Inovação

Hotline bling: Covid-19, Justiça como serviço e virtualização dos atos processuais

Nos próximos dias do isolamento social, fique atento à luz piscante do seu celular. Pode ser uma intimação judicial

virtualização dos atos processuais
Crédito: Pexels

De acordo com a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), apenas 46% dos cidadãos tem acesso à justiça, enquanto mais de 50% das pessoas agora são usuários ativos da Internet.[1] Esses dados surpreendentes e com tons orwellianos tendem a se gravar ainda mais com a Covid-19. A revolução tecnológica no Poder Judiciário[2], portanto, é uma urgência de primeira ordem e implica não só no uso intensivo de tecnologia de ponta, mas também em mudanças legislativas e reinvenção de práticas organizacionais. Todavia, para essa revolução, não há uma Toulon; é preciso uma transformação fracionada, gradual e interdisciplinar. A justiça é um lugar ou um serviço? Essa pergunta vem sendo feita reiteradamente pelo professor Richard Susskind há quase uma década[3] e pretendemos respondê-la, ainda que parcialmente, neste breve texto.

Com o perdão do truísmo, a pandemia, como toda crise, pode ser uma grande motora para transformação digital no Poder Judiciário brasileiro. Isso porque, um simples upgrade de funcionalidades em seus sítios eletrônicos e aplicativos, ocasiona a simplificação da prática digital de atos por advogados, partes, magistrados, servidores e membros das funções essenciais à Justiça[4]. E uma das formas para que a justiça, de fato, não pare é a informatização completa dos atos processuais, algo simples e já existente, que não envolve ciência de foguetes para sua implementação.

Se olharmos de perto, a maior parte da tecnologia até aqui incorporada pelos tribunais brasileiros permite apenas que se façam digitalmente as mesmas tarefas que já eram feitas fisicamente. Há pouca automação, e quase nenhuma reinvenção[5]. Tradicionalmente, a Justiça é vista pela ficção e pela mídia como antiquada[6], o que é reforçado e confirmado quando se visita um órgão do Poder Judiciário. Pilhas de folhas, trabalhos repetitivos e audiências presenciais mostram que o sistema pouco mudou desde o Século XIX.  Os atos processuais são rigorosamente os mesmos, ressalvado o fato de que, praticados eletronicamente, eles aumentam em quantidade considerável. Embora a Lei nº 11.419/06 (Lei do Processo Eletrônico) já tenha completado mais de dez anos, pouca coisa mudou em termos de celeridade processual.[7]

Não se nega que os atos de comunicação, sobretudo as intimações, já ocorrem de modo eletrônico, seja por portais ou pelo Diário de Justiça Eletrônico, sendo recebidos em qualquer ponto geográfico, mesmo no exterior, bastando o acesso à internet.[8] Contudo, o processo judicial eletrônico nada mais é do que um processo físico digitalizado, e não um processo virtual. A tecnologia acelerou a prática de determinados atos mecânicos – é verdade -, mas os atos processuais encalham na medida em que são despejados mais e mais processos nos sistemas de distribuição de processo eletrônico[9], sobretudo pela necessidade de uso do sistema de correios para os atos de comunicação e uma sala presencial para as audiências.

De forma a tentar modificar esse cenário, o art. 193 do CPC/15 deixa preclara a possibilidade da realização dos atos processuais de forma digital, estimulando a substituição do papel por bits. Os atos, portanto, podem ser produzidos, comunicados, armazenados e validados por meio eletrônico.[10] Nos atos de comunicação processual, por exemplo, nos parece que a regra adotada pelo CPC/15 é a sua realização por meio eletrônico (CPC, artigos 246, V, e 270, parágrafo único; Lei de Processo Eletrônico, artigos 5º e 6º). Contudo, a lei exige que as partes, sejam elas pessoas jurídicas de direito privado ou público, realizem cadastro nos Tribunais. Sem isso, é materialmente impossível a sua concretização providência, que, certamente, aceleraria bastante a comunicação processual[11], sobretudo durante o período de restrição de circulação ocasionado pela pandemia que, consequentemente, reduz e prejudica o envio de mandados físicos pelo correio.

