Liberdade de expressão

Mirando em fake news e acertando em vigilância

A identificação de usuários como estratégia falida de combate à desinformação

propostas, anatel
Crédito: Pexels

“Mirando nas estrelas” (I aim at the stars) é o título de um antigo filme biográfico sobre a vida do físico Wernher von Braun, que liderou pesquisas bélicas na Alemanha antes de ter colaborado com o projeto espacial norte-americano. Hoje, o filme talvez seja até mais conhecido pelo seu “subtítulo” extraoficial: “… porém às vezes eu acerto Londres” (... but sometimes I hit London).

O difícil convívio entre boas intenções e um contexto complexo e sensíbilíssimo, mais uma vez, demonstra ter poder devastador: nas últimas semanas, a tramitação acelerada de um conjunto de propostas visando o combate à desinformação tem povoado a pauta do Congresso Nacional. Entre os muitos projetos[1], estão em debate propostas regulatórias com alvos diversos – como a conduta de usuários, o modelo de negócios de plataformas ou a criação de novos tipos penais que englobam a cadeia de agentes envolvidos em campanhas de desinformação em massa.

É neste contexto que a discussão sobre a necessidade da identificação civil para o acesso à Internet, já tantas vezes debatida, volta à cena.

Atualmente, o debate tem foco no substitutivo apresentado pelo Senador Angelo Coronel (PSD/BA) ao PL 2630/2020, que dentre uma série de medidas de legitimidade e eficiência questionável, propõe que “[o] cadastro de contas em redes sociais e nos serviços de comunicação interpessoal deverá exigir do usuário documento de identidade válido, número de celular registrado no Brasil e, em caso de número de celular estrangeiro, o passaporte”. O objetivo é permitir a identificação e responsabilização de indivíduos responsáveis por produzir ou disseminar conteúdo que se classifique como desinformação.

De forma geral, a medida da legitimidade de propostas regulatórias é, em grande parte, um delicado exercício de equilíbrio em que pesa, principalmente, o potencial que a estratégia escolhida tem de atender o seu objetivo e as restrições a direitos que dela podem resultar. No caso da exigência de identificação prévia de usuários para uso de aplicativos de Internet, esse exercício ganha contornos mais simples: ao mesmo tempo que falha em atingir parâmetros mínimos de legitimidade, também não tem potencial de combater as práticas de desinformação de forma minimamente eficiente.

Em relação à legitimidade, há, em primeiro lugar, uma incompatibilidade entre esta proposta e as bases principiológicas do direito fundamental à proteção de dados pessoais, recentemente reconhecido pelo STF como garantia constitucional e funcionalizado por diversos diplomas normativos, inclusive pela nossa Lei Geral de Proteção de Dados (que em breve entrará em vigor). O direito à proteção de dados compreende, como um de seus elementos principais, o estabelecimento de instrumentos que visem reduzir o risco aos cidadãos que o tratamento de seus dados podem lhe causar. Para tal, procura e impedir que dados pessoais sejam tratados sem que haja um objetivo consistente e fundamentado,  . E quando cabível, este tratamento deve  ser reduzido ao mínimo necessário para que o seu objetivo seja alcançado, além de ser proporcional aos interesses e direitos envolvidos.

O tratamento de dados pessoais é, portanto, atividade que implica risco e assim deve ser considerada. Se um determinado objetivo puder ser alcançado sem dados pessoais ou com um conjunto reduzido destes, estas opções sempre deverão ser privilegiadas em relação à sua utilização em larga escala.

Nesse sentido fica patente que uma medida que implique na necessidade prévia da coleta e armazenamento de dados pessoais dos usuários de redes sociais é frontalmente incompatível com o direito fundamental à proteção de dados. Principalmente porque gera um risco injustificado de que os dados coletados prejudiquem os seus titulares, seja por criar o risco de acesso indevido ou vazamento de dados, seja por proporcionar a estrutura necessária para a vigilância massiva dos movimentos dos cidadãos em redes sociais, típica de regimes autoritários. Aliás, não há sequer registro que uma tal medida, em caráter prévio, tenha sido implementada em outros ordenamentos jurídicos, o que, por si só, já é indício de que não há soluções simples para o problema da desinformação.

Além disso, o acesso à Internet hoje em dia se concretiza, em grande parte, através da fruição de serviços e produtos disponibilizados pelas mais diversas aplicações. Mesmo antes da pandemia, que virtualizou ainda mais o dia a dia das populações, em 2011, a relatoria da Organização das Nações Unidas para Liberdade de Expressão e de Opinião já reconhecia que o acesso à Internet é um catalisador do exercício de direitos fundamentais. Isso inclui, em grande parte, o direito à liberdade de expressão, mas também o acesso a serviços essenciais, lazer e participação profissional e pessoal em diferentes fóruns.

