'Campanha de desinformação'

Empresa processa emissora e cita entrevista com Allan dos Santos retuitada por Trump

Smartmatic diz que OANN produziu ‘campanha de desinformação’ e causou ‘danos irreparáveis’; jurisprudência no Brasil depende de caso parado no STF

Entrevista de Allan do Santos à emissora de TV foi tuitada por Trump

A Smartmatic, empresa que prestou serviços de conexão de dados e voz para o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), cita como prova uma entrevista concedida pelo bolsonarista foragido Allan dos Santos em uma ação ajuizada na Justiça americana, no início de novembro, em que acusa a emissora One America News Network (OANN) de promover uma “campanha de desinformação” que causou prejuízos. A entrevista foi ao ar em novembro de 2020 e propagou informações comprovadamente falsas, incluindo que a Smartmatic é fabricante da urna eletrônica brasileira.

À época, o então presidente americano Donald Trump — banido do Twitter em janeiro deste ano, dias antes de deixar o cargo — ainda possuía acesso à plataforma, com 89 milhões de seguidores, e retuitou um link para a íntegra da entrevista de Allan dos Santos. A OANN já difundiu outras teorias conspiratórias de extrema-direita e apoia declaradamente o ex-mandatário republicano, que foi derrotado pelo democrata Joe Biden no ano passado e ensaia uma nova campanha presidencial em 2024, além de ter entrevistado outras figuras do bolsonarismo, como o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP).

Allan dos Santos mentiu ao vivo ao dizer que a Smartmatic ajudou a fraudar as eleições brasileiras de 2014 e 2018. A empresa também fabrica urnas eletrônicas, mas, ao contrário do que disse o blogueiro, não é responsável pelo modelo usado no Brasil. Por diversas vezes, o TSE reiterou que jamais foi identificado qualquer indício de fraude envolvendo a urna eletrônica e as eleições brasileiras, que são objetos de escrutínio independente.

“A argumentação não é de que a rede de TV deve se responsabilizar pelo o que o Allan dos Santos falou, mas de que ela escolheu entrevistados com o objetivo de causar dano”, resume Francisco Brito Cruz, diretor do InternetLab e doutor pela Faculdade de Direito da USP. “Nos Estados Unidos, difamação e injúria são muito diferentes do que no Brasil”, ele diz. “Lá, é necessário provar um nível de dolo, de intenção, muito maior.”

Para Brito Cruz, uma empresa que se sentisse lesada poderia construir argumento semelhante no Brasil. “Aqui, existe uma propensão maior do Judiciário a conceder dano material ou moral a pessoas físicas, mas também pode se aplicar a pessoas jurídicas.”

Liberdade com responsabilidade

Em agosto de 2020, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), pediu vista do Recurso Especial 1.075.412/PE, cujo julgamento definirá o tema 995 de repercussão geral — “controvérsia relativa à liberdade de expressão e ao direito à indenização por danos morais, devidos em razão da publicação de matéria jornalística na qual se imputa prática de ato ilícito a determinada pessoa”.

Por enquanto, está vencendo a tese proposta pelo ministro Alexandre de Moraes: “A plena proteção constitucional à liberdade de imprensa é consagrada pelo binômio liberdade com responsabilidade, não permitindo qualquer espécie de censura prévia, porém admitindo a possibilidade posterior de análise e responsabilização por informações comprovadamente injuriosas, difamantes, caluniosas, mentirosas, e em relação a eventuais danos materiais e morais, pois os direitos à honra, intimidade, vida privada e à própria imagem formam a proteção constitucional à dignidade da pessoa humana, salvaguardando um espaço íntimo intransponível por intromissões ilícitas externas.”

“Atualmente, temos jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça de responsabilidade solidária”, afirma Carlos Affonso Souza, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS). “Essa situação, no Brasil, está prestes a encontrar uma decisão importante”, ele conclui. Não há prazo para que Barroso devolva o pedido de vista.

Segundo o diretor do ITS, o tema ganha importância com a proximidade da eleição presidencial, já que o ecossistema de desinformação não é munido apenas por posts em redes sociais, mas se forma a partir de uma simbiose entre meios que se retroalimentam de conteúdos falsos.

