, 359 SCIENCE 1146 (2018); David M. J. Lazer et al., The Science of Fake News, 359 SCIENCE 1094 (2018).

iv Cass Sunstein, Falsehoods and the First Amendment. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3426765.

v “As I type these words, I gaze out at my backyard, and I know that there is a large oak in the northwest corner of my lawn. I have knowledge of this oak both because I can see the tree and because I have reason to trust my senses. My knowledge of this oak should be contrasted to my knowledge that cigarettes cause cancer. I cannot acquire the latter form of knowledge merely by observing the world and by trusting my senses. In fact I have learned about the carcinogenic properties of cigarettes by studying the conclusions of those whom I have reason to trust. We call such persons “experts”. How did these experts come to know that cigarettes are carcinogenic? Certainly not in the same way that I came to know about my oak tree. They instead deployed the full and elaborate apparatus of modern epidemiological and statistical science. This science consists of practices of knowing that are constantly expanding through speculation, observation, analysis and experiment. In this book, I shall refer to this kind of knowledge as “expert” or “disciplinary” knowledge. Any modern sociey needs expert knowledge in order to survive and prosper” (POST, Robert C., Democracy, Expertise, Academic Freedom: A First Amendment Jurisprudence for the Modern State, Yale University Press, 2012).

vi “If expert knowledge depends upon the preservation of disciplines, and if disciplines require maintenance of “proper and orderly action”, the very independence jealously safeguarded by the First Amendment is in tension with the production of expert knowledge. (…) If a marketplace of ideas model were to be imposed upon Nature or the American Economic Review or The Lancet, we would very rapidly lose track of whatever expertise we possess about the nature of the world. Contemporary technical expertise is created by practices that demand both critical freedom to inquiry and affirmative disciplinary virtues of methodological care, virtues which the philosopher Charles Peirce once called the “method of science” as distinct from the “method of authority”. The maintenance of these virtues quite contradicts the egalitarian tolerance that defines the marketplace of ideas paradigm of the First Amendment. Because the practices that produce expert knowledge regulate the autonomy of individual speakers to communicate, because they transpire in venues quite distant from the sites where democratic public opinion is forged, they seem estranged from most contemporary theories of the First Amendment” (POST, Robert C., Democracy, Expertise, Academic Freedom: A First Amendment Jurisprudence for the Modern State, Yale University Press, 2012).

vii “As Thomas Kuhn has observed, “One of the strongest, if still unwritten, rules of scientific life is the prohibition of appeals to heads of state or to the populace at large in matters scientific”. We regard scientific beliefs as reliable because they are subject to disciplinary standards of verifiability, reproductibility, falsiability, and so one” (POST, Robert C., Democracy, Expertise, Academic Freedom: A First Amendment Jurisprudence for the Modern State, Yale University Press, 2012).

viii “If the central thrust of the First Amendment is democratic legitimation, and if this value precludes content discrimination, we can begin to appreciate the full depth of the puzzle with which I began this chapter. It would at first glance appear that wherever First Amendment doctrine applies, it suppresses legal support for the disciplinary practices necessary for endowing beliefs with the reliability that defines disciplinary knowledge. (…) How then should we conceive the relationship between the First Amendment and the production and dissemination of expert knowledge?” (POST, Robert C., Democracy, Expertise, Academic Freedom: A First Amendment Jurisprudence for the Modern State, Yale University Press, 2012).

ix “Expert knowledge is prerequisite for intelligent self-governance. (…) Reliable expert knowledge is necessary not only for intelligent self-governance, but also for the very value of democratic legitimation” (POST, Robert C., Democracy, Expertise, Academic Freedom: A First Amendment Jurisprudence for the Modern State, Yale University Press, 2012).

x POST, Robert C., Democracy, Expertise, Academic Freedom: A First Amendment Jurisprudence for the Modern State, Yale University Press, 2012.

xi “There may be circumstances when disciplinary experts stand firmly united against state efforts to regulate knowledge. (…) In such circumstances, government attempts to suppress disciplinary expertise are easily exposed as purely ideological. Inchoate First Amendment instincts to protect democratic competence are fully aroused. Healthy disciplines, however, are frequently sites of controversy. Disciplines grow and develop because they encompass a vibrant “place for criticism and critical transformation” at their “heart”. If a state intervenes in intra-disciplinary controversies to enforce the views of some members of a discipline against the views of others within the same discipline, it may be difficult for a court to determine whether the value of democratic competence is truly at stake. The more divided the community of disciplinary expertise, the greater the leeway for political control” (POST, Robert C., Democracy, Expertise, Academic Freedom: A First Amendment Jurisprudence for the Modern State, Yale University Press, 2012).

xii Tradução livre. No original: “Freedom of opinion is a farce unless factual information is guaranteed and the facts themselves are not in dispute. …[F]actual truth informs political thought” (ARENDT, Hannah, Between Past and Future, 1968).