Mas as possibilidades de virtualização não param por aí. Já em agosto de 2017, durante a Jornada de Direito Processual Civil do Conselho da Justiça Federal, foi aprovado o Enunciado nº 25[12], prevendo que as audiências de conciliação ou mediação possam ser realizadas por videoconferência, áudio, sistemas de troca de mensagens, conversa online, escrita, eletrônica, telefônica e telemática ou outros mecanismos que servirem ao propósito da autocomposição.[13]

No contexto da pandemia do COVID-19, a virtualização do Poder Judiciário foi compulsoriamente impulsionada. Desde o dia 2 de abril, o CNJ, em parceria com a Cisco, disponibilizou uma plataforma para a realização emergencial de atos processuais por meio de videoconferência[14]. Após, a Resolução CNJ n° 314, de 20 de abril de 2020, estabeleceu que os processos judiciais e administrativos eletrônicos terão os prazos processuais retomados a partir do dia 4 de maio.  Além disso, o texto prevê a suspensão dos prazos dos processos físicos até o dia 15 de maio. Já, em relação às sessões de julgamento virtuais, nos Tribunais e Turmas Recursais do Sistema de Juizado Especiais, elas poderão ser realizadas nos processos físicos e eletrônicos, assegurada a possibilidade de sustentação oral.

No que tange à suspensão dos prazos para a apresentação de manifestações que dependam de provas, as partes deverão informar ao juízo competente a impossibilidade da prática do ato. Mais uma medida do CNJ para, ao mesmo tempo, uniformizar o funcionamento dos serviços judiciários, com o objetivo de prevenir o contágio pela Covid-19, e garantir o acesso à justiça neste período emergencial.

No mesmo sentido, no final de abril, foi publicada a Lei nº 13.994/20, com projeto de origem realizado pelo falecido Deputado Federal Luiz Flávio Gomes, que alterou a Lei nº 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais) para possibilitar a realização de audiências de conciliação virtuais. Como inserido na referida lei, a possibilidade deve ser aplicada também para os Juizados Especiais Federais e para os Juizados Especiais da Fazenda Pública.[15]

Os benefícios, além da urgência máxima de proteção à saúde, consistem na viabilização da conclusão de disputas em um momento de paralisação no mundo físico, encurtamento de distâncias, redução dos custos e aumento da celeridade dos desfechos almejados pelas partes ou a elas impostos.[16]

Embora a ideia de um local apto a fazer justiça remonte ao berço da civilização na Mesopotâmia[17], passando pelo Fórum romano e a sua subsequente fusão com as formas de resolução de conflitos das tribos germânicas[18], a estrutura primitiva de órgão jurisdicional foi concebida na Idade das Trevas e atualizada no Século XIX.[19] À luz dessa digressão histórica, é interessante realizarmos um experimento mental, no qual transportamos no tempo um juiz oitocentista para os tribunais da virada do Século XX[20]. Certamente, ele ficaria impressionado com a quantidade de casos, mas não entraria em choque mental se comparado a um viajante do tempo que fosse médico, executivo de negócios ou engenheiro, por exemplo.

Inovação sempre vem acompanhada de atrito. Quando ela se choca com uma profissão como a jurídica que vive em um anacronismo artesanal, quase bíblico, é ainda pior.[21] Na verdade, qualquer mudança no status quo gera fricção. Com dois meses de disseminação exponencial da Covid-19 ainda é difícil conscientizar as pessoas de ficar em casa, quiçá imbuir novas práticas a uma instituição milenar, formalista, solene e tradicionalíssima como o Poder Judiciário. Da mesma forma que se protestou contra o processo eletrônico, plataformas de inteligência artificial, as audiências virtuais já são – e serão ainda mais – alvo de críticas e sabotagem por parte de alguns dinossauros.[22] Mas não podemos jamais privilegiar justiça formal e produzir injustiça material.[23]

