Liberdade de imprensa

Globo deve indenizar Suzane von Richthofen por divulgação de testes psicológicos

Teste de Rorschach, que estava em segredo de Justiça, teve conteúdo exibido no Fantástico em 2018

Suzane Von Richthofen
Suzane Von Richtofen / Crédito: Reprodução YouTube

A Rede Globo foi condenada a indenizar Suzane von Richthofen em R$ 10 mil por divulgar numa reportagem do Fantástico o resultado de um teste psicológico, sigiloso, feito para subsidiar um pedido de progressão de pena para regime semiaberto. A decisão foi tomada pela 1ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) nesta terça-feira (9/3).

Suzane von Richthofen foi condenada a 39 anos de prisão por planejar o homicídio de seus pais em 2002. Os laudos psicológicos e o teste de Rorschach, uma técnica de avaliação psicológica, apontavam que não havia evidências de que Suzane seria perigosa, podendo conviver em sociedade, mas que, por outro lado, dentre outros pontos, tinha personalidade manipuladora e agressividade camuflada.

Os fundamentos usados pela juíza Larissa Gaspar Tunala, da Vara Única da Comarca de Angatuba, foram reiterados pelos desembargadores. A magistrada considerou que o intuito da reportagem foi informativo. “Foram apresentadas ambas as visões sobre o caso, inclusive ressaltando-se a opinião do Ministério Público desfavorável à progressão e, ao revés, a decisão da Magistrada favorável,
que considerou que a presença de doenças psicológicas, per se, não é impedimento para o convívio em sociedade”, escreveu Tunala.

Para a magistrada, não havendo excessos e inverdades na informação veiculada, não seria o caso de determinar a vedação à veiculação da reportagem, sob pena de censura indevida e afronta desproporcional à liberdade de expressão e de imprensa.

Por outro lado, a magistrada afirmou que “equivoca-se a GLOBO ao afirmar que ‘o segredo de justiça não afeta a empresa jornalística’. Afeta, em primeiro lugar, porque os meios de comunicação não podem ter acesso direto aos processos com segredo de justiça, sob pena de tornar letra morta o segredo de justiça previsto constitucionalmente no art. 93, inc. IX da Constituição Federal”.

“Se o acesso se deu de maneira indireta e com garantia ao sigilo de fonte, há ilicitude na veiculação de informação que se sabe ilícita”, fundamenta a magistrada. “Houve, pois, ato abusivo da ré ao divulgar informação que sabia estar sob segredo de justiça, sem possibilidade de conhecimento por terceiros”.

O relator do caso, desembargador Rui Cascaldi, da 1ª Câmara de Direito Privado do TJSP, acrescentou que, embora o crime pelo qual von Richthofen fora condenada faça parte da “história criminal do país”, isso não permite anular os direitos de personalidade dela ou que resultados de exame sigilosos, como o teste de Rorschach, sejam divulgados sem responsabilidade civil.

“Essa espécie de divulgação, resguardada a liberdade que a imprensa deve ter em um país democrático como o Brasil, transborda a mera informação e opinião para adentrar em circunstância íntima sem qualquer relação com o efetivo interesse público, abrindo precedente para que qualquer outra informação íntima e pessoal da autora seja igualmente divulgada”, escreveu ele.

No ano passado, Suzane von Richthofen teve um pedido de indenização contra a TV Record negado pela 5ª Câmara de Direito Privado do TJSP, por reportagem que continha imagens dela no presídio. Na ocasião, o relator, Erickson Gavazza Marques, considerou não ter havido violação pela empresa.

“No que consistiria a reputação ou a dignidade de alguém que se alia a terceiros para dar cabo da vida de quem a trouxe ao mundo? A meu ver estaria em parte alguma. Assim sendo, se não há reputação ou dignidade, não haverá moral do ponto de vista da responsabilidade civil”, escreveu o magistrado.

Liberdade de imprensa e segredo de Justiça 

Embora a recente decisão judicial envolvendo Suzane von Richthofen não tenha exigido que a Globo retirasse do ar a reportagem, disponível online, como forma de garantir a liberdade de imprensa, a juíza de primeira instância considerou ilícito que empresas jornalísticas divulguem detalhes de processos em segredo de Justiça a que tiveram acesso.

O argumento suscita questionamentos sobre a relação entre a garantia de liberdade de imprensa e o segredo de Justiça. “O critério para tornar um processo inacessível ao público é técnico, para preservar as partes e os direitos individuais delas. Mas, quando há interesse da sociedade, eu tenho convicção de que a imprensa tem o direito e até o dever de divulgar essas informações”, afirma o advogado André Marsiglia, membro da Comissão de Liberdade de Imprensa da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de São Paulo.

Segundo ele, impacta na delimitação de interesse público, que deve ser considerada pelo Judiciário, o fato de se tratar de pessoa pública. “Nesse caso, a própria intimidade dela se confunde com a vida pública. O critério jurídico para considerar lícita ou não uma divulgação é se aquela informação é vital para a história estar completa. Ao estabelecer segredo de Justiça, o juiz não poderia determinar ao que a sociedade terá acesso por meio da imprensa”, completa Marsiglia, ponderando que decisões judiciais também têm levado em consideração critérios da ética jornalística.

Evidentemente, há fatores que enfraquecem a divulgação de informações sob sigilo judicial, como elas terem sido obtidas de forma fraudulenta pelo veículo ou não terem sido resguardadas garantias como a proteção a crianças e adolescentes. Não seria o caso de todos os processos em segredo de Justiça.

“O funcionário público que violou o segredo de Justiça está cometendo crime, enquanto a imprensa não comete ilícito algum ao escolher publicar. Inclusive, ela também tem a garantia democrática de não revelar quem disponibilizou o acesso. O que norteia a exposição é o interesse público; e não é o juiz quem o define”, diz o advogado Marco Antonio Sabino, pesquisador do Instituto de Liberdade Digital (ILD). Ele entende ainda que, como consequência de entendimentos equivocados sobre segredo de Justiça, a imprensa pode ser dissuadida de exercer plenamente o seu trabalho.

A ação em que a Globo foi condenada tramita com o número 1001243-57.2018.8.26.0025, em segredo de Justiça. Procurada, a emissora não se manifestou até a publicação desta reportagem.

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