

O uso do poder de compra estatal serve para atender a certos tipos de demandas públicas. Os exemplos são inúmeros: desde a aquisição de mobiliário para um determinado órgão público federal, a contratação de serviços de assistência e manutenção a equipamentos hospitalares em um centro médico estadual, bem como a realização de obras de infraestrutura em uma determinada região.
As compras públicas são difundidas em diferentes esferas da administração pública de muitos países, tendo sido ainda historicamente instrumentalizadas para o desenvolvimento de grandes projetos em ciência e tecnologia (C&T), como a tecnologia denominada Global Position System (GPS) e a própria Internet, desenvolvidas para fins militares nos Estados Unidos e posteriormente disseminadas.
As compras públicas de conteúdo tecnológico, no entanto, não servem apenas a grandes projetos de C&T em setores específicos, como a defesa. No final da década de 1990, o instrumento passou a ser estimulado na Europa como parte dos esforços de política pública voltados à inovação em geral. Disso originou-se a abordagem teórica das políticas de inovação pela demanda, a partir da percepção de que as iniciativas até então se concentravam excessivamente nos mecanismos de oferta, como os investimentos a pesquisa e desenvolvimento (P&D).
Isso se deveu, em parte, ao uso bem-sucedido do poder de compra nos Estados Unidos no período pós-Segunda Guerra Mundial. Também no âmbito da União Europeia, as compras públicas para inovação foram difundidas, tendo as diretrizes para a concepção e a implementação desse mecanismo sido estabelecidas em 2014, por meio da Diretiva 24.
O principal propósito do instrumento é articular o poder de compra estatal com a aquisição de produtos (ou a contratação de serviços) e soluções inovadoras. Não se almeja, portanto, produtos ou serviços comuns, disponíveis no mercado (“de prateleira”, conforme o jargão). Diante do resultado incerto – como na essência é o processo inovativo – o gestor público dispõe de pouca informação para especificar, de antemão, o produto, serviço ou solução no edital ou o instrumento convocatório adequado.
Há, portanto, necessidade de interação estreita entre esse gestor público e os potenciais contratados no sentido de definir escopo e eventuais etapas de P&D. Depois de feita a contratação, tal interação se aprofunda ainda mais. Por isso, a compra pública para inovação assemelha-se mais a uma forma de cooperação do que um processo convencional de contratação público-privada.
Além de atender à demanda – por exemplo, o desenvolvimento de tecnologia para diminuir tempo de recarga de motores elétricos usados em veículos de transporte público – a compra pública para inovação pode, ademais, resultar em externalidades positivas, como a redução da emissão de gases poluentes pela frota de veículos de transporte público. Trata-se de uma perspectiva nova para o uso do poder de compra, ela própria em boa medida inovadora em termos de gestão e política públicas.
No arcabouço jurídico brasileiro há previsão de compra de conteúdo tecnológico desde a Lei 10.973/2004, conhecida como Lei de Inovação. O mecanismo no Brasil passou a ser conhecido por encomenda tecnológica, dada sua inspiração na compra pré-comercial (pre-commercial procurement) estabelecida na Europa.
A implementação da encomenda tecnológica, no entanto, permaneceu praticamente inerte desde a edição da Lei de Inovação e poucas contratações foram realizadas por seu intermédio. Para viabilizar o instrumento, é evidente que os critérios de menor preço ou combinação de melhor preço e técnica disponíveis na Lei Geral de Licitações, Lei 8.666/1993, não são suficientes. No Brasil, a encomenda tecnológica realiza-se por contratação direta, dispensável de licitação. Acrescente-se o elemento do risco tecnológico, que é um dos principais requisitos legais para que se optar pelas compras públicas para inovação. [1]
Recentemente, a contratação pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) da empresa Microsoft, por encomenda tecnológica, motivou grande discussão e debates jurídicos.
O contrato foi suspenso por decisão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que recomendou que se faça um estudo técnico sobre a contratação de produtos e serviços de tecnologia da informação (TI) para processamento de dados do TJSP. Das informações a que tivemos acesso sobre o caso, entendemos que o TJSP, por meio de assessoria técnica, diagnosticou a obsolescência de seu sistema de processamento e procurou opções no mercado para atender suas demandas.
