Devedores contumazes

Cassação de registro de empresas tabagistas inadimplentes volta à pauta do STF

Maioria já entendeu ser possível cassar o registro por dívida tributária contumaz. Resultado deve ser proclamado nesta quinta

Cigarro
Crédito: Agência Brasil

O Supremo Tribunal Federal (STF) volta a discutir, nesta quinta-feira (17/9), a possibilidade de cancelamento de registro de empresas tabagistas pelo não pagamento contumaz de tributos. Trata-se de um dos assuntos mais importantes dentre os pautados pelo novo presidente da Corte, Luiz Fux, até o fim do ano. 

Em setembro de 2018, o plenário do Supremo se debruçou sobre o tema. Oito ministros entenderam ser constitucional a cassação do registro, mas, na ocasião, eram três as linhas diferentes de fundamentação ou argumentação alinhadas a esta visão.

Diante da  complexidade da discussão num processo que tramita na Corte há 13 anos e já acumula oito volumes,  a ministra Cármen Lúcia, então presidente, adiou a proclamação do resultado. Agora, a expectativa é que o voto de Cármen Lúcia seja entendido como o médio e dê os contornos à proclamação.

A ação direta de inconstitucionalidade (ADI) 3952 chegou a voltar à pauta do plenário em 19 de outubro de 2019 e 12 de março de 2020, mas acabou não sendo apregoada. Diante dos seguidos adiamentos, a Corte passou a receber pedidos para que a proclamação fosse concluída logo.

A ação, proposta pelo Partido Trabalhista Cristão (PTC), contesta o “cancelamento sumário” pela Receita Federal do registro especial das empresas tabagistas quando houver inadimplência de tributos federais. O partido alegava que a restrição ao exercício de atividade econômica ou profissional lícita constituiria sanção política vedada pela Constituição, na medida em que não se admite a existência de “instrumentos oblíquos” para coagir ou induzir o contribuinte ao pagamento de tributos . 

Em síntese, alegava que o artigo 2º do Decreto-Lei nº 1.593/77, com a redação dada pela Lei 9.822/1999, violaria os princípios constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa, do contraditório, da presunção de inocência, da liberdade de iniciativa e da proporcionalidade. Segundo o partido, a sanção imposta às empresas de cigarro não atingiria o fim almejado, que é o pagamento de tributo ou de contribuição.

Edson Vismona, presidente-executivo do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO), que é amicus curiae na ação, defende que, na verdade, a cassação é medida adequada para aqueles que, segundo ele, estruturam um empreendimento com o fim de lesar o Fisco para lucrar. Na medida em que assim agem, não se deveria contar com uma possibilidade de recuperação do imposto devido. 

“Tem devedores contumazes com dívidas de milhões. A ação corrosiva do devedor contumaz fica muito clara. E não se pode mais protelar. E esse é o verbo preferido do devedor contumaz. ele existe para protelar, não ter decisão, cassação e ele continuar livre e solto, seguir sonegando. A cassação é importante porque impede a continuidade de um delito criminoso e que afeta toda a concorrência”, enfatiza Vismona. 

Devedor contumaz é a empresa que declara possuir uma dívida tributária, mas de forma reiterada e premeditada não age para quitá-la. Como o empresário não sonega, apenas não paga o imposto devido, em tese, não comete um crime. Mas, deixa a concorrência para trás, já que o não pagamento dos tributos impacta positivamente o preço dos produtos, que ficam artificialmente mais baratos.

O trabalho para recuperar os montantes devidos é, segundo Vismona, hercúleo. E, com o tempo, tende a ficar ainda mais dificultado. “É um processo contínuo para o Fisco. A cassação não impede que a ação se repita, porque esses grupos abrem novos CNPJs, têm uma estrutura em torno disso. Mas temos de cercá-los, diminuir o espaço que tem.”

A definição final da ADI 3.952 consolida um precedente importante e, na visão do ETCO, fortalece a atuação do Congresso para legislar sobre o combate aos devedores contumazes. Dois projetos de lei em tramitação no Congresso contêm critérios para detectar e punir empresas que se valem desta prática: o PLS 284/2017 e o PL 1646/2019. O primeiro, por exemplo, diferencia o devedor contumaz do eventual — justamente uma das preocupações de quem acompanha o debate. Mas, no Parlamento, a discussão está parada.

O advogado constitucionalista e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) Gustavo Binenbojm atua na causa pelo Sindicato da Indústria do Fumo no Estado do Rio Grande do Sul (Sindifumo-RS). De acordo com ele, “a cassação se dá diante da circunstância especial de que essa é uma indústria que a tributação é tão elevada que não basta o Fisco ter à sua disposição os instrumentos tradicionais para cobrança, penhora de bens”. 

