Informação x privacidade

Na pauta: STF decide se existe o direito ao esquecimento na primeira sessão do ano

Conceito não é previsto, mas tem sido invocado com frequência em ações e pedidos de remoção de conteúdo da internet

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Crédito: Unspash

Existe o direito ao esquecimento no Brasil? Os ministros do Supremo Tribunal Federal STF) devem ter de responder a essa pergunta na primeira sessão judiciária do ano, na quarta-feira da semana que vem (3/2). Apesar de se tratar de uma disputa sobre a transmissão de um programa da TV Globo a respeito de um crime ocorrido na década de 1950, o julgamento tem, segundo especialistas, contornos bem diferentes e mais extensos que aparentam à primeira vista.

O conceito não é previsto na legislação brasileira, mas tem sido muito discutido nas instâncias inferiores por meio dos inúmeros pedidos de remoção de conteúdo que chegam aos tribunais. A controvérsia coloca, de um lado, a liberdade de expressão e informação e, de outro, direitos à honra, intimidade, privacidade e ressocialização. As discussões durante a sessão devem ser extensas.

A expressão foi importada da Europa. Ela ganhou destaque a partir de um processo envolvendo o Google na Espanha, julgado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia em maio de 2014. Depois de deixar de pagar dívidas com a seguridade social, o imóvel do advogado Mario Costeja González foi levado a leilão, conforme se noticiou no jornal La Vanguardia, no ano de 1998. A dívida, no entanto, foi paga, e a venda judicial suspensa. A partir de 2009, ele passou a buscar a desindexação de seu nome das ferramentas de busca.

O processo que chegou ao STF é anterior ao caso espanhol. De início, não mencionava o termo e o conceito, mas eles passaram a ser invocados pela defesa dos familiares de Aída Curi, que foi assassinada em 14 de julho de 1958. O crime foi relembrado pelo programa Linha Direta, da TV Globo, o que desagradou a família de Curi. 

Como o recurso extraordinário (RE) 1.010.606 teve repercussão geral reconhecida, estudiosos, empresas e setores da sociedade civil que trabalham com liberdade de expressão têm o receio de que o debate possa limitar a liberdade de expressão e a atuação de empresas e jornais na internet. De acordo com o Google, por exemplo, o Brasil é um dos países do mundo onde a empresa mais registra pedidos de remoção de conteúdo.

Neste caso, a fixação da tese será um momento delicado. O Supremo, ao definir os contornos finais do julgamento, pode tratar apenas da imprensa tradicional ou projetar a discussão para a internet, como, por exemplo, colocar balizas para as ferramentas de busca, que servem para acessar a informação neste meio.

O RE já entrou na pauta do STF em outros momentos, mas acabou não sendo chamado a julgamento. Desta vez, como é o primeiro item da primeira sessão plenária, a expectativa é que seja apreciado. E, como o STF tem tradição na defesa das liberdades de imprensa, expressão e acesso à informação, especialistas esperam que a Corte siga esta linha. 

Uma preocupação entre pesquisadores e ativistas pela liberdade de expressão que acompanham o tema é que o Supremo siga a linha concebida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Em maio de 2018, os ministros do STJ decidiram que quando um usuário pesquisasse o nome de uma promotora na internet, os provedores de busca não poderiam apresentar como resultado qualquer conteúdo que fizesse referência a uma suposta fraude em concurso para a magistratura do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ).

Na ocasião, os ministros reforçaram por diversas vezes que se tratava de uma questão excepcional, mas o que era para ser exceção acabou se tornando um precedente para novos pedidos. “Desde então, temos mais de uma dúzia de casos, dos mais diversos, desde uma pessoa envolvida com o chamado ‘Estado Islâmico brasileiro’ a outra que era apontada como traficante de uma ‘nova droga em Curitiba’ se valendo da decisão do STJ para conseguir apagar notícias e links na Internet em nome do direito ao esquecimento”, afirma Carlos Affonso Souza, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS Rio).

NA visão de Daniel Sarmento, professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da UERJ que produziu um parecer para ser juntado aos autos do processo no STF, nos termos em que o STJ concebeu o direito ao esquecimento, o conceito ameaça o direito à informação, a liberdade de expressão e pode prejudicar, inclusive, o fazer histórico. “Um dos problemas do Brasil não é a memória. É a desmemória”, critica. 

