Inovação

A desafiadora arte de legislar para a inovação

É possível criar normas que estejam sempre à frente das revoluções tecnológicas?

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Crédito: Unsplash
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Legislar para a inovação é cool. No Executivo, Legislativo e mais diversos entes, a pauta do fomento à tecnologia se tornou altamente cobiçada pelos representantes das mais diversas bases políticas. A princípio, um bom sinal para os entusiastas da área: com a matéria posta na mesa, há espaço para debate e construção.

A motivação desta “corrida para a legislação da inovação” pode ter vários fundamentos. Nessa revolução política, pautada pela bandeira da renovação e quebra do status quo, ter uma pauta voltada à tecnologia pode ser uma forma de se afastar da imagem da política tradicional. Ter a inovação como mote é conceitualmente arrojado e vanguardista.

Outra razão, ainda de cunho político, tem nexo com a busca por novas bases eleitorais. Em um país altamente arraigado ao funcionalismo público e de representatividade legislativa formada majoritariamente por pautas tradicionais (vide a força da bancada conservadora nas mais diversas casas), pautas inovadoras ainda são bastante desassistidas de verdadeiros representantes. Uma bela oportunidade para os novos legisladores.

Noutro cenário, temos uma justificativa mais óbvia: legislar para a inovação envolve um maior espaço criativo do que atuar em campos tradicionais. O cenário é amplo, existem menos normas antecedentes e muito menos decisões judiciais sedimentadas sobre diversos assuntos. Para o legislador que de fato quer ser inovador, é um vasto campo a ser explorado.

Por fim, há ainda aqueles que acreditam de fato que a inovação, tecnologia, empreendedorismo e a nova economia são capazes de transformar realidades. São para esses, principalmente, que este artigo é dedicado.

Legislar de forma técnica e efetiva para favorecer a inovação requer a ciência e compreensão de algumas premissas. Estas são fundamentais para que a regulamentação não seja afetada por dois dos principais vícios nas criações normativas: preceitos sem qualquer reflexo prático e que têm um efeito empírico inverso para a qual foi instituída.

Uma das teorias elementares na formação jurídica é a Tridimensional do Direito, de Miguel Reale. Cunhada em 1968, o conceito estabelece que o direito é formado por três dimensões, resumidas em fato, valor e norma. Por fato, compreenda-se que toda construção jurídica é dotada dos aspectos sociais, históricos e culturais, ou seja, os acontecimentos que circundam o meio de sua criação. Em valor, existe uma análise axiológica de que o direito deve representar, como o próprio nome define, os valores de uma sociedade. Por fim, a norma nada mais é a representação ordenada das criações jurídicas.

Assim, esses três fatores são interligados entre si, tornando o direito uma construção com bases normativas, sociais e valorativas, quem caminham sempre unidas.

Entretanto, no ano da Primavera de Praga, ainda vivíamos em uma sociedade cujo progresso tecnológico não era presente como nos dias atuais. A revolução das telecomunicações, que afetou diretamente as relações jurídicas, só começou a surgir no Brasil de forma incisiva na década de 70. A transformação digital, por sua vez, só teve início na década de 2000. Quando falamos da aplicação prática de tecnologias de cunho exponencial (Internet móvel, inteligência artificial, big data), estamos falando do hoje. Esse conjunto revolucionou as relações jurídicas, cada vez mais céleres, mais mutáveis, menos palpáveis.

Nesse avanço, se vê que um quarto elemento ganhou uma extrema relevância: o tempo. Ele, o senhor de tudo, afeta diretamente regulamentações atuais. Não me surpreenderia se Reale tivesse convivido com a internet e criado a teoria quadrimensional do direito, concepção tratada por Patrícia Peck na atualidade.

Essa introdução serve para clarificar que o legislador da inovação tem que ter muita cautela com o fator tempo na criação de suas normas. Não temos o objetivo de trabalhar o direito intertemporal, mas evitar que as normas criadas sejam limitadoras às inovações futuras. Para tanto, certas cautelas merecem atenção constante.

Na primeira, há de se privilegiar que norma inovadora seja fundamentada em princípios. Esses, a despeito das regras, têm a natureza da maleabilidade e adaptabilidade, o que é essencial para pautas tão mutáveis como as tecnológicas. Esse é um dos motivos que fazem com que a Constituição Norte-americana, mesmo datada de 1787, tenha apenas 27 emendas. A brasileira, em sua juventude, já tem mais de 108. Um retalho normativo habitual nas normas com disposições detalhistas e extensas.

Regras demasiadamente fechadas têm, por sua natureza, uma limitação ao acompanhamento das evoluções naturais. Quando aplicáveis à tecnologia, se tornam quase impossíveis de evoluir de forma paralela: ou o legislador multiplica a sua velocidade para acompanhar as revoluções tecnológicas (o que é deveras duvidoso); ou a evolução será estagnada por normas que não refletem a realidade presente.

Outra reserva que merece atenção é que se é para regulamentar, que o próprio Legislativo o faça, após uma construção coletiva da norma, que se submeta a uma análise técnica e respeite os direitos de participação e anseios sociais. Essa segunda observação parece bem óbvia, mas não é. Usualmente, as regulamentações sobre novas tecnologias são – pelas leis que deveriam de fato discorrer sobre – deixadas à cargo de entidades secundárias, como agências e secretarias relacionadas ao assunto.

Estas, por terem uma menor visibilidade da opinião pública e maior pessoalidade nas relações com os players interessados, muitas vezes acabam cedendo a pressões e interesses escusos nas suas normatizações, inviabilizando a tecnicidade da norma a ser proferida. Distribuir competências com o fito de afirmar que o assunto foi regulamentado muitas vezes acaba mais prejudicando do que impulsionando a pauta. O caso Buser Vs. ARTESP é uma pintura recente desse cenário.

Ademais, as normas precisam de fato criar mecanismos que facilitem o desenvolvimento das atividades tecnológicas, sem necessidade do aval prévio do Estado. A Declaração de Direitos da Liberdade Econômica (Lei Federal n. 13.874/2019) foi um marco nesse sentido, quando, em prol dos princípios da liberdade no exercício das atividades econômicas, da boa-fé do particular perante os entes públicos e da intervenção subsidiária e excepcional do Estado sobre as atividades privadas (art. 2º, I, II e III), implementou a classificação das atividades, o instituto da self-declaration para as atividades de baixo risco; bem como trouxe a previsão normativa para o sandbox regulatório.

Essa regra tem um viés principal: para empreender com tecnologia, é preciso validar e aprender para depois regulamentar. Muitas vezes o legislador sequer compreende a evolução proporcionada por aquela inovação, e se atreve a regulamenta-la. Por isso, as normas não alcançam os objetivos teóricos almejados.

Não dá para a atividade inovadora ficar aguardando a boa vontade do poder público para o seu ingresso no mercado. É preciso que haja um estimulo para a inovação, de desenvolvimento da atividade comercial, antes do estado tentar estabelecer parâmetros e regras para a inovação. Esse, inclusive, é um dos princípios aplicado nos maiores centos de inovação do mundo, que criam espaços para estimular o desenvolvimento de atividades econômicas antes discutir os aspectos normativos da matéria.