Políticas públicas

Judicialização da administração pública em meio à pandemia

Qualquer fator externo, ainda que de bom grado, afeta o planejamento elaborado pelos órgãos competentes

administração pública
Crédito: Marco Santos / Ag. Pará
brava

Em meio a pandemia pela qual atravessa a humanidade, se mostrou ainda mais necessária a elaboração e execução de políticas públicas eficientes visando não só o tratamento dos infectados, como, também, a contenção do vírus, ou seja, a redução da sua proliferação na sociedade.

De acordo com Janini e Celegatto (2020)[1], “os direitos sociais exigem uma postura ativa dos governantes, de forma que as políticas públicas se tornam instrumentos indispensáveis para a implementação dos direitos ora tratados”.

Para tanto, Estados e Municípios deram início a uma corrida contra o tempo a fim de ampliar o número de leitos hospitalares, adquirir insumos a serem utilizados no combate a citada pandemia – desde equipamentos de proteção individual (EPIs) até respiradores – e decretar medidas de isolamento social, com o fito de diminuir ao máximo a circulação de pessoas e, via de consequência, a proliferação do vírus.

Paralelo a essa soma de esforços dos entes federativos em busca da amenização dos impactos provocados pela Covid-19, iniciou-se um processo de “judicialização do novo coronavírus”, o que, naturalmente, provoca impactos nas políticas públicas pensadas pelos citados entes.

Mas, afinal, até que ponto esse movimento de judicialização contribui (ou não) com o enfrentamento dessa pandemia?

De saída, deve-se pontuar que, há tempos, a sociedade vivencia uma alteração “do núcleo de poder do Estado […] destacadamente, no Brasil. Evidencia-se o crescente protagonismo do Judiciário.” (MONTI e HAZAR, 2019)[2]. De acordo com Valle (2020)[3] isso é decorrência, em tese, de dois fatores: a) a ampliação da “esfera de investigação judicial pela conjugação da aplicação imediata dos direitos fundamentais”; e b) a “interpretação amplíssima da garantia constitucional de acesso à justiça”. A junção dos mencionados fatores provoca, de acordo com a autora, “um incremento exponencial das demandas envolvendo a impugnação de escolhas públicas.” (grifou-se).

Com isso, se tornou cada vez mais comum a judicialização da política ou da administração pública – no sentido de função administrativa. Fenômeno esse que deve ser analisado com muita cautela, uma vez que (a) não se pode exigir dos magistrados uma expertise em todas as matérias atinentes à gestão pública, bem como (b) deve-se atentar à reserva do possível, que diz respeito exatamente às limitações (em especial, orçamentárias) que o Poder Público encontra para a concretização de políticas públicas.

Afinal, por vezes, “a falta de efetivação de políticas públicas pelo Poder Executivo” se dá pela ausência de “orçamento suficiente para suportar tais investimentos” (JANINI e CELEGATTO, 2020).

Para além disso, deve-se pontuar que, via de regra, o Estado (lato sensu) possui um planejamento de medidas a serem adotadas – ainda que em tempos de crise –, que se dá – ou deveria se dar – de forma coordenada pelos órgãos técnicos, como, por exemplo, Ministérios, Secretarias de Governos, Agências Reguladoras.

E, naturalmente, qualquer fator externo, ainda que de bom grado, afeta o planejamento elaborado pelos órgãos competentes – em especial em momentos como esse que atravessa a sociedade.

Inclusive, recentemente foram proferidas duas decisões judiciais com teores antagônicos: uma no sentido de implementar o lockdown e outra dispondo sobre a reabertura gradual do comércio.

A primeira se deu no Estado do Maranhão, onde, após Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público daquele Estado, um magistrado decretou que “aplique, nos Decretos que tratam do distanciamento social como medidas não farmacológicas contra a disseminação do vírus causados da Covid-19, o lockdown […]”. A segunda, por sua vez, se deu no Distrito Federal, quando, após pleito conjunto do Ministério Público Federal, do Ministério Público do Trabalho e do Ministério Público do Distrito Federal, uma juíza deferiu parcialmente uma liminar “PARA CONDICIONAR a abertura das atividades comerciais previstas nos blocos 1 e 2 da tabela 11 da Nota Técnica da Codeplan (id 232694887), mantendo-se o intervalo temporal de 15 dias para cada etapa de liberação […]”[4].

Ainda que, repita-se, a intenção dos julgadores seja a melhor possível, restam evidenciadas claras interferências do Judiciário em matéria que deveria, ao menos em tese, ser tratada privativamente por aquele Poder que possui a atribuição constitucional de pensar e executar políticas públicas, qual seja, o Executivo.

