Imprensa

Liberdade de imprensa e entrevistas de terceiros

O julgamento do RE 1.075.412/PE pelo STF

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No dia 14 de agosto de 2020, o Plenário do Supremo Tribunal Federal deverá decidir sobre “a possibilidade, ou não, de responsabilizar civilmente veículo de comunicação ante a publicação de entrevista de terceiro[1]”.

Em síntese, o que está em discussão é a corresponsabilidade do entrevistador (no caso concreto, do veículo de imprensa ao qual ele pertence) pela mera reprodução das respostas dadas pelo entrevistado. A responsabilização solidária da imprensa pela publicação de entrevista, quando não há qualquer emissão de opinião por parte do entrevistador, se traduz em grave ameaça à liberdade de imprensa assegurada pela Constituição[2].

É que, em se tratando de entrevistas, a imprensa possui função de mero intermediário: limita-se a tornar pública a opinião do entrevistado, na medida em que, como regra, o jornalista entrevistador não emite a sua opinião sobre o assunto tratado.

De fato, enquanto entrevistador, o papel do jornalista mais se assemelha com a do apresentador e não se confunde com a função do autor ou editor de determinada publicação. Por isso, a menos que o próprio entrevistador, ao realizar sua pergunta, incorra em ato ilícito, entende-se indevida a sua responsabilização ou a do veículo de imprensa, em razão de ilícito praticado por terceiro.

De fato, a corresponsabilização da imprensa nessa hipótese se traduz na obrigação impossível de que o veículo tenha certeza absoluta da veracidade e licitude do conteúdo da entrevista para, aí sim, poder publicá-la.

É claro que, especialmente na era desinformação em que vivemos, jornalismo sério pressupõe apuração cuidadosa. Não se pode exigir, todavia, essa certeza inequívoca, até mesmo porque, na vasta maioria das vezes, não existe linha clara que separe a informação falsa da opinião pessoal ou a crítica salutar da ofensa ilegítima.

O resultado é o que se tem chamado de “efeito inibidor” (chilling effect): a imprensa, para evitar condenações, opta por adotar postura defensiva no exercício do poder-dever de informar. A propósito, a Suprema Corte dos EUA, ainda em 1964, no célebre precedente New York Times Co. v. Sullivan[3] reconheceu o fenômeno do “chilling effect” e o seu potencial de produzir a autocensura:

Uma regra exigindo de um crítico a garantia da verdade de todas as suas afirmações acerca de fatos conduz a ‘autocensura’. A permissão à exceção da verdade, com o ônus da prova recaindo sobre o réu, não impedirá a disseminação de notícias falsas. De acordo com a regra [que permite a responsabilização], os críticos irão se abster de manifestar suas críticas, ainda que se acredite verdadeiras, e ainda que sejam verdadeiras, em razão da dúvida sobre se a verdade poderá ser provada nos tribunais. Os críticos irão se manifestar apenas em casos ‘absolutamente longe da zona de ilicitude[4]”.

Nesse sentido, imagine-se, hipoteticamente, que determinado entrevistado denuncia o envolvimento de um governador e de um empreiteiro em esquema de superfaturamento de obra pública. Há investigação em curso para apurar o conchavo e diversos indícios já foram identificados, mas ainda não se chegou a um veredito final.

Por certo, no cenário de corresponsabilização, a imprensa se sentirá insegura para publicar a hipotética entrevista. E se a versão noticiada fosse verdadeira?

Na situação em concreto, tem-se que, na origem, o sr. Ricardo Zarattini, ex-deputado federal, ajuizou ação indenizatória por danos morais contra o jornal Diário de Pernambuco. Isso porque, segundo Zarattini, o periódico teria veiculado entrevista de Wandenkolk Wanderley, ex-delegado do regime militar, na qual o entrevistado o acusara de ter participado do conhecido atentado do aeroporto de Guararapes, ocorrido em 1966. Zarattini sustentou que a informação seria inverídica, pelo que pleiteou a condenação do jornal em danos morais. A inconveniência da responsabilização solidária é reforçada em razão de peculiaridades do caso concreto. Em particular, dois pontos merecem destaque.

