LIBERDADE DE EXPRESSÃO

Juíza escreve #AglomeraBrasil, faz piada com coronavírus e advogado aciona CNJ

Há limites para a liberdade de expressão de magistrados nas redes sociais? Especialistas discutem se CNJ pode atuar no caso

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Juíza Ludmila Lins Grilo / Crédito: reprodução YouTube

Durante o feriado de ano novo, a juíza Ludmila Lins Grilo, da Vara Criminal e da Infância e da Juventude de Unaí, em Minas Gerais, fez uma série de publicações em seu perfil no Twitter, que reúne mais de 136 mil seguidores, com críticas e piadas envolvendo as medidas de segurança adotadas pelo poder público para conter a propagação do coronavírus nas festas de final de ano.

Na virada de 30 de dezembro para 1º de janeiro, a magistrada divulgou um vídeo de fogos de artifício vistos de uma praia com os dizeres “Feliz Ano Novo!”, seguido pela hashtag #AglomeraBrasil. O termo foi utilizado por diversos perfis brasileiros neste período com o intuito de incentivar celebrações com grande participação de público, apesar do avanço da doença, que ultrapassou as 196 mil vítimas durante o feriado.

No mesmo dia, Grilo também compartilhou um vídeo que mostra uma rua pública de Búzios, no Rio de Janeiro, lotada. No post, a juíza comentou: “Rua das Pedras, em Búzios/RJ, agora à noite. Uma cidade que resiste à estupidez”. Na publicação seguinte, ela acrescentou: “Uma cidade que não se entregou docilmente ao medo, histeria ou depressão. Aqui, a vida continua. Foi maravilhoso passar meu réveillon nessa vibe”.

Neste domingo (3/1), em nova postagem, a juíza compartilhou uma foto de si mesma no que disse ser uma pizzaria. Na legenda da foto, Grilo escreveu: “Parei pra comer uma pizza aqui, rapidão. Pizzaria tá cheia, mas não se preocupem: como eu já estou sentada, o vírus passa por cima”. Após receber críticas por suas publicações, a juíza compartilhou uma imagem que fazia referência ao CNJ:

Uma das publicações feitas pela juíza Ludmila Lins Grilo / Foto: reprodução

Até esta segunda-feira (4/1), as quatro publicações já haviam alcançado mais 170 mil perfis no Twitter.

Os posicionamentos da magistrada reverberaram nas redes sociais e chegaram até o Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

No último sábado (2/1), o advogado José Belga Assis Trad ingressou no CNJ com um pedido de apuração de infração disciplinar contra Grilo. No documento, o advogado diz que “ao se manifestar contra as recomendações das autoridades sanitárias, embora não tenha formação e não seja médica sanitarista, o público que tem acesso ao conteúdo das postagens da doutora Ludmila Lins Grilo passa a confundir a opinião, infundada, da magistrada com a da magistratura”. Leia a inicial na íntegra.

Pontua, ainda, que os seguidores da magistrada serão influenciados por sua
irresponsável e inconsequente manifestação, que, “de tão absurda, pode estar a
configurar crime de apologia à infração de medida sanitária preventiva”.

Ao JOTA, Trad disse que o principal argumento para entrar com o pedido é o de que as manifestações da magistrada contrariam e contradizem recomendações do próprio CNJ em relação às medidas de distanciamento e segurança. “O CNJ adotou uma série de medidas, de forma a ‘evitar o fluxo de pessoas’ nos fóruns, além de disciplinar que as unidades judiciárias deveriam zelar pela observância dos órgãos de saúde, especialmente o distanciamento mínimo de 1,5 m entre os presentes”, disse.

O advogado citou também o artigo 3, I, b, da Resolução CNJ 305/2019, que estabelece os parâmetros para o uso das redes sociais pelos membros do Poder Judiciário, diz que os magistrados devem “observar que a moderação, o decoro e a conduta respeitosa devem orientar todas as formas de atuação nas redes sociais”.

“Eu penso que ela não foi moderada, tampouco guardou o decoro e o respeito aos doentes, às vítimas e aos familiares, ao incentivar e exaltar aglomerações, em um momento em que a epidemia está em franco crescimento. Tampouco foi respeitosa com o Judiciário, que desde o início da pandemia não está funcionando com a sua plena capacidade, em prejuízo até da atividade jurisdicional, justamente para seguir as recomendações sanitárias de distanciamento”, afirmou.

A mesma resolução, defendeu Trad, considera que há profundos impactos, positivos e negativos, que a conduta do magistrado nas redes sociais pode acarretar sobre a percepção da sociedade em relação à credibilidade, à legitimidade e à respeitabilidade da atuação da Justiça.

“Quando vi a manifestação da magistrada, em momento em que o distanciamento, adotado oficialmente pelo CNJ e pelo Judiciário, é uma das únicas medidas de prevenção ao contágio enquanto não houver vacina, eu vi nisso um grande desserviço ao Judiciário e à sociedade e tomei a providência que estava ao meu alcance”, acrescentou.

Questionado sobre o assunto, um conselheiro do CNJ, que preferiu não se identificar, já que poderá ter de julgar o caso, afirmou que Grilo é “useira e vezeira em irregularidades, desde há muito tempo. Isso mostra que os órgãos correcionais devem procurar agir sempre ao tempo do ilícito, para evitar que juízes como ela permaneçam na magistratura.”

