Conciliação

Pandemia e os CEJUSCS trabalhistas: o caos como agente positivo de mudanças

Momento desafiador que enfrentamos poderá servir como alavanca para o progresso da autocomposição

Cejusc
Conciliação no CEJUSC do TJDFT / Crédito: Gil Ferreira/Agência CNJ

No contexto e à luz da crise sanitária, econômica e social desencadeada pelo COVID 19, a qual nos tem incutido reflexões de índoles variadas, este ensaio tem por objetivo compartilhar algumas considerações sentidas como úteis ao progresso da política judiciária de tratamento adequado dos conflitos instituída no segmento laboral pela Resolução nº 174/16 do CSJT. São considerações maturadas na experiência como Coordenadora de um dos CEJUSCS da Justiça do Trabalho e que se pautam em um dos preceitos básicos da moderna teoria do conflito: a visão das adversidades, embates, disputas, como propulsores de aperfeiçoamento. Se essas circunstâncias são por vezes inevitáveis e naturais à vida em sociedade, o foco deve se voltar à maneira de geri-las e ao aproveitamento máximo da aprendizagem por elas gerada.

O conflito, nessa perspectiva, contém um gene transformador e se situa na dinâmica normal e contínua dos relacionamentos humanos. O aprimoramento dessas relações, no entanto, dependerá, em boa parte, da forma de enfrentamento e gestão das controvérsias e desafios a elas inerentes.

À luz desse referencial teórico, a pergunta que moverá as linhas seguintes é: o que as atuais adversidades revelam sobre os Cejuscs trabalhistas e o que poderá ser aproveitado da atual e desafiadora experiência?

  1. Breve comparativo entre os formatos da Resolução nº 174 do CSJT e nº 125/2010 do CNJ:

A Resolução nº 174 do CSJT define conciliação como “o meio adequado de resolução de disputas em que as partes confiam a uma terceira pessoa – magistrado ou servidor público por aquele sempre supervisionado –, a função de aproximá-las, empoderá-las e orientá-las na construção de um acordo quando a lide já está instaurada, com a criação ou proposta de opções para composição do litígio;” (art. 1º, inc. I).

Deste dispositivo se extrai a primeira grande particularidade da regulamentação laboral,aplicável também à mediação: a exclusiva atuação dos seus servidores como conciliadores, além dos próprios magistrados que os supervisionam. Para não deixar dúvidas, o art. 6º, § 8º estabelece que “fica vedada a realização de conciliação ou mediação judicial, no âmbito da Justiça do Trabalho, por pessoas que não pertençam aos quadros da ativa ou inativos do respectivo Tribunal Regional do Trabalho”.

Note-se que de acordo com a Resolução nº 125/2010 do CNJ e o artigo 167 do CPC, os conciliadores, mediadores e as câmaras privadas de conciliação e mediação são terceiros, auxiliares da justiça habilitados para o funcionamento nos Tribunais da justiça comum. Apenas faculta-se aos Tribunais, nos termos do art. 167, § 6º, do CPC, que, excepcionalmente, e desde que inexistente quadro suficiente de conciliadores e mediadores judiciais atuando como auxiliares da justiça, optem por formar quadro de conciliadores e mediadores admitidos mediante concurso público de provas e títulos.

Outro ponto relevante é a delimitação da mediação e conciliação às lides já instauradas, ou seja, a restrição do atendimento dos CEJUSCs – JT aos conflitos processualizados, o que, de certo modo, vai de encontro à origem e finalidade desjudicializante dos métodos. Aqui, mais uma vez, o regulamento trabalhista se distanciou da Resolução nº 125/2010, a qual expressamente remete aos CEJUSCS a realização das sessões pré-processuais (art. 8º, § 1º).

Além dos aspectos destacados, no CEJUSC-JT não há custo na prestação do serviço para os usuários, em função da adoção da mão de obra interna. Enquanto que na Justiça comum o trabalho dos mediadores e conciliadores judiciais deve ser remunerado (Resolução nº 271/2018 do CNJ), reservado determinado número de atendimentos para beneficiários da gratuidade de justiça.

Por fim, nos CEJUSCs-JT, exige-se a supervisão física do magistrado e, até novembro de 2019, o ius postulandi, comum ao segmento, era excepcionado relativamente ao trabalhador, o que impedia que casos simples, objeto de atermação, fossem encaminhados ao CEJUSC. A restrição foi felizmente revista pela Resolução CSJT nº 252/ 2019 que deu nova redação ao parágrafo 1º, do artigo 6º da Resolução nº 174/2016.

Esse o panorama geral dos Cejuscs-JT até o reconhecimento do estado de calamidade pública em razão da pandemia do coronavírus. Todavia, as demandas e limitações expostas por essa excepcional circunstância trouxeram à tona diversas inquietudes e revelaram pontos para aprimoramento desses órgãos.