Afinal, essa é a ideia central da teoria da repartição dos poderes, que foi idealizada por Platão e, posteriormente, foi aprimorada por Aristóteles, John Locke e Montesquieu. Corroborando com a citada teoria, Monti e Hazar (2019) pontuam que “um Estado apenas pode se pretender democrático quando nenhuma de suas instituições detiver, de maneira substancial, o poder concentrado no exercício de suas atribuições, em detrimento da participação dos demais.”.

E, em casos tais, se tem uma nítida ingerência no mérito administrativo, que é exatamente a análise dos juízos de conveniência e oportunidade por parte dos agentes públicos para a prática de atos administrativos. Nesse sentido, Valle (2020) afirma que “a transposição de juízos de conveniência e oportunidade para as estruturas de controle se apresenta como alternativa antidemocrática.”.

Importante salientar que cabe, prioritariamente, ao Poder Executivo a adoção de políticas públicas tanto por terem, em tese, maior afinidade com tal atribuição, como por possuírem mais legitimidade democrática do que os juízes.

Nesse sentido, Jordão (2016)[5]:

Uma orientação judicial deferente reduziria os riscos de intervenção judicial em matéria para a qual os tribunais são comparativamente pouco adaptados, alocando o poder decisório respectivo para a administração pública, detentora de maior pedigree político-democrático. Esta legitimidade democrática superior deriva das usuais características institucionais das autoridades administrativas, em comparação com aquelas dos tribunais.

E continua o autor:

[…] a autoridade administrativa costuma ter uma atuação mais especializada, específica em relação a determinado setor da economia ou da vida social. […] Estas diferenças fazem a autoridade administrativa mais familiarizada com as vicissitudes do setor sobre o qual sua atuação recai. Ela tem maior vivência dos seus problemas, atua diuturnamente com seus atores principais e conhece suas contingências.

Ainda que os julgadores se valham da reserva de consistência, “que impõe ao Judiciário a formulação de critérios seguros para a concretização de direitos fundamentais, principalmente quando demandam a implementação de políticas públicas”, deve-se, sempre, buscar a preservação da “harmonia entre os Poderes da República.” (JANINI e CELEGATTO, 2020).

Por fim, deve-se ter mente que, em tempos como esse, medidas que não sejam tomadas de forma coordenada, pautadas em orientações técnico-científicas, podem custar um valor muito alto para os entes federativos – tanto em termos econômicos, como, principalmente, em termos de vidas.

Logo, os Poderes devem atuar, mais do que nunca, de forma harmoniosa, prezando por uma boa interlocução entre eles, através da “prática orientada ao diálogo, desenvolvido a partir de uma dialética entre Administração Pública e agentes de controle presidida por argumentos objetivos e conhecidos.” (VALLE, 2020).

 


[1]JaniniT. C.; CelegattoM. A. Q. A COERCITIVIDADE DAS DECISÕES JUDICIAIS QUE DETERMINAM A EFETIVAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS PELO PODER PÚBLICO. REVISTA DA AGU, v. 19, nº 02, 2 mar. 2020. Disponível em: <https://seer.agu.gov.br/index.php/AGU/article/view/2309/2142>.

[2] MontiL. C.; HazarM. R. C. OS PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E DA RAZOABILIDADE NA INTERVENÇÃO DO JUDICIÁRIO NA IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICA PÚBLICAS. REVISTA DA AGU, v. 18, nº 04, 22 out. 2019. Disponível em: <https://seer.agu.gov.br/index.php/AGU/article/view/1965/2103>.

[3] VALLE, Vanice Regina Lírio do. DEFERÊNCIA JUDICIAL PARA COM AS ESCOLHAS ADMINISTRATIVAS: RESGATANDO A OBJETIVIDADE COMO ATRIBUTO DO CONTROLE DO PODER. Revista de Direitos Fundamentais & Democracia, Curitiba, v. 25, n. 1, p. 110-132, abr. 2020. Disponível em: <https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/1577/649>.

[4] Decisões disponíveis em: <https://www.conjur.com.br/dl/juiza-autoriza-reabertura-gradual.pdf; e https://www.conjur.com.br/dl/justica-ordena-lockdown-maranhao-sao.pdf>.

[5] JORDÃO, Eduardo. Controle Judicial de uma Administração Pública Complexa: a experiência estrangeira na adaptação da intensidade do controle. São Paulo: Malheiros, 2016