De acordo com ele, a ideia de que pessoas têm direito ao esquecimento diante de uma informação embaraçosa ou constrangedora pode se tornar um instrumento para editar o passado de poderosos. “Além disso, se pensarmos no que é a cultura política e jurídica brasileira, assimétrica, desigual, em que se tende a proteger muito mais os poderosos, este poderia se tornar um direito para que políticos, gente do sistema de Justiça, gente rica limpem a suas fichas.” 

Isto não quer dizer que tudo do passado possa ser divulgado. Ele ressalta que existem casos em que a privacidade deve prevalecer, como a identidade de uma vítima de crime sexual. Por outro lado, ele reforça que “o simples passar do tempo não torna o que era possível divulgar no passado como ilegítimo hoje”. 

Sarmento afirma que o caso em discussão é singular, diferente do que foi discutido na Europa, que envolvia autodeterminação informativa. O crime contra Aída Curi foi muito divulgado na ocasião e é relevante também no sentido de mostrar e compreender as relações de gênero da época. Assim, se situações desta natureza não puderem ser discutidas, isto é, na visão do professor, um obstáculo grave às liberdades públicas.

Affonso segue a mesma linha argumentativa. Ele aponta que caso o direito ao esquecimento seja reconhecido e não tenha contornos bem definidos, há o risco de que possa servir para apagar a memória de ilícitos ocorridos no passado — o que já acontece com pessoas envolvidas em escândalos de corrupção que buscam apagar notícias online, ou mesmo que parque de diversões tentem apagar menções a um acidente ocorrido em uma das suas atrações.

Ele afirma que o direito ao esquecimento se tornou tão popular por oferecer uma aparência de controle sobre as informações que dizem respeito às pessoas em tempos de hiperconexão e nos quais tanto é dito e compartilhado sobre todos a todo instante. “Mas esse direito oferece mesmo apenas uma aparência. Aliás, o próprio nome direito ao esquecimento já traz em si uma falsa promessa, pois nenhuma ordem judicial em si pode garantir que o seu efeito será o esquecimento de determinado fato pela sociedade. Não raramente o efeito é justamente o oposto.”

O efeito mencionado por Affonso ficou conhecido como “efeito Streisand”, em referência à cantora americana Barbara Streisand. Isto porque ela acionou a Justiça para retirar da internet uma foto da sua mansão no litoral da Califórnia. Mas a imagem aérea, que compunha um ensaio sobre erosões na costa californiana, tinha sido vista por apenas seis pessoas – entra elas os advogados de Barbara – quando a artista processou o fotógrafo em US$ 50 milhões. A ação judicial fez com que a foto viralizasse e fosse acessada por mais de 420 mil pessoas em apenas um mês.

Aída Curi

O caso concreto que chegou ao STF foi o de Aída Jacob Curi. Ela nasceu em Belo Horizonte, se mudou para Goiás e, de lá, para o Rio de Janeiro com a família. Conheceu Ronaldo Guilherme de Souza Castro, 19 anos, em 14 de julho de 1958, em Copacabana. Na mesma tarde, Aída subiu com Ronaldo até a cobertura de um prédio, onde foi espancada e estuprada por ele e dois amigos. Quando ela desmaiou, eles tentaram simular um suicídio, a empurrando do parapeito.

A história foi dramatizada pela TV Globo em 2004, no programa Linha Direta Justiça. A família da vítima, então, foi à Justiça pedir uma indenização pelo fato de o crime ter sido relembrado, encenado e transmitido em cadeia nacional, enquanto os parentes gostariam de esquecer a brutalidade pela qual Aída Curi passou.

Em setembro do ano passado, o JOTA realizou webinar sobre o tema. Especialistas discutiram o leading case sobre direito ao esquecimento no Brasil. Veja como foi:

Outros casos de liberdade de expressão na pauta

As garantias constitucionais da liberdade de expressão e acesso à informação são pauta também dos processos que tratam de direito de respostas, que entraram na pauta do dia 10 de março. Na ADI 5.436 a Associação Nacional dos Jornais (ANJ) questiona cinco dos 12 artigos da Lei 13.188/2015, que “dispõe sobre o direito de resposta ou retificação do ofendido em matéria divulgada, publicada ou transmitida por veículos de comunicação social”. A OAB e a ABI também apresentaram ações sobre o tema.

O ministro Dias Toffoli é o relator das três ações. De acordo com as impetrantes, a norma, a pretexto de imprimir celeridade ao exercício do direito de resposta, afronta diversas garantias constitucionais que são caras ao Estado Democrático de Direito, a exemplo do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, do princípio da isonomia e da inafastabilidade do controle jurisdicional, além do princípio da proporcionalidade.

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