Coronavírus

Audiências Públicas em tempos de isolamento social

É necessário esforço para assegurar continuidade da atuação estatal em patamar próximo ao de situações de normalidade

Audiências públicas
Audiência pública sobre possibilidade de candidaturas sem filiação partidária. Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF (10/12/2019)
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A crise sem precedentes desencadeada pela Covid-19, com sua consequência de distanciamento social em prol da preservação de vidas, colocou novos desafios à continuidade dos serviços públicos.

Tais desafios vem gerando demandas diárias aos órgãos de advocacia pública, para atender a problemas jurídicos em sua maioria sem precedentes. Neste contexto, as ferramentas digitais ganham destaque na concepção de soluções, uma vez que permitem a manutenção do exercício de determinadas atividades, mas sem proximidade física, em ambiente virtual.

No âmbito dos processos de concessão de serviços públicos ou de uso de bens públicos, as novas diretrizes de afastamento trazem possíveis impactos na continuidade do cronograma dos projetos que dependem da realização de audiências públicas, práticas fundamentais para a garantia dos princípios da publicidade e da participação direta, colocando em risco o longo e custoso trabalho da fase interna de projetos dessa magnitude.

As consultas, tipicamente associadas a contribuições na forma escrita, são exigidas como parte dos processos de concessão nas modalidades de parcerias público-privadas, com fundamento no inciso VI do artigo 10 da Lei n.º 11.079/2004. Nas concessões comuns, regidas pela Lei n.º 8.987/1995, as consultas são tidas como uma boa prática, uma vez que permitem aprofundar a sinergia entre o ente público responsável pelo projeto e os eventuais interessados, possibilitando ajustes e esclarecimentos, e contribuindo, portanto, para o sucesso da futura licitação.

De todo modo, as consultas públicas já vinham se aproveitando, há tempos, de ferramentas tecnológicas para viabilizar a sua execução em ambiente virtual, não necessitando de qualquer deslocamento ou presença física para que as minutas da licitação sejam disponibilizadas aos potenciais interessados e à sociedade, assim como para que sejam recebidas todas as contribuições para o aperfeiçoamento do material.

As audiências, por outro lado, sempre foram associadas à apresentação do projeto em um ambiente inevitavelmente físico, em razão da necessidade de oitiva dos interessados e de ampla participação, quer de forma oral, quer a partir de considerações escritas apresentadas ao longo da própria audiência, ou em determinado prazo após sua realização. Sua exigência pode decorrer de normas setoriais, tais como a legislação ambiental, de normas para licitações de “imenso” vulto, como é o caso do artigo 39 da Lei n.º 8.666/1993, das normas específicas que autorizam a concessão de uso de determinados bens públicos ou também de uma boa prática, com base na discricionariedade do ente público responsável pelo processo.

Se, por um lado, as consultas públicas são mais visivelmente compatíveis com os meios virtuais, e já normalmente realizadas dessa forma pelo poder público, mesmo em tempos de normalidade, por outro, também em relação às audiências públicas não existe um impedimento por definição à sua realização de forma virtual, desde que seja possível atender às suas finalidades.

O Estado de São Paulo, neste aspecto, foi pioneiro ao regulamentar, no âmbito da Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente, a partir de parecer elaborado pela Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, o procedimento da audiência pública virtual para os projetos de concessão de uso de bens públicos do Caminhos do Mar e do Zoológico e Jardim Botânico do Estado de São Paulo.

É certo que, do ponto de vista finalístico, ainda que não prevejam expressamente a possibilidade de realização de audiências públicas em ambiente virtual, as normas legais e administrativas vigentes sobre o assunto não têm como finalidade de interesse público que sejam realizadas audiências físicas, mas que sejam realizadas audiências públicas, que são eventos concebidos para garantir a concretização dos princípios da publicidade a respeito dos projetos da Administração Pública e da participação direta, mediante o emprego de mecanismos dialógicos, escritos ou orais, para a captação das percepções da sociedade a respeito do projeto apresentado.

Assim, muito embora inexista vedação legal à realização de audiências públicas em ambiente virtual, é imprescindível que se selecionem as ferramentas digitais que sejam capazes de garantir o atendimento dessas finalidades de publicidade e ampla participação. Nesse sentido, é importante utilizar ferramentas, inclusive múltiplas e de forma simultânea, se possível, para atender tanto aos participantes que queiram apenas acompanhar os debates na condição de espectadores – tais como as ferramentas de transmissão ao vivo –, como aos participantes que queiram se inscrever para participar ativamente dos debates, mediante contribuições escritas ou orais, observadas as regras do edital de convocação – tais como as ferramentas de videoconferência e a disponibilização de formulários digitais para a solicitação de esclarecimentos.

Na prática, se adequadamente eleitos e empregados na situação concreta, a combinação desses meios digitais é capaz de proporcionar até mesmo um aumento da eficácia da audiência, ao possibilitar a participação de pessoas em qualquer lugar do país, ou mesmo do exterior, e sem as restrições de lotação de espectadores inerentes aos espaços físicos.

Nesse contexto, desde que observada a adequada divulgação da audiência e de sua forma de realização virtual, indicando as ferramentas que serão utilizadas, uma pessoa interessada com um computador ou um celular na mão equipara-se a alguém que estivesse no local físico de realização da audiência, não havendo, em essência, qualquer diferença entre elas no acesso à informação e na possibilidade de participação, que são os bens juridicamente tutelados pela audiência pública.

Em meio aos desafios da pandemia, a solução virtual para audiências, assembleias e reuniões obrigatórias vem ganhando destaque. Dentre outros, é possível citar (i) o Projeto de Lei do Senado n.º 1.602/2020, que prevê a realização de audiências públicas virtuais nos processos de licenciamento, durante a pandemia da Covid-19, (ii) o Projeto de Lei do Senado n.º 1.179/2020, que prevê a possibilidade de realização de assembléias e reuniões de sociedades empresárias, associações e condomínios edilícios de forma virtual, também durante a pandemia da Covid-19, (iii) bem como a decisão proferida pela 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais do Foro Central da Comarca da Capital do Estado de São Paulo, nos autos do processo n.º 1057756-77.2019.8.26.0100, autorizando a continuidade da assembleia-geral de credores de forma virtual.

Por fim, é necessário destacar que o momento exige das instituições públicas todo o esforço para assegurar a continuidade da atuação estatal no patamar mais próximo possível ao de situações de normalidade, naquilo que compatível com as determinações das autoridades competentes no combate à pandemia, para garantir a continuidade dos serviços públicos e das atividades econômicas, o que certamente irá demandar a releitura dos meios de concretização de institutos jurídicos à luz das ferramentas digitais atualmente disponíveis para atender às suas finalidades. Os resultados podem inclusive revelar ganhos duradouros e inesperados, como no caso das audiências públicas virtuais: com maior participação e menores custos, talvez tenham vindo para ficar.