Após uma espera de cinco anos e uma disputa envolvendo a cor de sua pele que chegou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), a goiana quilombola Rebeca Mello poderá assumir a posição no Itamaraty para a qual fora aprovada. Ela estava na fatia de 20% das vagas reservadas para pretos e pardos, mas acabou desclassificada por ter sido considerada “parda clara”.
Em 2017, Mello havia sido aprovada no concurso do Instituto Rio Branco, ligado ao Ministério das Relações Exteriores, para a carreira de diplomata. Passou também por uma comissão racial criada para evitar fraudes no sistema de cotas. Porém, acabou barrada após pedido da procuradora da República Anna Carolina Resende Maia Garcia, questionando a admissão. Para ela, Mello e outra candidata, Verônica Tavares, não eram suficientemente negras.
“Quando querem aumentar estatísticas sobre a população negra incluem os pardos, mas quando se trata de garantir direitos e criar benefício não se reconhece esse grupo”, afirma Mello, que se formou em economia já com o objetivo de seguir carreira na diplomacia. “Se começarem a nos cortar das cotas, nunca vamos atingir o objetivo de ter mais representatividade racial”, completa.
O caso nunca chegou a ser julgado pelo STJ – entrou na pauta da 1ª Seção no ano passado, mas foi retirado. Já publicada no Diário Oficial da União, a admissão aconteceu graças a um acordo firmado com o Ministério das Relações Exteriores e homologado pelo STJ, que permitiu a elas passar novamente pela comissão. Assim que for convocada para assumir, Mello pretende deixar a posição que ocupa na Polícia Federal atualmente.
No Brasil, a população negra inclui pessoas autodeclaradas como pardas e pretas, segundo nomenclatura do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Desde 2014, todos os concursos públicos federais devem ter a garantia de que, pelo menos, um quinto de suas vagas serão ocupadas por essa população – vale lembrar que essas cotas, introduzidas pela lei 12.990, foram consideradas constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
É comum que as instituições públicas que possuem cotas tenham algum esquema de verificação para dificultar que pessoas brancas ocupem injustamente as cadeiras de negras e negros, já que o objetivo das cotas é combater a subrepresentação dessa população nas instituições públicas, além de buscar corrigir desigualdades históricas.
Essa checagem deve contemplar características físicas dos candidatos, sem restrição à cor da pele, e também histórico de vida, entre outros elementos que colaborem para embasar a autodeclaração racial. A questão é que, às vezes, a subjetividade do modelo gera questionamentos quanto à possibilidade de que pessoas negras sejam reprovadas de forma equivocada.
Após a aprovação no Itamaraty, Mello foi admitida em concurso para o Ministério Público da União (MPU), em 2018. Porém, a banca entendeu que ela não poderia ser cotista, pois, ao considerá-la bonita e por não ter algumas características associadas a pessoas negras (como cabelo crespo ou pele preta retinta), não seria alvo de discriminações. Nesse caso, ela foi readmitida após decisão no Tribunal de Justiça do Distrito Federal, em 2020.
“Não faz qualquer sentido ouvir que sou parda, portanto negra, mas não sofro preconceito. Essas comissões foram criadas para coibir fraudes, e não para determinar quem merece mais ou quem é mais afetado pela discriminação”, diz Mello.
Antes de ser aprovada no Itamaraty, ela havia sido uma das bolsistas do programa do Instituto Rio Branco voltado a negras e negros sem condições socioeconômicas para arcar com a preparação. Na ocasião, foi aprovada por uma banca que avaliava critérios raciais, por isso ficou surpresa ao ver o resultado questionado.
Acredita que essas duas vitórias possam colaborar para o entendimento sobre a diversidade que existe também entre a população negra? Principalmente levando em conta a característica de miscigenação do Brasil.
No Brasil, quando querem aumentar estatísticas sobre a população negra incluem os pardos, mas quando se trata de garantir direitos e criar benefícios não se reconhece esse grupo. O que se diz é que pardos não sofrem preconceitos. A cota nos concursos é de 20%, mas população preta é de 9%. O movimento negro jamais teria conseguido uma vitória como essa se não considerasse também os pardos. Só assim passaram a enxergar os negros como mais de 50% da população. Se começarem a nos cortar das cotas, nunca vamos atingir o objetivo de ter mais representatividade racial.
Para você, essa interpretação de que não sofre discriminação está muito ligada a uma ideia restrita do racismo, visto apenas como fatos explícitos e ligados ao crime de injúria racial?
Hoje em dia é muito raro a pessoa ouvir explicitamente que não vai ser contratada por ser mulher, mas sofre mais com uma desigualdade que é estrutural, por exemplo. É evidente que pardos sofrem também discriminação explícita, mas é mais institucional. O Brasil está começando só agora a entender essas manifestações. Os pardos passam, muitas vezes, por um limbo. Os pretos retintos podem não nos considerar negros, e os brancos jamais vão nos considerar brancos. O movimento negro não pretende ser separatista, mas inclusivo.
Sabemos que, historicamente, existe uma forma de hierarquização racial no Brasil, em que pele clara e traços finos podem atenuar certos preconceitos. No entanto, quando se olha para indicadores sociais, pardos estão mais próximos de pretos do que de brancos…
Falta estudo para entender a questão racial no Brasil, que é muito complexa. Não faz qualquer sentido ouvir que sou parda, portanto negra, mas não sofro preconceito. Essas comissões foram criadas para coibir fraudes, e não para determinar quem merece mais ou quem é mais afetado pela discriminação.
A procuradora na época dizia que as cotas não eram para uma pessoa como eu, mas para reparar desigualdades históricas. As pessoas que entraram nos nossos lugares podem ser tão pardas quanto nós, e não se trata de quem sofreu mais, mas do todo. Hoje, acredito que, provavelmente, ela não teria tentado algo semelhante. Essa discussão ganhou mais espaço.
Vocês buscaram o acordo com o Ministério? Tinha esperança de que o caso ainda pudesse ser julgado?
Meu pai, que é consultor legislativo, teve uma reunião com o ministro das Relações Exteriores [Carlos França] sobre outros motivos e contou a história. Não era obrigação do Itamaraty fechar esse acordo, mas foi muito importante que tenha acontecido. O caso parecia estar abandonado no STJ. Os magistrados, depois de um tempo, parecem não lembrar que estão tratando de vidas, que não dá para esperar tanto.
Algo que pesa na sua história são as suas origens como quilombola da comunidade Kalunga, na região da Chapada dos Veadeiros. Isso também é colocado em dúvida, sobretudo pensando nos lugares que você atingiu?
As pessoas não entendem que enquanto quilombola eu possa morar em Brasília. Não ter nascido no quilombo não te faz menos quilombola. Eu sempre soube das minhas origens, mas obtive o reconhecimento formal de líderes da comunidade recentemente, que me dá direito a morar lá e ter um pedaço de terra.
A minha comunidade foi se isolar no período da exploração de ouro, mas até a década de 1980, quando foi estudada por antropólogos, as pessoas ainda tinham medo de ser escravizadas. Minha avó teve coragem de sair para ser doméstica em Cavalcante (GO) e morreu de doença de chagas.
Agora, a gente luta para a regularização de algumas terras que não estão demarcadas, e para que elas sejam nossas. O que faz o quilombo permanecer são as terras, que dão sobrevivência. Tem muita gente que confunde preservar cultura com ser miserável, não garantir condições dignas de vida. Precisamos que as pessoas conheçam a nossa história. Não é com a miséria ou isolamento que isso vai acontecer.