  1. Recomendação CSJT.GVP N° 01/2020.

“A verdadeira medida de um homem não se dá pelo seu comportamento em momentos de conforto e conveniência, mas como ele se mantém em tempos de controvérsia e desafio”, disse-nos Martin Luther King em um dos seus discursos. Algumas instituições, de tão vívidas, também possuem alma, comportamento e “medida”, como se humanas fossem. Assim é a Justiça do Trabalho, essa senhora amada por muitos, incompreendida por outros, e compreendida por outros tantos que, exatamente por isso, intencionam a sua desarticulação. O fato é que controvérsias e desafios acompanham a própria história da Justiça de Trabalho, mas a sua essencialidade para a harmonização dos interesses econômicos e sociais se evidencia a cada turbulência. E mais uma vez essa “profecia” se concretiza.

A emergência sanitária advinda do COVID 19 exigiu movimentos rápidos e adaptações diversas. As rotinas foram recriadas para a compatibilização da proteção à saúde com a continuidade do serviço e, em poucos dias, servidores e juízes de todo o país se reestruturaram para a realização do trabalho remoto. Não obstante todos os desafios (inclusive de ordem pessoal como: filhos em casa, cumulação de afazeres domésticos, providências práticas para viabilizar o trabalho à distância e a natural ansiedade com as implicações do momento), a alta produtividade, comum à JT, se manteve. A informação a respeito está sendo garantida pela disponibilização dos dados nas páginas iniciais dos portais dos Tribunais Regionais de todo o país, como recomendado pela Corregedoria-Geral da Justiça do Trabalho e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

No que diz respeito aos CEJUSCS-JT não foi diferente. O contexto crítico e de intensificação dos conflitos laborais (e demanda à JT) determinou a ação imediata da Vice-Presidência do TST (superiores mediatos dos órgãos) e do CSJT para ampliar o acesso à Justiça e oferecer suporte para as atividades de mediação e conciliação nos conflitos individuais e coletivos, tanto no âmbito processual quanto pré-processual, esses últimos, excepcionalmente.

Foi editada a Recomendação CSJT.GVP n. 01/2020, a qual, entre outras ações, incentivou a utilização de plataformas de videoconferência e o fortalecimento da atuação dos Cejuscs-JT de primeiro e de segundo graus para preservar a saúde pública e os serviços e as atividades essenciais conforme a realidade concreta do segmento profissional e econômico de cada jurisdição. Ademais, recomenda a atuação com o apoio direto das entidades sindicais das categorias profissionais e econômicas envolvidas, dos advogados e membros do Ministério Público do Trabalho.

A Recomendação referida nos motiva à reflexão sobre dois pontos:

  1. primeiro, a investigação da compatibilidade da ODR (Online Dispute Resolution) no segmento laboral;
  2. segundo, a conveniência ou não da assistência dos CEJUSCS nos conflitos de interesses individuais em fase pré-processual.

É o que abordaremos.

  • Assistência autocompositiva on line

Quanto ao primeiro aspecto, não obstante tratar-se de Recomendação, em menos de uma semana boa parte dos órgãos já havia aderido às audiências on line. Aqui, vale o parêntese para louvar o imediato engajamento dos servidores para a efetivação da proposta, sem o que a “façanha” não teria sido possível.

Apesar desta possibilidade preexistir, conforme art. 334, §7º c/c 236, §6º do CPC, e da Justiça do Trabalho contar há certo tempo com um aplicativo detentor da funcionalidade de negociação on line, o JTE, foi a necessidade quem nos “empurrou” ao território da ODRS. (Online Dispute Resolution (ODRs), definida como:

“a utilização da tecnologia da informação e da comunicação no processo de solução de conflitos, seja na totalidade do procedimento ou somente em parte deste. Dentre os procedimentos que podem adotar o modelo da ODRs, estão a arbitragem, a mediação, a conciliação ou a negociação, que o fazem por intermédio de ferramentas automatizadas (total ou parcialmente). Essa solução representa uma forma de virtualização plena, em que um procedimento nasce e morre no ambiente virtual, sem necessidade de passar por etapas presenciais ou no espaço forense. (LIMA E FEITOSA, 2017, p.54)

Não ignoramos as iniciativas pontuais de uso da tecnologia como ferramenta para a solução de conflitos na JT. Porém, o movimento “em massa” presenciado não tem precedentes.

Quebradas as resistências iniciais (o natural espanto com o novo) e notadas as facilidades que a metodologia comporta, já começa a tomar corpo a expectativa pela sua continuidade, mesmo após a superação das restrições às reuniões físicas, ao menos para os casos de menor complexidade. Outra perspectiva é a maior capilarização do serviço, sem os custos de deslocamento das equipes do CEJUSC (atendimento itinerante), o que, em tempos de restrição orçamentária, é bastante pertinente.

É claro que o contexto excepcional que serve de berço a esse movimento de inserção da ODR na JT contribui para a receptividade percebida nos primeiros dias de utilização do formato. Também não se ignora que muitos ajustes se fariam necessários, inclusive a partir de pesquisas de opinião, para o desenho mais adequado a este universo. Mas, na linha da provocação introdutória, são concretos os indícios de proveito desta experimentação para o aprimoramento do serviço prestado pelo CEJUSC-JT à sociedade. A impossibilidade de audiências presenciais e a concomitante relevância da negociação neste momento histórico, para a sociedade em geral e para as relações de trabalho em particular, expandirá o contato da comunidade jurídica com a ODR e desmistificará o instrumento.

