REDES SOCIAIS

Remoções de posts não violam liberdade de expressão, dizem especialistas

Plataformas estão removendo posts com potencial de desinformação e danos quando entendem que infringem seus termos de uso

Crédito: YouTube

Gigantes da internet têm monitorado – e atuado – para tentar impedir que notícias falsas e que desinformem circulem durante a pandemia de coronavírus. As medidas não pouparam nem mesmo chefes de Estado: nesta semana, por exemplo, o Twitter, o Facebook e o Instagram excluíram das contas do presidente Jair Bolsonaro vídeos de domingo (29/4) que mostram um passeio dele pelas ruas do Distrito Federal e conversas com comerciantes. Nos diálogos que travou no passeio, o presidente citou a hidroxicloroquina, remédio usado no tratamento de malária que está sendo testado em pacientes com Covid-19: “A cloroquina está dando certo em tudo que é lugar”.

A postura do presidente contraria recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) quanto à necessidade de isolamento e evitar aglomerações para conter a disseminação do coronavírus. A OMS – e o Ministério da Saúde – diz que não há nenhum estudo conclusivo sobre a eficácia de remédios no tratamento da Covid-19, incluindo a hidroxicloroquina.

As medidas tomadas pelas empresas levantam dúvidas sobre se a retirada do conteúdo, que fora veiculado em perfis privados do presidente nas respectivas plataformas, infringe a liberdade de expressão – e se o conteúdo teria algum caráter privado.

Estudiosos do tema ouvidos pela JOTA ponderam que Bolsonaro, de fato, usa as redes sociais para realizar e antecipar anúncios oficiais de decisões do governo federal – expediente comum nas lives que ele realiza às quintas-feiras. Assim, as informações ali divulgadas têm caráter oficial, mesmo que sejam divulgadas em perfis privados. No entanto, isso não impede a remoção de posts do presidente quando o conteúdo estiver em desacordo com os termos de uso das respectivas plataformas.

Como o JOTA mostrou em reportagem na semana passada, o coronavírus motivou Twitter, Facebook e YouTube a adotarem como política a remoção de conteúdos que podem levar à desinformação e causar danos às pessoas.

“Como ele é o presidente da República, sua privacidade está muito mais sujeita ao escrutínio público, assim como o direito de liberdade de expressão dele. Por isso, o caso pode configurar abuso de liberdade de expressão”, avalia Marco Antonio Sabino, sócio do Mannrich e Vasconcelos Advogados e professor da FIA e do Ibmec. “As plataformas têm toda autoridade para derrubar esse conteúdo, porque viola suas políticas de uso e coloca em risco a saúde pública.”

André Marsiglia, advogado especialista em liberdade de expressão e de imprensa, ressalta que “a utilização dessas plataformas não funciona como um veículo jornalístico”. Por isso, explica, “elas têm direito de adotar suas próprias políticas, como empresas privadas que são”. No entanto, Marsiglia defende a não remoção de conteúdo.

“As empresas deveriam deixar esses conteúdos no ar, ainda que sejam os mais ignorantes”, diz. “Sou sempre a favor que as manifestações, por mais esdrúxulas que sejam, venham ao debate, a gente se engrandece com o debate.”

A importância das redes sociais, por sinal, se deve em parte ao fato de serem ambientes para o debate. “Essas plataformas cresceram como espaço para maior liberdade para trocar ideias. Até então, embasamento científico e fontes oficiais nunca foram critérios para remoção”, lembra Alexandre Pacheco da Silva, coordenador do Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

“Essas remoções representam um ponto de inflexão. Antes, predominava o laissez-faire nas redes sociais, por mais controverso que fosse o conteúdo das postagens”, diz Marília Kairuz Baracat, head de privacidade e proteção de dados do escritório Di Blasi, Parente & Associados. “Estamos falando de uma colisão de princípios, da liberdade de expressão e da supremacia do interesse público, e entendo que o segundo deve prevalecer.”

Além disso, as remoções reforçaram um dos principais preceitos da liberdade de expressão, que é a construção de uma memória para a sociedade. “No final das contas, essas remoções são objetos de uma profunda reflexão da sociedade. Há muita informação para dizer o que foi removido, de que forma, e por qual razão”, destaca Pacheco da Silva.

Artigo 19

Para especialistas, as recentes remoções de posts pelas plataformas digitais reforçam que o artigo 19 do Marco Civil da Internet não engessa a ação dos provedores. Esse artigo diz que uma plataforma está sujeita a responsabilização de conteúdos de terceiros se, após ordem judicial, não tornar a postagem indisponível.

“As plataformas regulam através de seus códigos e podem atuar previamente, antes da decisão judicial”, diz Priscilla Regina da Silva, pesquisadora do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS). “Vivemos no ciberespaço um sistema de corregulação, com regulação do Direito e das plataformas, através dos termos de uso e de seus códigos”.

Para a pesquisadora, não há problema nas remoções, “desde que sejam decisões coerentes, expondo as justificativas, assim como o Twitter está fazendo”. O Twitter coloca no lugar do post excluído links dos termos de uso e das diretrizes gerais da plataforma.

Sem o artigo 19, cuja constitucionalidade será discutida no Supremo Tribunal Federal (STF), conteúdos seriam excluídos em maior proporção a partir de notificações extrajudiciais, uma vez que as plataformas iriam prezar pela cautela. “O que estamos observando agora são situações em que as próprias plataformas estão removendo conteúdos a partir de suas regras contratuais, e o artigo 19 nunca impediu isso”, lembra Alexandre Pacheco da Silva, coordenador do Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação da FGV.