FAKE NEWS

A desinformação do PL das Fake News

Se aprovado, PL muda regime de responsabilização das plataformas previsto no Marco Civil da Internet

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Crédito: Pixabay

Na semana passada, o Senado Federal pautou para votação no dia 2 de junho (terça-feira) o projeto da “Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet” (PLS 2630/2020) – também conhecido como PL das Fake News.

A proposição, de autoria do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), foi apresentada em conjunto com os deputados federais Tábata Amaral (PDT-SP) e Felipe Rigoni (PSB-SP)  e tem como principal objetivo proibir o uso de contas inautênticas para disseminar desinformação. Para isso, o projeto prevê a responsabilização dos provedores de aplicação – como redes sociais e aplicativos de mensagens privada – com dois milhões de usuários registrados ou mais, sobre os conteúdos veiculados em seus espaços.

Apesar de a proposição conjunta estar sendo tema de consulta pública no site E-Democracia, ela vem contando com poucas participações cívicas. O projeto, no entanto, tem sido alvo de manifestações preocupadas por parte de entidades da sociedade civil que ressalvam diversos aspectos sensíveis no texto, incluindo pedidos de adiamento da votação feitos pelo Comitê Gestor da Internet (CGI). Dentre muitas críticas pontuais, é possível sistematizar as problemáticas em três itens de atenção: Inadequação de conceitos; mudança no regime de responsabilização das plataformas previsto no Marco Civil da Internet; e conflitos com diretrizes internacionais de proteção à liberdade de expressão.

a) inadequação de conceitos

Ainda que se verifique o esforço dos autores da proposta em combater a disseminação das chamadas “fake news” – fenômeno que tem causado problemas sociais como riscos ao adequado exercício democrático e danos individuais e coletivos – a regulamentação do tema apresenta inúmeros desafios a serem observados, dentre eles, o enfrentamento da definição de conceitos abertos e imprecisos. O projeto de lei – assim como o projeto gêmeo em tramitação na Câmara – não apenas não auxilia na delimitação dos termos, como gera mais confusão para futuras aplicações.

Ao definir a desinformação, por exemplo, o PL menciona “conteúdo inequivocamente falso”, “no todo ou em parte”, “passível de verificação” e, apesar de ressalvar a aplicação a casos de “ânimo humorístico ou de paródia”, a definição ignora a possibilidade de manipulação de opiniões públicas através da utilização de informações verdadeiras, exagero, divergências, controvérsias e mistura de informações verdadeiras e opiniões, por exemplo, através de técnicas informacionais e manipulação de opiniões das massas.

Além disso, a definição abre espaço para interpretações subjetivas ao incluir como desinformação o conteúdo “colocado fora de contexto”. Esse problema persiste ainda que a versão pautada para votação seja mais restrita do que a primeira versão protocolada (PL 1429/2020 na Câmara e PLS 1358/2020 no Senado). Quanto à aplicação do termo, permanece em aberto a quem restará a atribuição de identificar, na prática, os casos concretos de desinformação, obrigando de forma indireta as plataformas de realizar parcerias com agências de checagem e cabendo ao Poder Judiciário a fixação desta análise quando do julgamento das plataformas.

No mesmo sentido, o projeto falha ao proibir “contas inautênticas” de forma ampla. A definição trazida na proposta é a “conta criada ou usada com o propósito de disseminar desinformação ou assumir identidade de terceira pessoa para enganar o público” e, neste caso, o projeto não é totalmente claro quanto à possibilidade de adoção de nomes fantasias, pseudônimos e uso de bots. Desta forma, o projeto destoa da consolidada jurisprudência do STJ a respeito da vedação constitucional do anonimato. Nesse conjunto de decisões a Corte estabelece como suficiente à identificação do usuário o fornecimento do registro do número de protocolo (IP) dos computadores utilizados para cadastramento de contas na internet, possibilitando, assim, a identificação e responsabilização a posteriori, na eventualidade de condutas abusivas praticadas na rede. Nesse sentido, a efetivação de responsabilização não está relacionada à necessária identificação imediata e explícita de autoria ao lado de todo e qualquer discurso na rede, o que não está claro a partir da leitura do dispositivo.

Diante desses problemas o ideal seria retirar do rol de vedações as “contas inautênticas” e as “redes de disseminação artificial” e focar na vedação de reais problemas como “contas automatizadas não rotuladas”, de modo que os bots em si não estariam vedados, mas apenas aqueles não identificados.

Além disso, evitaria-se uma possível atuação abusiva por parte das plataformas nessa vigilância, bem como facilitaria sua atuação. A respeito do conceito de desinformação, é preciso refletir com cautela sobre a inserção de novos termos na lei e discutir uma definição mais objetiva e mais assertiva possível, a fim de minimizar danos à liberdade de expressão.

b) mudança no regime de responsabilização das plataformas previsto no Marco Civil da Internet

Apesar de o projeto fazer referência explícita ao Marco Civil da Internet, ao ampliar as hipóteses de responsabilização das plataformas em razão de conteúdo publicado por terceiros, a proposta afronta a regra geral prevista no art. 19 do MCI, que estabelece que os provedores de aplicação somente serão responsabilizados por danos de terceiro (os usuários) se, mediante notificação judicial, não tomarem providências para tornar o conteúdo indisponível.