Daí a importância de, sem prejuízo dos esforços já mobilizados, cuidarmos cotidianamente da qualidade desse atendimento, o que implica em planejamento, execução e controle de inúmeras novas rotinas administrativas (pré e pós pauta) e logicamente, a promoção de sessões capazes de transmitir aos usuários a mesma percepção de organização, acolhimento, disponibilidade, fatores que concorrem para a confiança das partes e advogados nos CEJUSCs-JT. Neste ponto, destaca-se a especial atenção a ser despendida aos servidores dos órgãos, propiciando-lhes capacitação paulatina (previsão essencial no planejamento), feedback contínuos, escuta e amparo para o desempenho das suas atribuições neste novo formato.

Enfim, circunstâncias adversas impuseram que “construíssemos o avião em pleno voo”, mas essa dificuldade e seus consequentes esforços têm o condão de fortalecer a legitimidade social dos CEJUSCs-JT. Se nos mantivermos firmes no manche, a viagem, talvez, não tenha volta.

  • Pré-processual

Sobre esse segundo aspecto, o §7º, do artigo 7º da Resolução nº 174/16 prevê que apenas os conflitos coletivos podem ser submetidos à mediação pré-processual na Justiça do Trabalho.

Todavia, a excepcionalidade pandêmica motivou as lideranças das Cortes trabalhistas, representadas na Presidência do TST e Conselho Superior da Justiça do Trabalho, ao reconhecimento da utilidade da assistência qualificada da JT também na fase pré-processual de conflitos individuais, quando ainda não incrustados e como meio de preveni-los.

A sagacidade e sensibilidade das referidas lideranças estão retratadas nos “Considerandos” que precedem os dispositivos regulamentares do instrumento, e diante da previsibilidade da alta demanda que se já se direciona à Justiça do Trabalho como efeito da crise econômica e social que se intensifica e também pela insegurança jurídica gerada pelas múltiplas normas recém editadas (sucessão de MPs relacionadas ao trabalho), a Resolução dispôs que:

Art. 2º Recomenda-se, aos Coordenadores dos Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais de Solucão de Disputas – NUPEMEC-JT e dos Centros Judiciários de Métodos Consensuais de Solucão de Disputas – CEJUSC-JT de 1º e de 2º graus, que, conforme o caso e o âmbito de suas atribuições, respeitados o seu livre convencimento e a sua independência funcional, avaliem a conveniência e oportunidade de se disponibilizarem como mediadores e conciliadores:

I – para conflitos individuais no âmbito pré-processual que digam respeito a interesses do exercício de atividades laborativas e funcionamento das atividades empresariais no contexto da situação extraordinária da pandemia; (grifado).

Cuida-se de relevante ampliação material da competência dos CEJUSCs e NUPEMECS, ainda que transitória, pois tem a finalidade clara de enfrentamento dos impactos da pandemia. Ocorre que essa iniciativa reconhece a potencial daqueles órgãos de contribuírem para a prevenção de conflitos, uma frente estratégica no ideal de mudança da cultura de litigiosidade.

Como referido na introdução, há muito a Justiça do Trabalho tem investido na capacitação do seu corpo funcional para o trabalho de assistência autocompositiva. Tal qualificação é uma condição comum aos regulamentos regionais sobre designação para Coordenação e/ou Supervisão dos CEJUSCS. E mais, é comum entre os que se lançam a essa tarefa, a dedicação de um entusiasta, o compromisso com o aperfeiçoamento contínuo em prol dos “ideiais cejuscanos”.  O que se quer dizer em última palavra é: analisado o percurso, e onde e como os CEJUSCS se encontram, tudo indica ser tempo de novos passos.

Além disso, após a introdução da homologação de acordo extrajudicial na realidade processual trabalhista, urge que repensemos nossas restrições à autocomposição assistida pelo CEJUSC. Ora, a negociação “distante”, com mera possibilidade de “controle a posteriori”, não seria “o mais”? Ou seja, a negociação pré-processual, assistida pela própria JT e desenvolvida sob a sua batuta, não seria agora “o menos”?

Também quanto a esse aspecto, o momento desafiador que enfrentamos poderá servir como alavanca para o progresso. A experiência propiciada pela Resolução CSJT.GVP N° 01/2020 servirá como termômetro a medir a conveniência e oportunidade da abertura (definitiva) desta nova frente de pacificação social.

4.Referências.

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LIMA, Gabriela Vasconcelos; FEITOSA, Gustavo Raposo Pereira. Online dispute resolution (ODR): a solução de conflitos e as novas tecnologias. Revista do Direito, Santa Cruz do Sul, v. 3, n. 50, p. 53-70, jan. 2017. ISSN 1982- 9957.Disponível em: <https://online.unisc.br/seer/index.php/direito/article/view/8360>. Acesso em: 11 abril. 2020. P. 54

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