Parte I

Boas práticas na compra pública de medicamentos biológicos

O gestor público deve adotar boas práticas de especificação técnica em edital

medicamentos biológicos
Crédito: Unsplash

Os remédios surgiram a milhares de anos. Produzidos inicialmente a partir de fórmulas mágicas e medicinais, a base de ervas e plantas, em uma combinação de elementos religiosos, de bruxaria e de conhecimentos de medicina, os remédios são utilizados para tratamento terapêutico, contra doenças e alívio de sintomas. Mas os remédios não são medicamentos.

Medicamentos são substâncias estudadas, testadas e tecnicamente elaboradas ou obtidas com finalidade profilática, curativa, paliativa ou para fins de diagnóstico (Art. 4º, II Lei n.º 5.991/73) que, no início do século XIX, com recursos sofisticados de química orgânica, passaram a ser produzidos em larga escala resultando em um expressivo número de novos produtos. Desde então a evolução dos medicamentos é inegável.

Até que um medicamento possa ser dispensado e chegue ao paciente, um longo caminho de pesquisa e desenvolvimento é percorrido. Inicia-se com a identificação do alvo – a doença ou sintoma que se pretende atacar – e a descoberta dos compostos que atingirão o alvo. Os futuros potenciais medicamentos passam pelos testes pré-clínicos, em bactérias, células vivas ou cultura de tecidos e em animais. Em seguida, avançam para os testes clínicos, em seres humanos, com estudos conduzidos em pacientes ou em voluntários sadios.

Estes testes são divididos em 4 fases, cada uma com suas especificidades. Levam anos e muitas vezes décadas para serem concluídos. A fase 3 é o teste em populações maiores e por maiores períodos. É com a conclusão dessa fase que os dados dos resultados são enviados para aprovação e registro junto aos órgãos reguladores. Com o registro será permitida a comercialização.

É neste contexto de estudos, testes e de evolução cientifica que novos medicamentos são descobertos. Assim surgiram os medicamentos biológicos, um produto altamente complexo e que trouxe soluções inéditas para inúmeras patologias, revolucionando o tratamento da diabetes e de várias doenças oncológicas, reumatológicas, autoimunes, controlando enfermidades e garantindo a longevidade da população.

Esse cenário de avanço tecnológico, que melhorou a saúde das pessoas, trouxe desafios para um sistema público de saúde como o brasileiro – universal e igualitário – que atende centenas de milhões de pessoas. Um destes desafios está na modelagem da compra pública de medicamentos que, como regra geral, utiliza a identificação do princípio ativo de um produto para adquiri-lo (Art. 3º da Lei n.º 9.787/99), com o conceito de que produtos com o mesmo princípio ativo seriam idênticos. O que não necessariamente é verdade para o medicamento biológico.

Isso, porque, as cópias de medicamentos biológicos não são cópias idênticas ao produto copiado, apesar de possuírem o mesmo princípio ativo. As cópias dos medicamentos biológicos possuem uma semelhança (não identidade), com o produto copiado. Basta uma simples leitura e comparação de bula entre alguns biológicos – com idêntico princípio ativo – para notar as diferenças (muitas ou poucas), entre as indicações terapêuticas dos produtos. Isso ocorre em razão da complexidade do processo produtivo que é inerente ao medicamento biológico e por, geralmente, não haver entre estes produtos as chamadas bioequivalência (Art. 3º, XXIV da Lei 6.360/76) e biodisponibilidade (Art. 3º, XXV da Lei 6.360/76).

Dada toda a complexidade do medicamento biológico é fundamental, portanto, que os gestores públicos e o corpo técnico originador da compra conheçam as especificidades técnicas deste tipo de medicamento, ou seja, o objeto de suas compras. Isto para não adquirirem medicamentos de forma errática e incorrerem em custos ainda maiores para a administração pública e toda a sociedade.

Como forma de auxiliar o gestor público na melhor e mais vantajosa compra deste tipo de medicamento, uma boa prática pode ser utilizada. Essa boa prática consiste na adequada identificação da compra do medicamento em edital. Não apenas a indicação do princípio ativo do medicamento que já é uma obrigação legal nas compras do SUS (Art. 3º da Lei n.º 9.787/99), mas, também, a detalhada indicação terapêutica para o qual o medicamento biológico está sendo adquirido. Noutras palavras, para o que o medicamento será ministrado.

Ao indicar no edital da compra o princípio ativo do medicamento biológico, em conjunto com o detalhamento técnico-científico de tratamento e/ou prevenção do medicamento alvo da compra, a administração pública identificará de forma objetiva e acertada o produto que almeja adquirir. Descreverá adequadamente, em edital, todas as características técnicas do bem comum alvo da compra e, ao final, fará a compra mais vantajosa para a administração.

Uma forma simples de auxiliar o gestor público nesta correta identificação e descrição pode ser pelo próprio estudo comparativo das bulas dos medicamentos que contenham o princípio ativo objeto da compra. Ou seja, frente à finalidade que o órgão deseja para ministrar o medicamento, o gestor púbico poderá especificar no edital as indicações terapêuticas que se objetiva com a compra.

Agregando a essa boa prática o gestor público pode incluir em edital, também, um sumário dos protocolos clínicos e hospitalares para o medicamento alvo da compra, deixando claro para os licitantes qual será a finalidade de uso do medicamento. Isso, em razão da complexidade e das diferenças existentes entre os biológicos, que podem ser muitas ou poucas, conforme cada produto específico e individual.

Ao observar boas práticas de especificação técnica e detalhamento técnico-científico do objeto (medicamento biológico), em edital, o gestor público garantirá uma compra melhor ao país, com qualidade e vantajosidade para a administração pública. Ao mesmo tempo agirá com segurança à saúde dos pacientes que usarão o medicamento. Agindo dessa forma o gestor público atuará para criar um cenário mais apropriado nas compras públicas de produtos biológicos e até que se tenha uma adequada Política Nacional de Medicamentos Biológicos no Brasil.

Apesar das boas práticas aqui trazidas, os desafios da compra pública de medicamentos biológicos e suas consequências não acabam por aí. Isso, pois, a correta especificação técnica-científica do biológico em edital não soluciona a situação de pacientes cujo tratamento com determinado medicamento biológico já esteja em curso e cuja eventual troca entre medicamentos, de forma automática, poderá colocar em risco a saúde dos pacientes e aumentar os custos do sistema público de saúde pelos efeitos adversos da troca. Mas este é um tema a ser tratado em um próximo artigo.

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