A empresa Microsoft atendeu ao solicitado e sua contratação foi justificada por dispensa de licitação. O TJSP motivou a existência de risco tecnológico afirmando haver incerteza quanto ao produto a ser desenvolvido, bem como quanto à possibilidade de incorporação adequada de novas tecnologias.
As contratações por dispensa e inexigibilidade de licitação, embora possam à primeira vista provocar estranhamento por deixarem de lado a forma e o rigor da licitação, são bastante utilizadas na administração pública brasileira. Segundo dados do Painel de Compras, que reúne dados da administração pública federal dos órgãos que compõem o Sistema Integrado de Serviços Gerais (SISG), os processos de compra por dispensa somaram, em 2018, aproximadamente, 60% do total, conforme detalhado no gráfico. Vale destacar que em relação ao volume de recursos, a mesma proporção não se verifica, dado que as contratações por intermédio das modalidades de licitação somam valores superiores.
Os números abaixo, vale dizer, coadunam-se com os argumentos de que a Lei Geral de Licitações deve ser modernizada e que novos arranjos contratuais público-privado devem ser viabilizados. [2]

Resumindo, as encomendas tecnológicas alinham-se ao desafio de modernizar as contratações público-privadas e de possibilitar que o uso do poder de compra promova o surgimento de novas tecnologias em produtos e serviços, propiciando um ambiente amigável à inovação.
O fato de o instrumento realizar-se por dispensa de licitação não significa que o procedimento de compra não siga os princípios da administração pública, em especial da isonomia entre os competidores e da transparência.
Isso não quer dizer, de outro lado, que a legislação brasileira não deva esmiuçar de forma mais objetiva e clara o que entende por risco tecnológico, já que se trata de um elemento decisivo para a escolha e motivação do emprego da encomenda tecnológica. [3]
Operacionalizar compra pública com risco e incerteza tecnológica não se resume a cotar o menor preço e ou selecionar a melhor qualificação técnica para atender uma demanda.
O uso do instrumento pressupõe robusto conhecimento do gestor público sobre a dinâmica e sobre os avanços tecnológicos no setor-alvo (além do estado da arte, o gestor também deve conhecer a prospecção de novas tecnologias), bem como uma interação entre o gestor público e os potenciais contratados (mecanismo conhecido por negociação ou diálogo competitivo, introduzido no Decreto 9.283/2018 e difundido nas contratações público-privadas nos Estados Unidos e na União Europeia). Além disso, elementos como a forma de remuneração e o regime de apropriação da propriedade intelectual resultante são cruciais para viabilizar a contratação de conteúdo tecnológico.
A possibilidade de fornecimento e eventual escalonamento do resultado da encomenda, de acordo com o previsto na legislação, é também um incremento para o instrumento. Por isso, o mencionado Decreto inovou no campo das encomendas tecnológicas, de tal modo que colocar em prática tal instrumento deve contribuir com o aprendizado tão caro ao sistema de contratações públicas no Brasil.
Além disso, chamamos a atenção para o fato de que a administração pública deve justificar como espera economizar com a compra. Para além de benefícios diretos, outros ganhos devem entrar na tomada de decisão do gestor público, como efeitos que transbordam o escopo contratado e têm repercussão em campos estratégicos para o Estado, como avanço tecnológico em determinado setor, na proteção do meio ambiente e garantia ao exercício de direitos sociais, como a saúde e a educação. Esses elementos devem ser conhecidos por auditores e demais responsáveis por fiscalização nos órgãos de controle. [4]
O uso do instrumento pressupõe, em resumo, uma mudança de paradigma no direito administrativo, que o sintonize com as racionalidades das políticas de inovação. O instrumento deve ser ajustado para dar sentido a essas racionalidades da política. Todos os atores envolvidos nesse processo, que são os gestores públicos, as empresas e ou instituições científicas e tecnológicas e os membros dos órgãos de controle, devem ser capacitados para participar deste processo.
