Aviação

O problema do prazo prescricional aplicável às demandas do transporte aéreo internacional

É imprescindível que cessem as diferenciações quanto à natureza da indenização, feitas apenas para aplicar prazos distintos

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Crédito: Filipe Sousa/ Unsplash

A Convenção de Montreal, promulgada por meio do Decreto n° 5.910 de 27 de setembro de 2006, foi criada com o objetivo de garantir a harmonização das regras que regulam o transporte aéreo internacional.

Como consequência de inúmeras discussões que se alastraram em nossos tribunais acerca da vigência do referido tratado, principalmente em vista do disposto na legislação consumerista, o STF decidiu definitivamente a questão ao julgar conjuntamente o Recurso Extraordinário nº 636.331/RJ e o Agravo em Recurso Extraordinário nº 766.618/SP, ocasião em que fixou o Tema 210, que dispõe: “nos termos do art. 178 da Constituição da República, as normas e os tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor”.

O RE nº 636.331/RJ versava acerca da limitação de danos materiais em caso de extravio de bagagem ocorrido em transporte aéreo internacional, enquanto no ARE nº 766.618/SP discutia-se acerca do prazo prescricional aplicável aos danos morais decorrentes de atraso de voo internacional.

Não obstante as situações fáticas de cada um dos recursos julgados conjuntamente, a questão jurídica colocada em debate perante a Suprema Corte referiu-se à vigência do art. 178 da Constituição Federal, que dispõe que os tratados internacionais devem ser observados quanto à ordenação do transporte aéreo internacional.

A ratio decidendi que ensejou a fixação da tese pelo STF é, portanto, a aplicação da Convenção Internacional em sua integralidade, por força do art. 178 da CF/88, e não apenas a vigência de determinados artigos nela contidos. Com o advento da referida tese, imaginou-se que haveria um cenário de maior estabilidade das decisões judiciais, especialmente em razão da previsão expressa na norma processual civil quanto à aplicação de decisões de resolução de demandas repetitivas (art. 927, III, do CPC) por juízes e tribunais pátrios.

De acordo com o artigo 35 da Convenção de Montreal, o prazo para que o passageiro reclame de problemas oriundos do contrato de transporte aéreo internacional, seja por danos morais, seja por danos materiais, é de dois anos contados a partir da data de chegada da aeronave ao destino, ou do dia em que deveria haver chegado, ou da interrupção do transporte. Essa é a norma aplicável conforme especificamente decidiu o STF por ocasião do julgamento do Tema 210.

Especificamente quanto ao prazo prescricional, em seu artigo publicado na Revista do Advogado no ano de 2019, o Ministro Francisco Resek mencionou que “é improvável que os erros se repitam, depois que colegiados de variada natureza e hierarquia pacificaram o tema afirmando o primado da norma internacional¹”.

E era o que de fato estava ocorrendo. O Supremo Tribunal Federal vinha aplicando corretamente o prazo prescricional bienal previsto na Convenção de Montreal, tanto no que se refere a ações em que se pleiteava danos materiais, como danos morais, em observância ao precedente ARE nº 766.618/SP que ensejou o Tema 210².

Contudo, surpreendentemente, foram prolatadas decisões recentes por alguns Ministros do STF nas quais negou-se a aplicabilidade do prazo prescricional bienal previsto no Tratado, determinando a incidência do prazo quinquenal previsto no CDC quanto aos danos morais³. Conforme referidas decisões, o prazo prescricional bienal seria aplicável apenas com relação às pretensões de indenização por danos materiais, já que o RE 636.331/RJ versaria apenas sobre esta hipótese.

Com base nesse raciocínio, uma mesma ocorrência que enseja a pretensão de indenização por danos materiais e morais apresentaria prazos prescricionais distintos: para reclamar danos materiais, seriam 2 anos, enquanto para pleitear danos morais, 5 anos.

Tal distinção não se afigura possível.

