Liberdade de expressão

STF começa a julgar se direito ao esquecimento deve ser reconhecido

Advogados das partes e de interessados no tema discorreram sobre riscos ao direito de informação, à memória e à privacidade

direito ao esquecimento
Crédito: Unsplash

O Supremo Tribunal Federal (STF) começou a julgar, nesta quarta-feira (3/2), se existe ou não um direito ao esquecimento a ser protegido no Brasil. A sessão foi dedicada às sustentações orais dos advogados das partes e dos amici curiae, e ao início do voto do ministro Dias Toffoli, relator do caso. O voto, entretanto, não foi concluído: o ministro fez apenas um histórico do caso de Aída Curi e do direito ao esquecimento, mas a conclusão ficará para esta quinta-feira (4/2).

O conceito não é previsto na legislação brasileira, mas tem sido muito discutido nas instâncias inferiores em inúmeros pedidos de remoção de conteúdo feitos à Justiça. A controvérsia coloca, de um lado, a liberdade de expressão e informação e, de outro, direitos à honra, intimidade, privacidade e ressocialização. Cabe ao Supremo, portanto, neste julgamento, avaliar se o direito deve ser reconhecido e, em caso positivo, em que termos.

Ao iniciar o voto, Toffoli adiantou que sua proposta de tese será sobre a existência ou não do direito ao esquecimento, independentemente da plataforma. Até porque o caso, antigo, se refere a um programa de televisão, mas a discussão se torna mais relevante e abrangente porque o conceito do direito ao esquecimento tem sido invocado principalmente na internet.

O ministro citou processos relacionados ao direito ao esquecimento em diversos países, como França, Alemanha e também no Brasil. Um dos exemplos foi o caso Lebach, julgado pelo Tribunal Constitucional Alemão. Em 1969, houve uma chacina de quatro soldados alemães. Três pessoas foram condenadas, sendo duas à prisão perpétua e o terceira a seis anos de reclusão. Um programa televisivo dramatizou o caso anos depois, e um dos envolvidos pediu uma liminar para impedir a veiculação do programa.

O Tribunal Constitucional Alemão atendeu ao pedido, entendendo que a imprensa não poderia explorar o caso por tempo ilimitado. Por outro lado, Toffoli citou uma decisão de 1990 da França, que afastou o direito ao esquecimento pelo lançamento de um livro que contava a história de um resistente da ocupação nazista na França.

O direito ao esquecimento ganhou maior destaque a partir de um processo envolvendo o Google na Espanha e julgado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia em maio de 2014. O caso em discussão no Brasil, no entanto, trata de uma disputa sobre a transmissão de um programa da TV Globo a respeito de um crime ocorrido na década de 1950, e tem, segundo especialistas, contornos bem diferentes e mais extensos.

Como o recurso extraordinário (RE) 1.010.606 teve repercussão geral reconhecida, estudiosos, empresas e setores da sociedade civil que trabalham com liberdade de expressão têm o receio de que o debate possa ser ampliado para atuação na internet, de modo a limitá-la. De acordo com o Google, por exemplo, o Brasil é um dos países do mundo onde a empresa mais registra pedidos de remoção de conteúdo.

Se, por um lado, um grupo de advogados falou pelo direito à memória, à liberdade de informação e de imprensa, por outro, a linha defendida foi de que todo direito encontra limites e, neste caso, seria o da violação ao direito à privacidade. 

Família

Pela família de Aída Curi falou o advogado Roberto Algranti Filho. Ele ressaltou as consequências da recordação reiterada de um fato traumático na vida de uma pessoa ou família. “Falo pela questão de saúde. Não que réus em processos criminais não possam sofrer desse mal, mas as vítimas costumeiramente padecem de síndrome de estresse pós-traumático. Essas pessoas perdem a capacidade de se relacionar, têm altíssimos índices de pensamento suicida. Há uma frase de um psicanalista que define as consequências: eles se tornam mortos para a vida”, enfatiza.

Fazendo uma referência ao caso concreto, ele diz que os irmãos de Aída Curi, 40 anos depois do crime, foram expostos ao que chamou de “exploração caudalosa, com todos os detalhes mórbidos, na tela de todas as televisões do Brasil, em um programa muito pouco cuidadoso, explorando cenas da tentativa de estupro, do assassinato”. O episódio foi, para a família, a perpetuação da dor. 

Roberto Algranti Filho sublinhou que o artigo 5º da Constituição protege a vida privada, e que tal proteção está sendo buscada pela família Curi há décadas. “Nosso sistema é construído sobre a confiança dos juízes, e cabe a eles resolver questões como esta, caso a caso. Não há mais espaço para o absolutismo da liberdade de expressão. Nossos traumas do passado devem ser vistos de forma mais humana.”

Ele rebateu, ainda, argumentos contrários ao pedido. O advogado afirma que a percepção de que o direito atinge a memória é um desserviço, refutou também o uso político, assegurando que figuras públicas dificilmente encontrariam guarida neste instituto, dada a relevância social e proteção ao trabalho da imprensa e direito à informação.