“Nós sabemos que, nos Estados Unidos, durante a eleição presidencial de 2016 [vencida por Trump], canais de televisão a cabo foram determinantes na disseminação de desinformação”, explica o especialista, ao citar o livro “Network Propaganda: Manipulation, Disinformation, and Radicalization in American Politics” (“Propaganda em Rede: Manipulação, Desinformação e Radicalização na Política Americana”, em tradução livre), publicado por pesquisadores do Berkman Klein Center for Internet and Society, da Universidade Harvard.

“Esse casamento entre TV e internet precisa estar no radar das pessoas que estudam desinformação no Brasil”, defende Souza.

O diretor do ITS também afirma que a dinâmica entre diferentes meios de comunicação influencia na produção legislativa sobre liberdade de expressão. No substitutivo ao PL 2.630/2020, conhecido como PL das Fake News, que o relator Orlando Silva (PC do B-SP) apresentou no fim de outubro, havia um dispositivo que excluía expressamente a possibilidade de empresas jornalísticas serem enquadradas na legislação, caso aprovada daquela forma. No entanto, em 22 de novembro, o deputado apresentou uma nova versão do relatório em que a menção a empresas jornalísticas foi retirada. “Gera uma disputa sobre o que é considerado veículo jornalístico”, afirma Souza. “A depender de como você definir o que é conteúdo jornalístico, as consequências podem variar.”

Afronta à liberdade de expressão

Em agosto, quando um requerimento na CPI da Pandemia no Senado pediu a quebra de sigilo bancário da Jovem Pan — acusada por membros da comissão de disseminar informações comprovadamente falsas —, a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) divulgou nota afirmando que “qualquer tentativa de intimidação ao trabalho da imprensa é uma afronta à liberdade de expressão”.

No mês passado, o Pânico, programa de maior audiência da Jovem Pan, levou ao ar uma entrevista ao vivo com Allan dos Santos, que apareceu fumando um cigarro ladeado por duas bandeiras, uma do Brasil, onde possui ordem de prisão vigente, e outra dos Estados Unidos, onde permanece foragido.

“É perseguição política”, opinou logo de início um dos participantes da atração, ao comentar o pedido de extradição feito pelo ministro do STF Alexandre de Moraes. “Vamos deixar o Allan explicar pra gente o que está acontecendo”, propôs o apresentador Emílio Surita ao introduzir o convidado, que falou durante cerca de uma hora.

“Pânico e Pingos nos Is é [sic] uma gota no oceano de merda”, afirmou Allan dos Santos, numa tentativa de elogio aos principais programas da Jovem Pan. “Só tem cafajeste e covarde na mídia brasileira”.

Procurada pelo JOTA, a Abert não quis se manifestar sobre a possibilidade de uma emissora ser responsabilizada pelas escolhas editoriais que faz — como os entrevistados a que concede espaço — e, nesse sentido, quais são as diferenças entre Brasil e Estados Unidos.

Em comunicado divulgado após o requerimento na CPI, a Jovem Pan afirmou que, “ao longo de seus 77 anos de existência, a empresa jamais disseminou fake news”. Segundo o texto, “os profissionais da Jovem Pan divulgam fatos e os analisam segundo diferentes pontos de vista”.

No ano passado, após a entrevista de Allan dos Santos à OANN ser compartilhada entre usuários brasileiros em versão legendada, o TSE divulgou nota à imprensa negando que a Smartmatic fosse responsável pelo modelo de urna usado no país. “Todo o projeto da urna eletrônica brasileira e do sistema eletrônico de votação foi concebido e é gerido inteiramente pela Justiça Eleitoral do país”, diz o texto.

“A Smartmatic celebrou contratos com o TSE em outras ocasiões somente para a prestação de serviços de conexão de dados e voz, e não para o desenvolvimento ou operação da urna eletrônica. Além disso, a empresa participou da licitação para a fabricação de urnas eletrônicas para 2020, mas perdeu para a empresa Positivo.”