Hoje, ir até o Tribunal com o clique no mouse ou na touchscreen do celular, apresentar manifestações eletronicamente, sem ter que perder tempo de deslocamento e espera em corredores lotados e abafados, está deixando de ser ficção científica para se tornar uma realidade.[24] Sistemas com pilares do mundo offline, dominado por papéis e reuniões presenciais, já estão fora de sintonia com o cotidiano dos cidadãos de uma sociedade digital.[25] Além de sustentabilidade, compatibilidade e conveniência, a justiça digital é uma questão de acessibilidade.

Isso tudo, sem dúvidas, desencoraja qualquer manifestação neoludista que peça retorno ao assustador status quo ante. Deveríamos, por exemplo, em nome de uma principiologia nebulosa insistir em manter a tradição das audiências presenciais?[26] A resposta nos parece um retumbante não.

A boa notícia é que a transformação digital, antes gradual e lenta, dispara em tiro, impulsionada pela pandemia, em um efeito de manada. Basta conferir o sítio eletrônico Remote Courts Worldwide[27], criado pela Society for Computers and Law (SCL), HM Courts & Tribunals Service (HMCTS) e a Tech Nation, a qual consolida mudanças no Poder Judiciário em quase quarenta países desde a disseminação do vírus e as medidas globais de distanciamento social.

A despeito dos nobres esforços pretéritos no sentido da digitalização da justiça, que maturavam silenciosamente, a Resolução CNJ nº 314/20 e a Lei n° 13.994/20 são marcos para a transformação digital do Poder Judiciário que passa gradativamente a adotar uma postura de “serviço” em vez de “lugar”; é exatamente o que o Professor Richard Susskind previu há décadas ao cunhar a expressão “justice as a service”. Nos próximos dias do isolamento social, portanto, fique atento à luz piscante do seu celular; afinal, pode ser uma intimação judicial[28] chegando por aplicativo de mensagens.

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[1] SUSSKIND, Richard. Online Courts and the Future of Justice. Oxford University Press: Londres, 2020, p. 27.

[2] WOLKART, Erik Navarro; BECKER, Daniel. Isaac Newton, eBay e canelas de gigantes: Covid-19 e o futuro da Justiça. JOTA. Disponível em: https://www.jota.info/coberturas-especiais/inova-e-acao/isaac-newton-ebay-e-canelas-de-gigantes-covid-19-e-o-futuro-da-justica-14042020 – Acesso em 15 de abr. 2020.

[3] SUSSKIND, Richard. Tomorrow’s Lawyers: an introduction to your future. Oxford University Press: Nova York, 2017, p. 99.

[4] RODRIGUES, Marco Antonio. Processos judiciais e coronavírus. JOTA. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/processos-judiciais-e-coronavirus-28032020 – Acesso em 15 de abr. 2020.

[5] SUSSKIND, Richard; SUSSKIND, Daniel. The Future of Professions: how technology will transform the work of human experts. Oxford: Oxford University, 2015, p. 44.

[6] SUSSKIND, Richard. Tomorrow’s Lawyers: an introduction to your future. Oxford University Press, 2017, p. 86.

[7] WOLKART, Erik Navarro; BECKER, Daniel. Da Discórdia analógica para a Concórdia digital In FEIGELSON, Bruno; BECKER, Daniel; RAVAGNANI, Giovani (org.). O advogado do amanhã: estudos em homenagem ao professor Richard Susskind. São Paulo: RT, 2019, p. 117-119.

[8] PEGORARO JR, Paulo Roberto. A ubiquidade do processo eletrônico e a superação da competência territorial relativa. Revista de Processo, vol. 263, janeiro de 2017.

