Licitação

A exorbitância contratual na Nova Lei de Licitações

Mudanças são tímidas, mas podem estimular ambiente de colaboração entre a Administração Pública e a iniciativa privada

nova lei de licitações
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O dia 1 de abril de 2021 inaugura uma nova fase no regime das licitações no Brasil, com a publicação da Lei nº 14.133/21. O novo diploma legislativo consolida, em texto único, previsões normativas contidas atualmente em legislações esparsas (a exemplo da Lei do Pregão e do Regime Diferenciado de Contratações Públicas), com a adição de inovações pontuais, como a inclusão de regras sobre o planejamento das contratações públicas e a incorporação ao país da modalidade licitatória do diálogo competitivo.

O legislador foi cauteloso e optou por um modelo de continuidade dos institutos existentes com soluções incrementais, evitando uma situação de total ruptura com um sistema já consolidado na cultura jurídica brasileira. Essa escolha, contudo, impediu que o Congresso Nacional pudesse promover debates mais profundos sobre a conveniência da manutenção de aspectos dogmáticos sensíveis sobre as contratações públicas. Nesse contexto, perdeu-se a oportunidade de repensar mudanças estruturais sobre as bases normativas da exorbitância contratual – verdadeiro arquétipo dos contratos administrativos –, de modo a aprimorar a interação entre a Administração Pública e a iniciativa privada.

Apesar disso, é possível destacar algumas mudanças positivas que permitem o reconhecimento progressivo da importância dos contratos administrativos como acordos de colaboração entre parceiros públicos e privados – e não instrumentos de mero exercício da autoridade, fruto de uma visão ultrapassada da supremacia do interesse público sobre o particular.

A Nova Lei de Licitações contribui para que as relações contratuais administrativas possam ser mais equilibradas. Como indicativo, o art. 102 estipula que os contratos administrativos poderão identificar os riscos contratuais e alocá-los entre contratante e contratado, mediante indicação daqueles a serem assumidos pelo setor público, pelo setor privado ou de forma compartilhada entre eles. O dispositivo indica, ainda, que os riscos serão distribuídos de acordo com as obrigações atribuídas a cada parte, a natureza do risco, o beneficiário das prestações e a capacidade de cada parte para melhor gerenciá-los.

Embora o dispositivo reflita prática já consolidada em tipos específicos de contratos – tais como concessões e parcerias público-privadas –, a nova sistemática reconhece a legitimidade da assunção efetiva de obrigações e riscos pela Administração Pública, seja ela integral ou compartilhada, podendo impulsionar desenhos contratuais mais paritários. Por se tratar de elemento que deve ser estudado ainda na fase preparatória da licitação (cf. art. 22), eventuais disparidades de poderes entre parceiros públicos e privados deverão ser objeto de justificação à luz dos parâmetros estipulados em lei, evitando que o desiquilíbrio da relação seja motivado com base na noção etérea sobre a desigualdade das partes como elemento intrínseco dos contratos administrativos.

A Nova Lei de Licitação também amplia o leque de possibilidades para adoção de soluções consensuais no bojo de contratos administrativos, o que poderá reduzir os espaços de adoção de condutas unilaterais pela Administração Pública (a despeito da manutenção de toda a sistemática sobre cláusulas exorbitantes, existente no Brasil desde o Decreto-Lei nº 2.300/1986). O reconhecimento legislativo quanto à adoção de meios alternativos de resolução de controvérsias – a conciliação, a mediação, os dispute boards e a arbitragem (cf. art. 150) – mitiga os riscos de que na prática a vontade administrativa acabe prevalecendo sobre os a dos particulares, possibilitando foros de maior diálogo e horizontalidade nos conflitos público-privados.

Por fim, a Nova Lei de Licitações possibilita a ampliação da estabilidade e de um ambiente de confiança nas relações contratuais do Estado. Exemplos dessa orientação são encontrados (i) na previsão de prazos específicos para que a Administração Pública responda a pleitos formulados pelo contratado (art. 122), evitando que a omissão administrativa prejudique a execução contratual; (ii) no reconhecimento de que os reequilíbrios contratuais devem ser concomitantes às alterações promovidas unilateralmente pelo Estado (art. 129)[1], diminuindo a instabilidade decorrente do exercício da prerrogativa pública; (iii) na obrigação de pagamento das parcelas incontroversas em caso de conflitos entre as partes sobre a execução do objeto (at. 142); e (iv) na possiblidade de criação de contas vinculadas para cada contrato administrativo (art. 141), com depósitos administrativos a serem realizados obrigatoriamente de forma prévia para expedição das ordens de serviços nas contratações de obras públicas (art. 114, §1º).

Outro ponto de destaque sobre a (in)segurança nas relações público-privadas é a diminuição para dois meses do prazo para que os parceiros privados possam opor a exceção do contrato não cumprido ou pleitear judicialmente a rescisão dos contratos em razão do inadimplemento da Administração Pública (art. 136, §2º, inciso IV e §3º, inciso II). Estudos demonstram que o atraso nos pagamentos é um dos motivos mais relevantes para que uma empresa decida por não participar de uma licitação – especialmente em contratações em que participam micro e pequenas empresas, que necessitam do adimplemento tempestivo dos negócios jurídicos para manter a liquidez de seus fluxos de caixa[2]. O dispositivo tende a reduzir, portanto, os riscos assumidos pelo contratado de ser levado à ruína pela necessidade de dar continuidade à execução do contrato administrativo em razão do inadimplemento público.

Como é possível notar, a Nova Lei de Licitações institui uma moldura normativa que possibilita a adoção de práticas administrativas mais condizentes com uma relação contratual equilibrada, consensual e estável. Práticas essas, contudo, que ainda dependem da boa vontade dos gestores públicos e dos órgãos de controle (sobretudo diante do risco de uma interpretação retrospectiva do novo regime à luz da Lei nº 8.666/1993, conforme destacado por Egon Bockmann Moreira em artigo no JOTA). Se grandes soluções estruturais não foram pensadas pelo legislador, que a nova legislação seja um marco para estimular uma efetiva mudança de cultura em prol de maior colaboração nas parcerias, em sentido amplo, entre Administração Pública e sociedade.

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[1] O art. 65, § 6o  previa que “em havendo alteração unilateral do contrato que aumente os encargos do contratado, a Administração deverá restabelecer, por aditamento, o equilíbrio econômico-financeiro inicial”, mas não indicava a necessidade de reequilíbrio concomitante. A ausência de estipulação expressa nesse sentido colocava os contratados da Administração Pública sujeito a interpretações administrativas em sentido diverso, aumentando os riscos assumidos nas contratações públicas.

[2] Em estudos realizados pela Comissão Europeia em 2010, cerca de 38% das empresas classificaram o atraso nos pagamentos como o motivo mais relevante para a escolha de não participar de uma licitação. Confira-se em EC (European Commission). 2010. “Evaluation of SMEs’ Access to Public Procurement Markets in the EU.” Report coordinated by DG Enterprise and Industry. Final Report submitted by GHK and Technopolis.