Opinião

Fake news, leis inócuas e os atropelos do Senado Federal

A regulação apressada das fake news e seus efeitos graves para direitos fundamentais no Brasil

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Crédito: Mika Baumeister on Unsplash

O Projeto n° 2630, de 2020, de autoria do sen. Alessandro Vieira (CIDADANIA-SE), que propõe uma “Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet”, parte de uma visão simplista do que é a rede mundial de computadores.

Corre o risco de prejudicar a pluralidade e a diversidade na sua camada de aplicações, espaço onde operam todos os serviços que nós usamos. Mas principalmente: faz exigências absolutamente sem sentido e contraproducentes (tanto para usuários, quanto para provedores) para o combate à desinformação. O PL ameaça direitos fundamentais e contribui para a geração de um nível de insegurança jurídica que tornará o Brasil em um novo pária da economia digital. 

Além de problemas estruturais graves, como os apontados a seguir, é preciso dizer que o processo está sendo tocado de forma açodada, opaca e de forma completamente antidemocrática. É uma proposta confusa, cheia de contradições e lacunas. Para agravar o cenário, o sen. Angelo Coronel (PSD-BA), encarregado de relatar a proposta, somente liberou o texto definitivo para deliberação do Senado às duas da madrugada no dia da votação.

No escopo de aplicação da lei há um grande problema: vemos que a regra foi pensada, sobretudo, com três plataformas em mente: Google, Facebook e WhatsApp. A despeito da centralidade dessas empresas, há muito mais que isso na Internet. Com isso, mira alguns grandes provedores, mas cria regras de alcance geral, que poderão aplicar-se indistintamente para milhares de serviços online. É um projeto datado e que muito em breve deixará de fazer sentido, por conta do dinamismo da evolução histórica da Internet. É como se estivéssemos em 2011 e pensássemos em uma regra pela ótica míope do Orkut.

O PL resgata coisas esdrúxulas que já foram propostas e corretamente abandonadas no passado. Exige, por exemplo, documento com foto e comprovante de endereço pra usar aplicações de Internet. A proposta cruza a linha do vigilantismo quando propõe medidas de registro de histórico abrangente de tudo que se faz online para gerar rankings de bons e maus usuários. Faz sentido coletar todos os nossos cliques e buscas no Google e manter isso numa base de dados para consultas futuras?

Trata, ainda, de “rastreamento” do que fazem os usuários em aplicativos de mensagens e rotulação de todos os conteúdos originais, com informações de seus autores. Não há sinais claros como essa norma, que sofre ao mesmo tempo de larga ambiguidade e de falhas estruturais, poderá ser usada pelo setor público para viabilizar sistemas de vigilância maciça dos brasileiros. É provável que, no futuro, seja desvirtuada de suas boas intenções e servirá para a fabricação de soluções arbitrárias. Sua vaguidão pode acabar por municiar autoridades públicas interessadas em cometer abusos e a perseguir dissidentes políticos como ocorre frequentemente em outros países.

Falando em insegurança jurídica, se um usuário sinalizar que tem mero interesse em judicializar algum conteúdo, os provedores de aplicação têm 48 horas para remover o conteúdo, sob pena serem responsabilizados. Não sabemos se essa lei será aplicada, levando a excessos, ou se será ignorada quebrando a confiança na lei. Ambas situações geram insegurança jurídica e todos sabemos os prejuízos disso em termos de desenvolvimento socioeconômico do Brasil.

O PL, em realidade, contorna com soluções sumárias, algumas claramente inconstitucionais: o debate profundo e necessário sobre a definição de conceitos que ela busca punir. Ela define mal problemas como desinformação, rede social, espaços públicos e privados na Internet, “contas inautênticas”, vedação ao anonimato, entre outros. 

A desinformação precisa ser considerada como um elemento que faz parte do mundo real, que se espalha pela Internet, em todas as suas esferas, e que reflete a disputa por narrativas políticas. É um fenômeno sociopolítico e cultural complexo, cujo tratamento não pode se resumir à variável tecnológica, nem a definições grosseiras. Em outras palavras: não adianta empurrar todas as responsabilidades para as plataformas e esperar que elas desenvolvam uma solução técnica mágica que vá resolver nossos problemas. 

Coibir abusos da liberdade de expressão não é algo que possa ser atacado com soluções simplistas. Pode-se até fazer um paralelo entre o PL e a cloroquina. Trata-se de algo que se propõe a resolver milagrosamente um problema, sem contar com qualquer respaldo dos especialistas e que indica em sua bula efeitos colaterais perigosíssimos.

É preciso uma discussão muito mais aprofundada, não apressada e plural, se quisermos, de fato, resolver tais problemas. O projeto de lei apresenta retórica, mas nenhuma solução à insegurança jurídica. É lamentável que uma lei que se proponha a proteger a informação e o debate público tramite de forma obscurantista e cerceando a discussão. É algo que nos remete de volta a um passado autocrático muito perigoso e, portanto, inaceitável.

*** As opiniões e opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade dos autores e não refletem necessariamente a política ou posição oficial de nenhuma instituição a que eles estejam vinculados.

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