[9] ATHENIENSE, Alexandre. O processo judicial eletrônico causa efeitos colaterais à saúde. Consultor Jurídico. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2014-nov-07/direito-papel-processo-judicial-eletronico-causa-efeitos-colaterais-saude – Acesso em: 23 de abr. 2020.

[10] CARVALHO FILHO, Antonio. Os atos processuais eletrônicos no CPC/2015. Revista de Processo, vol. 262, dezembro de 2016.

[11] GAJARDONI, Fernando da Fonseca. Citação e intimação por meio eletrônico no Novo CPC. JOTA. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/citacao-e-intimacao-por-meio-eletronico-no-novo-cpc-02012017 – 01 de maio 2020.

[12] “As audiências de conciliação ou mediação, inclusive dos juizados especiais, poderão ser realizadas por videoconferência, áudio, sistemas de troca de mensagens, conversa online, conversa escrita, eletrônica, telefônica e telemática ou outros mecanismos que estejam à disposição dos profissionais da autocomposição para estabelecer a comunicação entre as partes.”

[13] BECKER, Daniel; FERRARI, Isabela. A prática jurídica em tempos exponenciais. JOTA. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-pratica-juridica-em-tempos-exponenciais-04102017 – Acesso em 29 de abr. 2020.

[14] CNJ. Cresce número de usuários da Plataforma de Videoconferência do CNJ. Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/cresce-numero-de-usuarios-da-plataforma-de-videoconferencia-do-cnj/ – Acesso em 29 de abr. 2020.

[15] CAVALCANTE, Márcio Lopes. Lei 13.994/2020: altera a Lei dos Juizados Especiais para possibilitar a conciliação não presencial no âmbito dos Juizados Especiais Cíveis. Dizer o Direito. Disponível em: https://www.dizerodireito.com.br/2020/04/lei-139942020-altera-lei-dos-juizados.html – acesso em 3 de mai. 2020.

[16] ARBIX, Daniel; MAIA, Andrea. Resolução On-Line de Disputas In FEIGELSON, Bruno; BECKER, Daniel; RAVAGNANI, Giovani (org.). O advogado do amanhã: estudos em homenagem ao professor Richard Susskind. São Paulo: RT, 2019, p. 96-97.

[17] BAKER, Amanda M. A Higher Authority: Judicial Review of Religious Arbitration. Vermont Law Review, vol 157, 2012.

[18] FANTINATO, João Marcos de Castello Branco. A Antiguidade Tardia Ibérica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.

[19] SUSSKIND, Richard. Online Courts and the Future of Justice. Oxford: Oxford University Press, 2019, p. 29.

[20] KATSH, Ethan. Electronic Media and the Transformation of Law. Nova York: Oxford University Press, 1991.

[21] HAWADIER, Bernard. L’avocat face à l’intelligence artificielle. Paris: Librinova, 2018, p. 147.

[22] WOLKART, Erik Navarro; BECKER, Daniel. Entre gritos e sussurros. JOTA. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/entre-gritos-e-sussurros-28032018 – Acesso em 02 de mai. 2020.

[23] SUSSKIND, Richard. Online Courts and the Future of Justice. Oxford: Oxford University Press, 2019, p. 89.

[24] KATSH, Ethan; ARESTY, Jeff. A new face for small claims courts. The Boston Globe. Disponivel em: http://archive.boston.com/news/globe/editorial_opinion/oped/articles/2007/09/29/a_new_face_for_small_claims_courts/ – Acesso em 02 de mai. 2020.

[25] SUSSKIND, Richard. Online Courts and the Future of Justice. Oxford: Oxford University Press, 2019, p. 84.

[26] SUSSKIND, Richard. Online Courts and the Future of Justice. Oxford: Oxford University Press, 2019, p. 53-54.

[27] REMOTE COURTS. News. Remote Courts Worldwide. Disponível em:  https://remotecourts.org/ – Acesso em 02 de mai. 2020.

[28] STF, Medida Cautelar no Mandado de Segurança 37.097, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJE 29.04.20.

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