Em primeiro lugar, é certo que o jornal ofereceu direito de resposta à vítima nos mesmos moldes da entrevista concedida. A oportunidade para esclarecer os fatos, oferecida em audiência de conciliação, foi, no entanto, peremptoriamente recusada. Ou seja: a vítima teve a oportunidade de sustentar a insubsistência dos fatos noticiados na entrevista. No entanto, pareceu mais importante à vítima obter indenização pecuniária a defender-se do fato tido como inverídico.

Em segundo lugar, é inequívoco que a versão noticiada na entrevista era, no mínimo, razoável à época de sua publicação. De fato, à época da publicação, a versão dos fatos noticiada na entrevista era conhecida e repetida pela imprensa nacional. A imprensa não publicou fatos aleatórios, que pudesse indicar a sua omissão em adotar protocolos de busca pela verdade.

Nesse cenário, pergunta-se: a publicação de entrevista, em que se faz remissão a fatos em apuração, poderia ser tida como abuso do direito à liberdade de expressão? Vale enfatizar que, ao conduzir a entrevista, o jornal não emitiu qualquer juízo de valor acerca dos fatos noticiados. Ao contrário, o entrevistador designado pelo jornal, Selênio Homem, sempre foi tido como um ícone do jornalismo pernambucano, justamente em razão da sua independência profissional e imparcialidade.

Dessa forma, a simples possibilidade de que o veículo de imprensa venha a ser responsabilizado, ainda mais tendo em vista as circunstâncias do caso concreto, prejudica o desempenho da sua função fundamental à democracia, conforme amplamente reconhecido pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

Destaque-se, exemplificativamente, o precedente firmado no julgamento da ADPF 130[5], em que a Lei nº 5.250/1967 (Lei de Imprensa) foi integralmente rechaçada pelo Tribunal. Nesse julgado, o STF reconheceu, de forma contundente, que “a plena liberdade de imprensa é um patrimônio imaterial que corresponde ao mais eloquente atestado de evolução político cultural de todo um povo”. Estes são trechos dessa memorável decisão:

“Pelo seu reconhecido condão de vitalizar por muitos modos a Constituição, tirando-a mais vezes do papel, a Imprensa passa a manter com a democracia a mais entranhada relação de mútua dependência ou retroalimentação. Assim visualizada como verdadeira irmã siamesa da democracia, a imprensa passa a desfrutar de uma liberdade de atuação ainda maior que a liberdade de pensamento, de informação e de expressão dos indivíduos em si considerados” (destaques acrescentados).

“O art. 220 da Constituição radicaliza e alarga o regime de plena liberdade de atuação da imprensa. […] O corpo normativo da Constituição brasileira sinonimiza liberdade de informação jornalística e liberdade de imprensa” (destaques acrescentados).

“Repita-se: não é pelo temor do abuso que se vai proibir o uso de uma plena liberdade de informação a que o próprio Texto Magno do País apôs o rótulo de “plena” (destaques acrescentados).

Como se vê, atribuir consequências negativas à divulgação de entrevistas – sobretudo as prestadas por personalidades públicas, sobre eventos de interesse público – aniquila o vigor das liberdades comunicativas. Tem-se, portanto, o exato tipo de restrição que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal busca, enfaticamente, repelir.

Por isso, merece provimento o recurso extraordinário nº 1.075.412, reafirmando-se a premissa, historicamente defendida pela Suprema Corte brasileira, acerca da plenitude do direito à liberdade de imprensa, expressão e manifestação de pensamento.

 


[1] Tema 995, da Repercussão Geral.

[2] Constituição Federal: “art. 5º: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […] IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes; […] art. 220: a manifestação de pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”.

[3] ESTADOS UNIDOS. New York Times Co. v. Sullivan, 376 U.S. 254 (1964). O caso envolvendo o jornal New York Times, no qual se deliberou acerca do alcance da proteção conferida à liberdade de imprensa, é considerado um dos precedentes mais importantes da história da Suprema Corte estadunidense, que chegou a defender, inclusive, tolerância a discursos não tecnicamente verdadeiros. Sobre o tema, v. Erwin Chemerinsky, False Speech and the First Amendment, 2018, Oklahoma Law Review, v. 71, 1.

[4] ESTADOS UNIDOS. New York Times Co. v. Sullivan, 376 U.S. 254 (1964).

[5] STF, ADPF 130, Rel. Min. Ayres Britto, DJe 12.05.2009.