A alteração do modelo de responsabilidade se constata uma vez que a proposta transfere aos provedores de aplicações a tarefa de serem, em última análise, os próprios “juízes” dos conteúdos publicados por terceiros. O projeto termina por exigir uma eterna vigilância das plataformas sobre os conteúdos publicados ao lhes atribuir a tarefa de bloqueio/exclusão de contas inautênticas, disseminadores artificiais e redes de disseminação artificial a partir do conceito amplo de desinformação, sob pena de responsabilização. Vale dizer que nessas hipóteses, quanto maior a responsabilidade das plataformas, maior o poder de decisão atribuído às mesmas, que atuarão de forma mais rigorosa pela remoção a fim de se esquivar de futura responsabilização judicial.

Nesse sentido, o projeto cria um novo regime de responsabilidade objetiva quanto a conteúdo produzido por terceiros, ainda que as ações exigidas dos intermediários não sejam necessariamente quanto ao conteúdo, mas quanto a suspensão e exclusão de contas no caso da inautenticidade utilizadas para fins de desinformação.

Na verdade, cumpre dizer que a regra estabelecida no Marco Civil da Internet conta com ampla apoio internacional: o processo de criação da lei brasileira serviu de inspiração para a Declaração de Direitos na Internet, aprovada no Parlamento italiano. O seu regime de proteção da liberdade de expressão foi ainda referido em importante decisão da Suprema Corte da Argentina sobre responsabilidade na Internet. Ao invés de propor uma mudança na regra de responsabilização atual que temos, o ideal seria contar com uma legislação que proponha recomendações para que as plataformas ajustem condutas através do código ou inserção nos termos de uso – o que nos leva aos comentários sobre o capítulo de boas práticas tratado no tópico seguinte.

c) conflitos com diretrizes internacionais de proteção à liberdade de expressão

O capítulo reservado a boas práticas oferece alternativas interessantes a serem adotadas pelas plataformas, porém, por não ressalvar as aplicações das sanções elencadas, o projeto termina por tornar as práticas recomendadas uma genérica obrigação. Além disso, não há definição sobre quais medidas se aplicam a cada caso, observando-se, assim, uma falta de atenção aos possíveis limites técnicos das plataformas. Mais vale então tratar dos capítulos de boas práticas como se, de fato, boas práticas fossem e afastar a incidência de penalidade sobre situações de inadequação.

Além da vigilância de autenticidade de contas, outra medida prevista é a correção de postagens desinformativas. A adesão a tal solução pode se dar através da autorregulação das plataformas, ou seja, por iniciativa própria em decorrência de aplicações da tecnologia. No entanto, a determinação legal de tal obrigação extrapola o dever dos intermediários enquanto tais. Além disso, as sanções elencadas em razão do descumprimento das obrigações são desproporcionais, configurando um potencial risco de exclusão e censura de conteúdo, ferindo a liberdade de expressão e atingindo diretamente os usuários ao determinar a possibilidade de suspensão das atividades dos intermediários. Por esta razão, a positivação desta medida é rechaçada pelos Relatores de Liberdade de Expressão da ONU e da OEA.

A Declaração Conjunta de 2011 sobre Liberdade de Expressão e a Internet estabelece que “ninguém que simplesmente forneça serviços técnicos da Internet, como fornecer acesso, pesquisa, transmissão ou armazenamento em cache de informações, deve ser responsabilizado pelo conteúdo gerado por terceiros e disseminado através desses serviços, desde que não intervenham especificamente nesse conteúdo ou se recusem a obedecer a uma ordem judicial para removê-lo, quando tiverem capacidade para fazê-lo”. E a Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão (OEA) defende que a responsabilidade deve ser imposta aos autores do discurso em questão, e não aos intermediários.

As falhas de conceitos, inadequação legislativa e os problemas de implementação do projeto refletem a necessidade de amadurecimento do debate antes da votação. A pressão dos nossos tempos – de instabilidade social em razão da Covid e investigações da CPMI – não devem ser invocadas como razões para desconsiderar o debate cívico e multissetorial, sob risco de penalizarmos não apenas as plataformas, como os próprios usuários, além de colocarmos também em risco os tão caros princípios democrático e da liberdade de expressão. Devemos, ao invés disso, resgatar o legado deixado pelo processo de aprovação do Marco Civil da Internet que, a despeito das pressões para aprovação do projeto, contou com construção colaborativa a partir de audiências, consultas e diversas outras oportunidades para a concretização de uma ampla participação pública. Ao final, a única ferramenta capaz de combater a desinformação é através de amplo debate e mais informação, e não menos.