Na petição inicial da ação, que tramita na Corte do Distrito de Columbia, em Washington, os advogados da empresa afirmam que “a OANN estava ciente, ou deveria estar, de que Sr. Santos não é uma fonte confiável e é conhecido por promover teorias conspiratórias”. (Leia a íntegra do documento)

Repercussões globais

Os advogados da Smartmatic dizem que a “campanha de desinformação” da qual acusam a OANN ocasionou danos reputacionais e financeiros irreparáveis. Allan dos Santos foi entrevistado ao vivo por um apresentador que estava no estúdio da emissora em Washington e que, no início da conversa, apresentou o convidado brasileiro como “um repórter que tem conhecimento em primeira mão sobre os problemas envolvendo as urnas eletrônicas da Dominion”, marca de urnas eletrônicas que pertence à Smartmatic e já foi usada em eleições nos Estados Unidos.

Em nota divulgada no dia 3 de novembro, o CEO da Smartmatic, Antonio Mugica, afirmou que a empresa foi vítima de informações falsas produzidas por um “universo paralelo de mentiras e desinformação”, causando danos que “reverberaram nos Estados Unidos e em dezenas de países em todo o mundo”. “As repercussões globais para a nossa empresa não podem ser minimizadas.”

Na ação, os advogados da Smartmatic escrevem que “quando o Sr. Santos apareceu em transmissões da OANN, a OANN sabia que ele não possuía qualquer evidência para sustentar as declarações sobre a Smartmatic”, mas que, “apesar disso, a OANN não alertou seus espectadores sobre a [falta de] credibilidade e o viés de Sr. Santos”.

Procurada por publicações americanas, como o site Axios e o jornal The Wall Street Journal, a emissora não se pronunciou sobre a ação. No sistema da Justiça americana, consultado pelo JOTA, ainda não constam manifestações de advogados da Herring Networks Inc., holding controladora da One America News Network.

Além da OANN, a Smartmatic está processando a emissora Newsmax, que também apoia Trump e veiculou acusações sem comprovação de fraude eleitoral contra a empresa. Um porta-voz da emissora afirmou, em nota citada pelo jornal The New York Times, que a ação da Smartmatic é “uma clara tentativa de silenciar o direito a uma imprensa livre”.

Fortes indícios e provas específicas

Allan dos Santos é influenciador digital bolsonarista e criador do canal Terça Livre, fundado em 2011 e extinto em outubro deste ano. A página foi retirada do ar dias por iniciativa própria, dias após decisão do ministro Alexandre de Moraes, do STF, determinando a prisão preventiva do blogueiro.

Em relatório anexado ao Inquérito dos Atos Antidemocráticos e citado pelo ministro Moraes em sua decisão, a Polícia Federal afirma que durante a investigação de um grupo que busca “desestabilizar as instituições democráticas, por meio de ataques a agentes políticos específicos e à disseminação de discurso de ódio, com nítidas mensagens contrárias à Democracia e ao Estado de Direito, apurou-se fortes indícios e provas específicas em relação à pessoa de Allan dos Santos”.

Conforme apontam mensagens obtidas pela PF, Santos se mudou para os Estados Unidos há cerca de um ano com o auxílio do deputado federal Eduardo Bolsonaro, informação que foi repassada à CPI da Covid-19 e que veio a público em reportagem da “Folha de S.Paulo”. Acusado de propagar desinformação sobre a pandemia, o blogueiro é uma das 78 pessoas cujo indiciamento foi pedido no relatório do senador Renan Calheiros (MDB-AL), aprovado na comissão do Senado.

Santos ganhou milhões de seguidores nas redes sociais após se aproximar da família do presidente Jair Bolsonaro durante a campanha eleitoral de 2018. No início de novembro, o Twitter suspendeu mais uma conta controlada pelo blogueiro, com pouco mais de 450 mil seguidores. O perfil havia sido criado em outubro, após a decisão de Moraes que, em julho, determinou a suspensão das contas de Santos nas redes sociais. A empresa já havia banido de sua plataforma outros perfis ligados ao blogueiro, com alcances ainda maiores.

Também em julho, o YouTube retirou do ar o Terça Livre, que possuía pouco mais de 1,2 milhão de inscritos, argumentando que o canal violou termos de serviço. Em agosto, o corregedor-geral da Justiça Eleitoral e ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Luiz Felipe Salomão determinou que as redes sociais parassem de repassar valores decorrentes da publicidade veiculada no Terça Livre e em outros canais bolsonaristas. Conforme informações repassadas pelo YouTube à Justiça, o canal rendeu a Allan dos Santos US$ 315 mil em publicidade, cerca de R$ 1,7 milhão, entre 2019 e agosto deste ano.