

Quase seis anos após entrar em vigor, o legado do Marco Civil da Internet, criado tendo como um dos objetivos assegurar a liberdade de expressão, pode ser revisto. Especialistas ouvidos pelo JOTA indicam que possível inconstitucionalidade do artigo 19 da Lei nº 12.965/2014 geraria insegurança jurídica e a perda de debate na esfera pública.
O tema é discutido nos recursos extraordinários (REs) 1.037.396 e 1.057.258, de relatoria dos ministros Dias Toffoli e Luiz Fux, respectivamente. No seu atual arranjo, a norma prevê que provedores de aplicação só podem ser responsabilizados civilmente por danos provocados por conteúdos produzidos por terceiros se descumprirem uma ordem judicial determinando a exclusão.
O RE 1.037.396 foi interposto pelo Facebook contra uma decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) que determinou a remoção de uma conta falsa da rede social. Já o RE 1.057.258 é movido pelo Google contra uma decisão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJMG) que deu ganho de causa a uma professora que pediu a exclusão e a responsabilização do Google por causa de uma comunidade do Orkut denominada “Eu odeio a Aliandra”.
Com 32 participantes definidos, as audiências públicas sobre o dispositivo estavam previstas para os dias 23 e 24 de março. Mas, em meio às medidas do Supremo Tribunal Federal (STF) para conter a disseminação do coronavírus, foram suspensas.
Discussão
Para Thiago Oliva, coordenador da área de Liberdade de Expressão do InternetLab, o artigo 19 é uma importante garantia para o exercício da liberdade de expressão no meio virtual e para o acesso à informação. Em seu entendimento, a norma estabelece um regime que protege os intermediários: as plataformas.
Oliva explica que atualmente é necessário o descumprimento de uma ordem judicial prévia e específica de exclusão de conteúdo para que seja possível a responsabilização civil do provedor. Dessa forma, a plataforma pode ser condenada a pagar multas, indenizações, além de arcar com o próprio custo do processo.
Portanto, com a mudança da regra, cria-se uma insegurança jurídica sobre a partir de qual momento o intermediário passaria a ter responsabilidade. “Tendo essa incerteza, se a plataforma começa a receber notificações extrajudiciais solicitando a remoção de conteúdos, é possível que seja criada uma pressão econômica muito grande”, aponta.
De acordo com o especialista, esse panorama é perigoso porque figuras públicas, como políticos e funcionários públicos de alto escalão, poderiam pressionar as plataformas a removerem conteúdos apontados como inadequados, o que pode significar censura de material que é de interesse público. “A plataforma, num eventual mudança da regra, pode acabar optando pela remoção de conteúdo para evitar processos”, explica.
O advogado especialista em direito digital e proteção de dados pessoais Danilo Pardi teme que em períodos eleitorais candidatos poderiam tentar controlar o que é publicado por adversários, ainda que as informações sejam verdadeiras e não contenham ofensas.
Para Pardi, é necessária a provocação: sem o artigo 19 do Marco Civil da Internet, qualquer pessoa que se sinta ofendida com publicações vai ter o direito de responsabilizar os provedores, sendo que eles são apenas veículos transmissores da mensagem.
Por fim, o advogado conclui que hoje os provedores já analisam o conteúdo e verificam as possíveis violações do contrato celebrado com o usuário. Sendo de total interesse dos provedores de aplicação de internet a criação de mecanismos de denúncia, de verificação de veracidade e autenticidade, para manterem suas plataformas salvas de maus usuários.
Novas medidas das plataformas
Em meio à pandemia de coronavírus, o Twitter removeu dois vídeos da conta de Jair Bolsonaro por contrariarem orientações de saúde pública. Em seguida, o Facebook e o Instagram também removeram postagens do presidente. O conteúdo apagado mostrava Bolsonaro passeando pelo Distrito Federal contrariando recomendações de isolamento social.
O senador Flávio Bolsonaro e o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, também tiveram publicações deletadas do Twitter. Ambos postaram um vídeo em que o doutor Drauzio Varella afirma que não há motivo para pânico em relação ao coronavírus. Entretanto, o vídeo foi feito em janeiro, quando não havia nenhum caso confirmado de Covid-19 no país.