Nesses casos, avalia Binenbojm, o que se tem é a constituição de empresas que vivem da sonegação fiscal e “por meio dela distorcem o mercado porque oferecem valores muito inferiores aos economicamente viáveis para uma competição justa”.

Desta forma, o dano comercial provocado pela ação é irreversível. Nesse contexto, o fato não se enquadraria na jurisprudência do Supremo de não permitir o que se chama de sanção política. Como regra, não se permite que haja efeitos extrafiscais para o não pagamento de tributo. Mas, neste caso, o entendimento é o de que o Estado não dispõe de outros meios para combater a prática.

“O Direito funciona a partir da realidade. Não é uma abstração filosófica. O argumento de que se fechar a empresa, aí mesmo é que não vai ter como pagar não se coloca com empresas que abrem e fecham e criam novos CNPJs para praticar o mesmo ilícito. A única forma de estancar a sangria e evitar novos danos é impedir a continuidade da ação”, disse.

Binenbojm lembra o caso em que o Supremo autorizou a prisão por dívida de ICMS declarado, mas não pago. “Agora não envolve privação à liberdade. Mas o direito de a pessoa praticar atividade econômica ou não. Se o STF validou a prisão, muito mais grave, por maior razão deve validar a cassação do registro de empresas com intenção inerentemente ilícita”, ressalta. 

No fim de 2019, o plenário do Supremo, por sete votos a três, definiu a tese de que o contribuinte que deixa de recolher o ICMS pratica crime desde que haja dolo e de forma contumaz. Na ocasião, a Corte julgou o RHC 163.334 impetrado pelos proprietários de lojas de roupas em Santa Catarina denunciados por não recolher ICMS entre 2008 e 2010. Venceu o voto do relator, ministro Luís Roberto Barroso, que incluiu o critério da contumácia para a construção da tese proposta — alterando a sugestão inicial, sem a expressão. 

As correntes de voto

O julgamento teve início em 2010 e foi suspenso após pedido de vista de Cármen Lúcia. Na ocasião, o relator, ministro Joaquim Barbosa, votou pelo provimento parcial da ADI, para conferir aos dispositivos normativos impugnados interpretação conforme a Constituição Federal, estabelecendo as seguintes condições para que a cassação do registro das empresas aconteça: a análise do montante dos débitos tributários não quitados; o atendimento do devido processo administrativo tributário na aferição da exigibilidade das obrigações tributárias e o exame do cumprimento do devido processo legal para aplicação da sanção.

Cármen Lúcia acompanhou Barbosa. Segundo a ministra, essa interpretação “equaliza os princípios da livre iniciativa econômica lícita, da livre concorrência, conciliando com a garantia do devido processo legal tributário e da inafastabilidade da jurisdição, com o dever do contribuinte de cumprir suas obrigações tributárias”. Acompanharam esse mesmo entendimento a ministra Rosa Weber e o ministro Celso de Mello.

O ministro Alexandre de Moraes defendeu que a empresa deve continuar funcionando até que o secretário da Receita Federal julgue o recurso por ela apresentado. Assim, ele votou no sentido de excluir a expressão “sem efeito suspensivo” do parágrafo 5º do artigo 2º da norma, mantendo o restante da lei. Segundo o ministro, a norma, com as alterações feitas pela nova legislação (Lei 12.715/2012), prevê as condicionantes propostas pelo relator da ação. Os ministros Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes acompanharam a corrente aberta por Moraes.

Uma terceira linha foi aberta por Fux. Ele afirmou que a opção do legislador deve ser obedecida e votou pela improcedência do pedido. “Se o legislador entendeu que a medida tem que ser severa, ele tem expertise melhor do que a nossa para saber se um efeito suspensivo não posterga uma atividade ilícita”. Além disso, para Fux, a medida do cancelamento do registro não impede de modo definitivo a atividade econômica da empresa, que poderá ser estabelecida desde que cumpridas as exigências legais. “A liberdade de iniciativa quando exercida de forma abusiva deixa de merecer a tutela do ordenamento jurídico”, concluiu.

Único a votar pela total procedência do pedido do PTC, e consequentemente contra a constitucionalidade da cassação dos registros das empresas, o ministro Marco Aurélio ressaltou que a norma impugnada compele a empresa devedora do tributo, não importando o valor devido, à satisfação do débito tributário. “O preceito não se refere a devedor eventual, reiterado ou devedor contumaz, não há distinção. Contenta-se o dispositivo atacado, para chegar-se a esse ato extremo da cassação do registro, com o inadimplemento puro e simples”, disse.

Os ministros Dias Toffoli e Luís Roberto Barroso se declararam impedidos e o ministro Luiz Edson Fachin não votou por ter assumido a cadeira de Barbosa.

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