A reportagem tentou contato com a magistrada pelas redes sociais, mas até esta publicação não houve retorno. O espaço está aberto para manifestações.

Uso das redes por membros do Poder Judiciário

A questão envolvendo os limites para o uso de redes sociais por membros do Poder Judiciário, que têm como ofício do cargo julgar casos concretos, ainda é complexa e não encontrou uma saída pacífica, segundo avaliaram especialistas consultados pelo JOTA.

No entendimento de André Marsiglia, advogado constitucionalista especializado em liberdade de expressão, é uma prática inconstitucional tentar fazer com que o CNJ intervenha nas publicações de magistrados, por piores que sejam as manifestações.

“É inconstitucional porque viola as normas da Constituição Federal que protegem a liberdade de expressão de todos nós. Se uma empresa, por exemplo, decide redigir um código de conduta de colaboradores impedindo que se expressem nas redes sociais sobre determinados assuntos, o código será inconstitucional, porque fere a liberdade de expressão. O mesmo ocorre quando o CNJ decide regular as opiniões pessoais dos magistrados”, afirmou.

De acordo com o advogado, o artigo 36, III, da lei que regula a magistratura (Lei Orgânica da Magistratura Nacional) deixa claro que o juiz não pode se manifestar sobre seus processos ou de colegas. Impede, ainda, que os juízes se envolvam em política partidária. No entanto, “não impede, e nem poderia impedir, que o juiz tenha opiniões e as manifeste”, disse, acrescentando que a “liberdade de expressão serve justamente para proteger as opiniões controversas, as que nos desagradam. As que nos agradam já estão protegidas pelo consenso”.

Em relação à resolução do CNJ que dispõe sobre as redes sociais, Marsiglia disse que a parte em que a resolução inova e trata, na seção I, das redes sociais e das opiniões pessoais dos magistrados, ela “tem o cuidado de não falar em vedação, mas em recomendação, e usa nos artigos o termo ‘evitar’. Ou seja, não obriga”. Para ele, apesar disso, a norma é “suficiente para ser constrangedora aos juízes, pois mesmo tendo natureza de orientação, trata o magistrado de forma infantil, como se precisasse ser tutelado”, finalizou.

Já na visão do criminalista André Albessú Pellegrino, as garantias de liberdade de expressão para magistrados recebem tratamento diferenciado pela legislação, com base no código de ética dos magistrados e em recomendações do CNJ, tendo em vista a capacidade do juiz em formar a opinião pública.

“Ao magistrado, para além do dever de acatamento inerente ao cargo, vigoram diversas limitações, de caráter ético-disciplinar, que devem ser observadas a fim de preservar as prerrogativas necessárias ao exercício dessa função pública. Ao se ler o código da magistratura, é possível verificar que o magistrado tem o dever de se comportar na vida privada de modo a dignificar a função que exerce, impondo restrições que são distintas das que se estendem ao cidadão em geral”, defendeu.

Pellegrino cita que na resolução do CNJ, se estabeleceu que os juízes devem evitar expressar opiniões ou compartilhar informações que possam prejudicar o conceito da sociedade em relação a sua independência, imparcialidade, integridade e idoneidade. Ou que possam afetar a confiança que o poder público tem no Judiciário.

Essas restrições, na sua avaliação, não precisam ser aplicadas também para os membros do Ministério Público. Isso porque é preciso fazer uma distinção entre quem faz a defesa de uma causa e quem julga.

“Em tese, a gente poderia questionar como um juiz, que se mostra publicamente contrário às políticas públicas adotadas pelo estado, vai ter isenção para julgar um caso de, por exemplo, suposta violação de medida sanitária, crime que se relaciona exatamente nesse aspecto da sua opinião”, afirmou, acrescentando que as restrições identificadas no código de ética da magistratura não são extensíveis com o mesmo nível de profundidade aos promotores.

Para Ricardo Prado, presidente do Movimento do Ministério Público Democrático e promotor de Justiça aposentado do MPSP, os limites das manifestações ainda estão em aberto. No entanto, segundo ele, uma autoridade do Estado tem responsabilidades e o cargo impõe certas limitações.

“Em nossa legislação, o juiz fala por último, e, por isso, não deve falar primeiro. Há quem acredite que não deve falar em redes sociais: ao menos, não sobre temas polêmicos sobre os quais possa vir a julgar. Depois, o juiz deve ser fiel aplicador da lei, somente podendo recusar sua aplicação em casos de inconstitucionalidade.  De forma que, fazer pregação em afronta à legislação vigente não é o que se espera de membros da magistratura”, avaliou.

Prado prevê que, por toda a sociedade estar em fase de aprendizado sobre as redes sociais, gradativamente os limites ficarão mais claros. “Sempre haverá excessos e, se forem oriundos de membros da magistratura, caberá às corregedorias e ao CNJ a competente apuração. Gradativamente, os limites vão ficando mais demarcados. No sistema tradicional, juízes falavam apenas nos autos do processo, através dos despachos e das sentenças, mas os próprios ministros do STF quebraram essa prática”, disse.

A representação feita contra a magistrada corre sob o número 0000004-32.2021.2.00.0000 no CNJ.

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