Contratação pública

Govtechs e a nova modalidade de licitação da Lei das Startups

Legislador acertou ao contemplar quem desenvolve tecnologia para apoiar a administração, mas melhorias são necessárias

licitação da lei das startups
Ponte Estaiada, em São Paulo / Crédito: Unsplash
brava

Entre as novidades do Marco Regulatório das Startups, está uma nova modalidade de licitação para a contratação de soluções tecnológicas. Ainda que, à primeira vista possa parecer uma medida para criar um reserva de mercado para as empresas inovadoras nascentes, a ideia do projeto não é exatamente essa. Trata-se de uma tentativa do legislador de pavimentar juridicamente a contratação das chamadas govtechs.

Entre as espécies mais interessantes de startups, as govtechs são empresas voltadas para oferecer soluções técnicas inovadoras especificamente para o poder público.[1] Apesar da importância crescente dessas empresas para a gestão governamental no Brasil, todas elas enfrentam uma dificuldade essencial para fornecer os seus serviços à administração: a forma de contratação. É que, como essas startups têm a oferecer exatamente uma inovação técnica, dificilmente o ente público interessado terá condições de identificar espontaneamente a existência de uma solução que lhe seja útil e, mesmo que identifique, possivelmente não terá parâmetros para, a priori, escolher os critérios de seleção mais adequados para constar de um edital.

I. Alternativas pré-existentes

A inexigibilidade de licitação não é a via ideal para resolver o problema do ponto de vista do interesse público, porque interdita a concorrência. Mesmo da perspectiva da govtech, não é uma opção muito segura. Por mais que a empresa se esforce para produzir uma solução que se possa dizer genuinamente inovadora, é sempre arriscado propagar a inviabilidade da competição e arrogar-se a condição de único fornecedor no mercado.

Uma alternativa digna de nota é a Lei n. 10.973/2004, conhecida como Lei de Inovação, que criou também uma nova hipótese de dispensa de licitação para contratar entidades ou empresas “voltadas para atividades de pesquisa e de reconhecida capacitação tecnológica no setor, visando à realização de atividades de pesquisa, desenvolvimento e inovação que envolvam risco tecnológico, para solução de problema técnico específico ou obtenção de produto, serviço ou processo inovador.” Infelizmente, porém, sua redação parece direcionar-se para a “criação intelectual”, como menciona o artigo 20, § 1º, o que sugere a ideia de encomenda tecnológica. A maioria das soluções inovadoras oferecidas pelas govtechs, porém, ainda que passível de adaptação, não é encomendada ou desenvolvida ad hoc.[2]

De qualquer forma, a Lei de Inovação deu um passo importante ao mudar o foco, pela primeira vez, para o problema técnico a ser resolvido e não tanto ao produto a ser contratado. O administrador público, afinal, pode conhecer a sua necessidade e precisar de uma empresa especializada justamente para apresentar as soluções à disposição para supri-la.

Nessa mesma trilha, a Lei n. 12.462/2011, que criou o Regime de Contratação Diferenciado, estabeleceu que a administração poderia licitar inovações técnicas sem elaborar previamente o projeto básico. De qualquer forma, as especificações básicas previstas no edital de contratação integrada são bastante exigentes para o tipo de serviço oferecido pela maior parte das govtechs.

As modalidades licitatórias mais corriqueiras, como o pregão, apresentam seus próprios problemas para as empresas do setor, que envolvem desde o estabelecimento de um preço de referência para uma solução inovadora, e, portanto, não tão encontradiça no mercado, até a complexidade da elaboração de um projeto executivo específico para solução a ser contratada.

II. A Licitação no Marco Legal das Startups

O propósito do projeto de lei, então, não é estabelecer nenhum tipo de fomento às startups por meio das compras públicas. A rigor, a modalidade licitatória criada na lei nem é restrita às empresas nascentes. Poderão ser contratadas, aliás, pessoas físicas e jurídicas, desde que tenham a oferecer soluções tecnológicas. Ou seja, desde grandes conglomerados até programadores individuais poderão ser abrangidos por essa nova modalidade – e não apenas as startups.

O edital de licitação poderá limitar-se a mencionar os problemas a serem resolvidos pela solução contratada, mas, ao contrário do que acontecia na Lei de Inovação, o projeto permite expressamente o oferecimento de soluções já desenvolvidas pelos licitantes – o resultado da licitação, aliás, considera o grau de desenvolvimento da solução e o amadurecimento do modelo de negócios de cada proponente -, o que está de acordo com a realidade do mercado de govtechs. A comissão de licitação deverá ser composta por ao menos três membros com conhecimento sobre o assunto, sendo um deles servidor do órgão licitante e outro professor de universidade pública na área da contratação – em uma elegante deferência do legislador às instituições públicas de ensino superior e à ciência em geral.