Analisando exatamente essa situação, os professores Dra. Rosa Maria Nery e Dr. Nelson Nery Jr. esclarecem que, “ainda que existam decisões do STF que causam dúvidas no jurisdicionados, porque dadas num e noutro sentido, a solução que nos parece mais correta é a de que, em se tratando de demanda decorrente de transporte aéreo internacional, o prazo prescricional é bienal, nos termos do que prevê o artigo 35 da Convenção de Montreal, tanto no que se refere a danos materiais como também a danos morais⁴” .

Isso decorre da ratio decidendi do Tema 210. Se o precedente tem seu fundamento principal concentrado na supremacia do Tratado Internacional sobre a lei interna em ações decorrentes de transporte aéreo internacional, não há como interpretar que haveria diferenciação quanto ao prazo prescricional dos danos morais.

Além de a situação acima não se sustentar pela própria lógica do sistema jurídico brasileiro, também não pode prevalecer pelo fato de que a fixação do Tema 210 também englobou o julgamento do ARE nº 766.618/SP, o qual dispõe especificamente acerca do prazo prescricional de pretensão indenizatória de danos morais.

Exatamente nesse sentido, em voto proferido em 19/10/2021 nos autos de demanda na qual se discutia a prescrição de pretensão indenizatória por danos morais decorrente de contrato de transporte aéreo internacional de passageiro, o Ministro Dias Toffoli esclareceu brilhantemente que “a circunstância de a controvérsia debatida no presente feito envolver indenização por dano moral – e não material – em relação jurídica de transporte aéreo internacional de passageiro não constitui razão de distinguishing para fins de aplicação da tese fixada no Tema nº 210 de Repercussão Geral, uma vez que o próprio ARE nº 766.618/SP, Rel. Min. Roberto Barroso, que foi julgado conjuntamente com o RE nº 636.331/RJ, leading case do Tema nº 210, teve esse elemento como moldura fático jurídica subjacente ao debate. Naquela oportunidade, restou assentado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do ARE nº 766.618/SP, examinado conjuntamente com o RE nº 636.331/RJ, que, nos casos específicos de transporte aéreo internacional, de acordo com o art. 178 da Constituição Federal, prevalece o prazo prescricional previsto na Convenção de Varsóvia (…)”⁵.

Nesse contexto, é imprescindível que cessem injustificadas diferenciações quanto à natureza da indenização pleiteada, feitas tão somente para aplicar prazos prescricionais distintos às questões envolvendo transporte aéreo internacional. Sem contar a insegurança jurídica que esse comportamento ocasiona, por tumultuar a harmonia que vinha se alcançando na jurisprudência sobre o tema, além de violar o precedente resultante do Tema 210, o art. 35 da Convenção de Montreal e o artigo 178 da Constituição Federal.

Referência Bibliográfica

  1. RESEK, Francisco. O transporte aéreo internacional ante a Justiça do Brasil. Revista do Advogado, AASP, nº 142. Junho de 2019, Direito Aeronáutico, páginas 32-40.

  2. Rcl 38.349/RJ, Min. Gilmar Mendes; Rcl 42.140/RJ, Rel. Min. Alexandre de Morais; RE 1.233.688/RS, Min. Cármen Lúcia; ARE 1.202.866/SP, Min. Edson Fachin; ARE 1.158.691/PR, Min. Marco Aurélio; e RE 1213708/RJ, Min. Luiz Fux.

  3. RE 1.374.196/RS, Min. Luís Roberto Barroso; RE 1.388.527/RS, Min. Edson Fachin; RE 1.392.563/RS, Min. Alexandre de Moraes; RE 1.305.900/GO, Min. Nunes Marques; ARE 1.390.156/MG, Min. Rosa Weber.

  4. Recurso Extraordinário n° 1339774/SC.

  5. NERY JUNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria Barreto Borriello de Andrade. Parecer Jurídico encomendado pela International Air Transport Association (IATA). Elaborado em 14 de fevereiro de 2022. São Paulo. Disponível em: https://www.iata.org/contentassets/0b6d1c34ebb24fa390b6030be3327751/br-16-05-2022-versao-final-revisada-nnj-rmn.pdf

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