Eventualmente alega-se que a exigência de identificação já é amplamente aceita em determinados setores do comércio. No entanto, não cabem  analogias da  Internet  com espaços que devam ser precedidos de credenciais. A Internet, mais do que um setor comercial controlado, tem na sua natureza aberta e expansível a sua característica essencial, que permitiu e permite a inclusão de vários agentes, facilitando de forma inaudita a possibilidade de interação e expressão entre as pessoas. Quaisquer limitações ou restrições de acesso, ainda que fundadas em preocupações legítimas, devem ser sopesadas com o efeito colateral de tornar a rede menos aberta e, portanto, menos útil, com reflexos para a cidadania, os direitos e para a economia também.

Políticas que possam restringir o acesso aberto à rede e aos seus serviços,, coagindo usuários ao fornecimento de informações sem que haja necessidadee   expondo-os a riscos absolutamente dispensáveis, são também antidemocráticas. Há nelas um potencial de excluir da vida digital tanto aqueles poderiam se valer do anonimato para se expressar de forma segura, bem como parcela da população ainda em situação informal, e que, por isso mesmo, talvez tenha ainda mais a perder com a limitação de seu acesso[2].

Ao mesmo tempo, a medida pode ser facilmente caracterizada como uma solução pretensamente simples para um problema que não o é: como já acontece em outros setores, espera-se que aqueles que necessitem de contas nas redes sociais para disseminar desinformação não deixarão de fazê-lo, pois aqui também os documentos de identidade poderão ser fraudados para viabilizar o uso ilícito dessas plataformas.

E, ainda que fosse garantida a eficiência desse processo de identificação, o efeito dessa medida sobre as estratégias de desinformação permaneceria, ao menos, limitado. Ao focar nos usuários, a ponta de todo o processo de comunicação online, essas estratégias preferem tomar o caminho curto e drástico de penalizar indivíduos e falham em endereçar a questão de forma estrutural. Não consideram, por exemplo,  que os modelos de negócios das plataformas de Internet podem, sem causar os mencionados riscos, introduzir em suas práticas valores como transparência, responsabilidade e devido processo, por exemplo, nos seus mecanismos de moderação e monetização de conteúdo.

Como mencionamos, há outras alternativas para a investigação de atividades ligadas à desinformação e fake news que não implicam na utilização massiva de dados pessoais e no cadastro prévio.. Veja-se, por exemplo, o próprio caso do Inquérito 4781, que corre no STF com a finalidade de investigar  “notícias fraudulentas (fake news), falsas comunicações de crimes, denunciações caluniosas, ameaças e demais infrações”[3], cujas diligências ocorrem a despeito de quaquer registro prévio de identidade dos envolvidos em redes sociais.

Outro ponto que, mais e mais, vem se demonstrando central no combate à desinformação é o  aprofundamento na investigação de estruturas organizadas e financiadas de disseminação de desinformação que se utilizam de redes sociais e plataformas para esta atividade. A experiência mais recente revela que tais estruturas, para terem êxito na propagação de desinformação de forma sistematizada e ampla, demandam um financiamento e estrutura consistentes e que podem ser identificadas e punidas através da investigação sobre os seus sinais visíveis. Isso em nada depende do enfoque na identificação do usuário que, além de todo o risco potencial aos seus direitos fundamentais, afigura-se como inócuo em relação a estas estruturas.

O papel que redes sociais e outras plataformas têm a cumprir no combate à desinformação é fundamental, ao apresentar maior transparência e disposição em identificar elementos que estejam na raiz das estruturas da desinformação, ainda que isto implique em mudanças nos seus próprios modelos de negócio. Somente neste sentido é que o Projeto de Lei sobre Liberdade, Transparência e Responsabilidade na Internet pode ser sequer aventado, e não como um elemento que coloque na conta do cidadão, mais uma vez, os riscos e custos de uma medida que, além de frontalmente contrária ao nosso ordenamento, dá claras mostras de ser inócua.

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[1] Considerados somente os Projetos de Lei apresentados nos últimos três meses, veja-se, por exemplo: PL 2360/2020PL 1429/2020, PL 3063/2020, PL 1491/2020, PL 2389/2020, PL 3131/2020, PL 3307/2020, PL 2763/2020, PL 3144/2020.

[2] Estima-se que ao menos 5% dos brasileiros não possuam sequer o registro de nascimento. Sendo esta forma de identificação mais abrangente no país, o percentual que não possui outras formas de identificação é, necessariamente, maior, o que nos permite trabalhar com o fato do país possuir uma “população invisível”em volume relevantíssimo e muito provavelmente em situação de vulnerabilidade. < https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/135/rc_2018_v45_informativo.pdf >

[3] Inq 4781/DF, Supremo Tribunal Federal, Min. Relator Alexandre de Moraes.