Por isso, o caso do TJSP será um importante precedente: se a contratação prosperar, a encomenda tecnológica poderá ganhar contornos mais nítidos e também mais transparência. Isso só ocorrerá, porém, se houver alguma convergência de interpretações e propósitos quanto à política de ciência, tecnologia e inovação e, em particular, quanto à encomenda tecnológica e seu requisito formal de existência de risco tecnológico. Se não prosperar, a depender do modo como isso ocorrer, poderemos estar fadados a abandonar a compra pública para inovação, uma valiosa ferramenta utilizada em todo o planeta, ou torná-la tragicamente natimorta.
——————————————-
[1] Em 2018 foi publicado o Decreto 9.283 que regulamenta um conjunto de leis relativas a CT&I. O instrumento das encomendas tecnológicas foi detalhado e novas possibilidades foram abertas para sua implementação e uso. As atividades de P&D para solução técnica ou para obtenção de produto, serviço ou processo inovadores devem necessariamente envolver risco tecnológico para que sejam contratadas por encomenda tecnológica. De acordo com o Decreto, risco tecnológico é definido pela “possibilidade de insucesso no desenvolvimento de solução, decorrente de processo em que o resultado é incerto em função do conhecimento técnico-científico insuficiente à época em que se decide pela realização da ação”. No estado de São Paulo, em 2017 foi publicado o Decreto 62.817 que regulamenta a Lei Complementar 1.049/2008, conhecida por lei paulista de inovação. O Decreto paulista dispõe sobre contratações público-privada nos moldes da encomenda tecnológica, mas não traz definição de risco tecnológico Ver, sobre a evolução normativa das encomendas no Brasil, Maia e Coutinho disponível em: https://www.jota.info/aprendizado-e-experimentacao-em-inovacao-o-caso-das-encomendas-tecnologicas. Sobre o Decreto Paulista de inovação, ver os Cadernos de Direito e Inovação do Observatório da Inovação e Competitividade (OIC/IEA) da USP, disponíveis em: http://oic.nap.usp.br/wp-content/uploads/2018/10/cadernos_direito_inova%C3%A7%C3%A3o_Volume-1.pdf.
[2] Ver, nesse sentido, a discussão acerca do Projeto de Lei 6.814 de 2017, que institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e revoga a Lei 8.666 de 1993. Disponível em: https://www.camara.leg.br/Proposicao2122766. Recentemente, Nota Técnica do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) analisou determinados aspectos do Projeto de Lei. Disponível em: http://nota-tecnica-2019-a-retomada-da-agenda-perdida-das-compras-publicas-notas-sobre-o-novo-projeto-de-lei-de-licitacoes.
[3] Rauen e Barbosa (2019), no Guia Geral de boas práticas sobre as encomendas tecnológicas (disponível em: http://encomendas-tecnologicas-no-brasil-guia-geral-de-boas-praticas, acesso 24.04.2019), mencionam o Nível de Maturidade Tecnológica (Technology Readiness Level, abreviado por TRL) como uma ferramenta útil de definição e gestão de risco tecnológico. O TRL foi desenvolvido na década de 1970 pela NASA, nos Estados Unidos e desde então vem sendo utilizado por diferentes segmentos de mercado, por exemplo a indústria farmacêutica e o setor de TI, além do setor de defesa, como ocorre no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Basicamente, o TRL introduz uma classificação de níveis de maturidade tecnológica, nos quais o gestor pode se apoiar para definir se uma determinada solução, produto, serviço ou processo demandado contém ou embute risco tecnológico para utilizar a encomenda tecnológica ou outra modalidade de licitação. Trata-se, assim, de um parâmetro para auxiliar a tomada de decisão do gestor público. Sua implementação requer adaptações para as particularidades de cada demanda em conformidade aos padrões tecnológicos existentes na região, no país e ou no mundo. Não há fórmula mágica para antever ou precisar resultados em atividades de P&D, que são permeadas por risco e incerteza, mas o TRL pode aferir alguma objetividade para a administração pública operacionalizar seu poder de compra em favor da CT&I.
[4] Sobre a relação entre a política de inovação e os mecanismos de implementação e controle das compras públicas para inovação, ver Foss, M. C. Compras públicas para inovação como instrumento de política orientada à demanda: experiências no Brasil, nos Estados Unidos e na União Europeia. Tese (doutorado). Orientadora: M.B.M.Bonacelli. Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Geociências. Campinas, SP : [s.n.], 2019, no prelo.