TV Globo

Pela Globo falou o advogado Gustavo Binenbojm. Ele relembrou que os fatos tiveram ampla e contínua cobertura à época e ficou, também, como marca histórica da violência contra a mulher. O programa da Globo foi feito 40 anos depois do crime. Os fatos seriam, portanto, de domínio público. Segundo ele, o direito à informação, de informar e ser informado, não está sujeito a nenhum prazo prescricional.

A questão pode ser sintetizada, de acordo com ele, da seguinte forma: o mero desejo de alguém não querer ser lembrado pode configurar, quando associado ao decurso do tempo, um direito fundamental? Mais do que isso, poderia restringir ou mesmo suprimir um direito fundamental? “A resposta oferecida pela Constituição nos parece claramente negativa. O caso concreto do qual se originou a presente repercussão geral não chega a ser difícil tanto nos seus contornos fáticos como nos jurídicos”. 

Binenbojm aponta que um dos irmãos da vítima chegou a publicar dois livros contando em detalhes todo o episódio. “Mais de 40 anos depois a TV Globo retratou o crime de forma fidedigna, respeitosa. Os irmãos tentaram proibir a veiculação e, não conseguindo, pediram indenização por não ter autorização de uso de conteúdo biográfico. Após a decisão do STF, os autores passaram a dar ênfase a outro fundamento escondido na inicial. O pedido foi julgado totalmente improcedente em todas as instâncias”, resume.

Ele se refere à decisão unânime segundo a qual a publicação de biografias não autorizadas não fere a Constituição, na ADI 4.814. O plenário julgou ser inconstitucional a exigência de autorização prévia para a publicação de biografias. O precedente é apontado como importante para a discussão em jogo.

O advogado defendeu, então, não apenas a improcedência do pedido do RE pela inexistência no estado da arte atual do Direito brasileiro de um direito ao esquecimento, como sugeriu uma tese que explicite o fato: “no ordenamento não existe direito ao esquecimento”. Gustavo Binenbojm ressaltou que o conceito não está previsto nem no Marco Civil da Internet, nem na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), nem na Constituição Federal, reformada mais de 100 vezes: “nem a vontade de seu titular nem o mero decursos do tempo podem justificar o apagamento de dados da memória coletiva”, diz.

Amici Curiae

Entidades que defendem a liberdade de expressão e de imprensa participaram da sessão. A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) foi representada pela advogada Tais Gasparian. O que mais nos preocupa, diz a advogada, é o acolhimento do direito sob a roupagem de remoção de conteúdo. A primeira razão é que o processo não trata de remoção. E não há, segundo ela, registro do vídeo do programa na internet. 

“Esse processo, no início, não tratava de direito ao esquecimento. O que havia era apenas o pedido de indenização. Depois é que o direito ao esquecimento veio à tona. Com todo o respeito à dor dos familiares, o que fica é que se tivesse autorização prévia com indenização paga, não haveria o que ser esquecido”, aponta. Tais Gasparian afirma, também, que é uma afronta falar em esquecimento na América Latina: “trata-se de combater um conceito tão vago que legitima o princípio do segredo. isso seria próprio de um estado de polícia”.

Carlos Affonso Souza, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS Rio) afirma que, debaixo do manto do direito em discussão, tem-se uma pluralidade de casos, desde apagamento de nomes em matérias na imprensa, desvinculação de resultados de busca na internet, até mesmo um parque de diversões que tentava apagar menções a um acidente ocorrido em uma das suas atrações.

A amplitude do conceito, ainda tão vago, permitiria um uso oportunista, o que teria consequências diversas. “Não é uma categoria jurídica, mas uma categoria emocional. Assim o é por estamos imersos em tempos de hiperconexão, e o direito traz uma sensação de conforto, controle”, diz. Ele argumenta que o caso concreto também não seria o ideal para que a discussão fosse feita: são parentes da vítima, e não ela própria que pleiteia o direito, e o fato é relativo à televisão, não à internet, como nos casos mais comuns. 

Pelo Instituto Brasileiro de Direito Civil, Anderson Schreiber afirmou que a ordem jurídica brasileira não admite o que chamou de proprietários do passado. Para ele, o direito ao esquecimento não é um direito de apagar o registro histórico de um fato ou de remodelar a história, mas um direito que as pessoas têm de serem corretamente retratadas. Como exemplos, ele cita o caso de uma mulher estuprada e que é constantemente lembrada do evento e relacionada a ele ou de uma transexual que não deveria ser ligada à mudança de nome e registro.

“Não é um direito contra a história, mas de uma retratação atual. É muito fácil ceder à tentação de entender que traria risco grave. Mas parece evidente nos dias de hoje, talvez mais que em qualquer época, que a liberdade de expressão não pode propagar mentiras, incentivar o ódio, o obscurantismo, mas pode sim esbarrar em outros direitos, em especial à dignidade da pessoa humana.”