O resultado da licitação deverá levar em conta, prioritariamente, o potencial de resolução do problema para cada uma das propostas e, quando for o caso, a provável economia resultante para a administração. Outros critérios são, como já se disse, o desenvolvimento da solução e o amadurecimento do modelo de negócios, além da viabilidade econômica da proposta e da demonstração do custo-benefício. Só nesses dois últimos critérios será considerado o preço dos proponentes. Ao final, mais de uma proposta pode ser selecionada. Os critérios de remuneração podem ser negociados a posteriori.

O contrato, chamado de CPSI (“Contrato Público para Solução Inovadora”), terá vigência inicial de 12 meses e deverá conter metas, disciplinar os relatórios de execução, delinear a matriz de riscos entre contratante e contratada, distribuir a propriedade intelectual e versar sobre a participação das partes nos resultados da tecnologia eventualmente desenvolvida. O valor da contratação não poderá ultrapassar R$ 1.600.000,00. A remuneração, que será paga sempre após a execução, poderá ser fixa ou variável e, caso haja risco tecnológico, contemplará a contrapartida pelos trabalhos executados. No fim da vigência do contrato, será possível celebrar um novo, sem licitação, com vigência de 24 meses, prorrogáveis por igual período

III. Avanços e oportunidades perdidas

De que a solução concebida para a contratação dessas ferramentas inovadoras é um avanço, não restam muitas dúvidas. Com certeza as empresas e a administração pública serão beneficiadas pela existência de um procedimento licitatório pensado exatamente para o segmento das govtechs, que até então vinham sendo obrigadas a depender de formatos licitatórios pouco adequados para a seleção de soluções inovadoras para a gestão pública. Não há dúvida, então, de que o legislador acertou ao contemplar a situação específica de quem desenvolve tecnologia para apoiar a administração. Como nem tudo é perfeito, o projeto deixa a desejar em dois aspectos pontuais, mas importantes.

Em primeiro lugar, faltou disciplinar o modo como as soluções podem ser apresentadas para a Administração Pública. Ainda que a nova modalidade licitatória seja desenvolvida a partir da necessidade do órgão e não tanto da especificação técnica pronta da solução, o que é um avanço, fato é que muitas govtechs trabalham com soluções para problemas que muitos administradores nem sabem que existem. Para dar conta dessa realidade, a lei poderia ter assegurado expressamente a possibilidade de oferecimento de propostas não-solicitadas, sem prejuízo da licitação posterior, a exemplo do que já acontece no âmbito das organizações da sociedade civil, que podem tomar a iniciativa de apresentar a chamada “manifestação de interesse social”, nos termos dos artigos 18 a 21 da Lei n. 13.019/2014.

Finalmente, não se pode deixar de registrar a falta de harmonia com o novo Marco Legal de Licitações, em vias de ser sancionado pela presidência da República. Esse outro projeto disciplina de forma mais abrangente os procedimentos licitatórios no país, consolidando normas que constavam de dispositivos esparsos. Obviamente, a nova modalidade licitatória do Marco Legal das Startups poderia estar no mesmo texto, em que está prevista uma figura correlata: o “diálogo competitivo”, também voltado para a contratação de soluções para as necessidades da Administração. A diferença fundamental é que o diálogo competitivo está condicionado à “impossibilidade de o  órgão  ou entidade ter sua necessidade satisfeita sem a adaptação de soluções disponíveis no mercado”, o que pode afastar as govtechs que apresentem inovações já desenvolvidas. De qualquer forma, a estrutura do diálogo competitivo poderia suprir lacunas da licitação para o CPSI, como uma fase aberta de discussão com os interessados e a opinião prévia dos órgãos de controle. Não se pode fugir, enfim, à impressão de que ambas as figuras poderiam ter sido concebidas de forma mais simbiótica, com regras mais gerais e margens para adaptação conforme o objeto ou da necessidade a serem licitados em cada caso.

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[1] Diferentemente do termo startup, definido no próprio projeto do Marco Regulatório das Startups, o termo govtech não tem ainda amparo legal. A BrazilLab, empresa que certifica govtechs, define-as como as startups “capacitadas e aptas a trabalharem e venderem para diferentes órgãos do governo”.

[2] Assim, aliás, é com a maioria das startups conhecidas, cujo faturamento se dá, sobretudo, no varejo, sem que, com isso, fique descaracterizado o seu caráter inovador.