Pelo Google, que tem grande interesse no caso, Eduardo Mendonça, professor de Direito Constitucional e Direito Digital do Centro Universitário de Brasília, afirmou que o limite da liberdade de expressão deve ser o ilícito. “E não há nenhuma dificuldade para remoção de conteúdo ilícito no Brasil, conteúdo intrinsecamente ofensivo, falso. Pelo contrário, nestes casos, a jurisprudência é bastante generosa.” Há, também, segundo ele, proteção robusta aos direitos de personalidade, ao mesmo tempo em que o Brasil tem caído em rankings de liberdade de expressão.

Já a remoção do conteúdo verdadeiro mas que, por alguma razão, não é mais conveniente e de tal modo é desagradável, seria um movimento inadequado e afetaria sobremaneira a liberdade de expressão. “Não se ignora o desconforto, mas estaríamos ultrapassando uma linha perigosa. Isso é ruim em geral, é pior na nossa realidade específica, nesse processo ainda em transição de um ethos censório”, destaca.

“Este não é um tema do passado. Não se trata de dizer que é hora de rompermos com o medo da sombra da ditadura e darmos um passo adiante. A realidade é de muita restrição. Este tribunal tem constantemente defendido a importância de colocar freios e balizas mais claras nesse tipo de controle que muitas vezes é feito com ótimas intenções pelo Judiciário, mas pela sua vagueza, acaba ficando preso à visão de cada magistrado.”

O advogado Oscar Vilhena Vieira, em nome do Instituto Palavra Aberta, defende que acolher o direito ao esquecimento seria virar as costas para uma robusta jurisprudência do STF cristalizada no caso das biografias não autorizadas. O entendimento a ser defendido é que toda pessoa terá direito à liberdade de expressão e esse direito compreende a liberdade de procurar, receber informação de qualquer natureza.

“Como decidiu este mesmo STF por ocasião da Lei de Anistia, ao se afirmar que nem o perdão legal pode usurpar da sociedade o direito de investigar a história e a buscar a verdade, nem a anistia pode proibir que se retorne ao passado, incorporar o direito ao esquecimento tal como proposto impediria as futuras gerações a compreender a própria história, defender a democracia.”

José Eduardo Martins Cardozo, pelo Pluris — Instituto de Direito Partidário e Político, defendeu convicção contrária à da maior parte dos advogados. Para ele, o direito ao esquecimento é fundamental aos Estados democráticos. “Não existe direito absoluto. A própria noção de direito envolve a noção de limite”, diz. Assim, para ele, o direito ao esquecimento é decorrente dos direitos à intimidade e à privacidade. “O tempo não elimina a dor, a amortece”, afirmou o advogado ao relembrar que Aída Curi não era uma pessoa pública, mas a Rede Globo procurou o interesse “do público, e não o interesse público” ao reproduzir sua história. 

Além disso, ele ressalta que, apesar de nenhuma lei dispor especificamente sobre o tema, há vários fragmentos legislativos que se relacionam ao direito ao esquecimento de alguma forma no Código de Defesa do Consumidor, de Processo Penal, do Código Penal, “além do Marco Civil, que não cita expressamente, mas eu como ministro assinei esta lei e o art. 2° é relacionado com a personalidade humana que tem a ver com o direito ao esquecimento. Ou seja, ele existe no Estado brasileiro”.

Na sequência, a Yahoo do Brasil — que tem um dos primeiros mecanismos de busca no país —, representada pelo advogado André Zonaro Giacchetta afirmou que há uma explosão de casos que chama de banais como se fossem excepcionais para justificar a aplicação do instituto. “Casos onde não há análise de proporcionalidade.”

Ele faz uma analogia com o início da instituição do dano moral no país, quando, segundo ele, qualquer aborrecimento justificava a propositura de uma ação indenizatória. Ele vê, portanto, a possibilidade de se criar uma “indústria do esquecimento”, em semelhança à do dano moral. Mas que, no Brasil, houve uma opção legislativa por não se importar o direito ao esquecimento tal qual na Europa. 

Adriele Pinheiro Reis Ayres Britto, pelo Instituto Vladimir Herzog, por fim, destacou o direito à memória, invertendo o eixo da discussão. Ela ressaltou que não se pode conceber a existência de um direito ao esquecimento ou impôr a aplicação desse instituto, já que, segundo ela, ele é desprovido de conteúdo jurídico em si mesmo. 

“Não se pode impor a ninguém um dever de esquecer um ato ilícito ou desabonador cometido por outrem. O direito à memória, dotado do mais alto interesse público, é diametralmente oposto à imposição de um dever de esquecimento. São mutuamente excludentes”.

A advogada afirma que em casos em que a recordação for opressiva, o Estado deve prover condições para elaboração social e psíquica da recordação, não o esquecimento. “Vale lembrar que um dos efeitos nefastos de um direito ao esquecimento é a impossibilidade de elaboração sistêmica de acontecimentos repetidos.”