A aviação é fascinante. Seja para um conhecedor dos princípios da aerodinâmica, termodinâmica e mecânica dos fluidos, seja para um leigo que se regozija ao observar uma máquina de 500 toneladas viajando a 900Km/h, fato é que “andar de avião” impressiona até aqueles que fecham os olhos para todos esses fatores. Mesmo que veladamente, esses últimos sabem que somente por esse incrível meio de transporte é possível de se ir do ponto A ao ponto B em 40 minutos ao invés das longas cinco horas pela via terrestre
A aviação moderna é tão complexa que compreender todos os fatores que levam ao seu orquestrado e coordenado funcionamento pode ser mais complicado do que simplesmente aceitar que todas as suas engrenagens se conectam com perfeição. Há, todavia, um porém: a exploração midiática desse desconhecimento.
Abundam hoje na imprensa notícias aterradoras envolvendo episódios comuns do dia a dia da aviação. Uma arremetida por conta de uma mudança de pista – acontece quando o piloto desiste do pouso e volta a voar porque ele precisará usar outra pista do aeroporto — é veiculada como “passageiros vivem momentos de pânico durante pouso malsucedido”. Uma decolagem abortada pela presença de pássaros na pista – ocorre quando o piloto desacelera a aeronave durante a decolagem por ter avistado um pássaro na pista- também é reportada como “momentos de horror”. Essas notícias, além de transmitirem desinformação, acabam trazendo aos usuários do setor a incorreta impressão de que qualquer evento adverso ocorrido em sua viagem é inconcebível, perigoso e moralmente danoso. E isso é uma inverdade, afinal, qualquer alteração na programação de um voo ocorre com o fim único e exclusivo de garantir a segurança dos passageiros.
Inúmeros são os artigos que já exploraram o quão negativo para o setor aéreo é o excesso de judicialização no Brasil, contudo, a cada novo dia, observa-se um aumento de notícias da mídia especializada no que tange às condenações de companhias aéreas pelos mais banais eventos.
Ora, se por um lado a mídia especializada traz clareza para as situações quotidianas do setor, explicando dedicadamente as suas causas, por outro, ela demonstra que essas mesmas situações são passíveis de causar danos de ordem moral aos passageiros, incentivando-os a buscar reparações junto às companhias aéreas. É uma nítida ambiguidade.
Não se busca com essa constatação desencorajar os passageiros a buscarem os seus direitos quando esses de fato forem violados, contudo, o que se observa hoje, são passageiros previamente influenciados buscando algum tipo de indenização por eventos aleatórios.
Além disso, juízes, desembargadores, membros do ministério público, advogados, todos são suscetíveis a terem as suas opiniões formadas com base na leitura de informações transmitidas pela imprensa, tendo ela responsabilidade na formação de opiniões, em especial, na formação de opiniões que envolvem eventos que não costumam ser experimentados comumente pelas pessoas. Vejamos:
Se um magistrado nunca vivenciou uma situação de decolagem abortada, ele pode facilmente se convencer de que essa situação provoca consideráveis danos de ordem moral ao ler reportagens alarmistas sobre esse tipo de ocorrência. Fato esse que poderá influenciar no quantum indenizatório de eventual processo que seja posto para a sua apreciação.
Nesse mesmo sentido, um passageiro que tenha experimentado esse evento, sem que tenha guardado uma impressão negativa sobre essa experiência, poderá decidir entrar com uma ação judicial contra a companhia aérea ao tomar conhecimento de que outros passageiros foram indenizados por um evento semelhante. Com o país em crise, qualquer possibilidade de aumento patrimonial parece ser convidativo, em especial, se ele soar como socialmente aceitável.
E essa cadeia de desinformação/judicialização vale para as mais variadas situações no universo da aviação:
- Voos cancelados por conta de condições climáticas –nenhuma aeronave pode decolar de um aeroporto se as condições meteorológicas puderem pôr em risco a operação de voo;
- Aeronaves que pousam em aeroportos diversos daqueles planejados por conta de baixa visibilidade –excetos em alguns aeroportos, é necessário que o piloto tenha plena visão da pista para pousar ou decolar;
- Voos cancelados pelo fato da tripulação ter se contaminado com doenças pandêmicas –os tripulantes de aeronaves também adoecem e estão sujeitos a quarentenas;
- Aeronaves que precisam sofrer o descarregamento de carga ou passageiros por conta do aumento inesperado da temperatura local – o aumento da temperatura do ar diminui a concentração de oxigênio no ambiente pela expansão dos gases atmosféricos reduzindo a performance dos motores dos aviões;
- Voos atrasados pela necessidade de descarregamento de bagagem -caso o passageiro despache bagagem e não embarque na aeronave, por segurança da aviação civil, sua bagagem deve ser retirada do voo;
- Aeronaves que precisam pousar em aeroportos alternativos em razão de emergências médicas – é obrigação dos pilotos zelarem pela segurança de todos os passageiros mesmo que isso signifique alterar sua rota por causa de um único passageiro;
Inúmeras são as situações que podem fazer com que um voo seja operado diferentemente da forma com que fora originalmente planejado sem que as companhias aéreas sequer tenham ingerência sobre tais fatores, ficando elas ainda obrigadas a concederem inúmeras assistências aos seus passageiros para mitigar impactos que não deram causa. O importante é observarmos e sermos capazes de entender que para todos os exemplos tratados, há uma justificativa técnica e razoável.
Para os técnicos da aviação, tais justificativas já são conhecidas. Para os admiradores da aviação, cada uma delas soa como algo interessante e que desperta curiosidade. Para a maioria dos passageiros, tal conhecimento pode ser ter natureza meramente informativa. Contudo, importante notar que nenhuma companhia aérea tem interesse ou recebe vantagem ao cancelar ou atrasar um voo após ter realizado um esforço enorme e arcado com um considerável custo para movimentar todas as engrenagens que se conectam para viabilizar um voo (tripulação, manutenção, abastecimento, catering, utilização de slots, manuseio de bagagens e outros).
Desse modo, robusto é o universo de conteúdo que poderia ser adequadamente explorado e informado pela mídia, seja ela especializada ou não. Contudo, o que se nota hoje é a exploração da engrenagem da desinformação e da litigiosidade. Engrenagem essa que ao invés de compartilhar com a sociedade a perfeição dos bastidores da aviação, fomenta a burocracia, contribuiu para o aumento dos valores dos bilhetes aéreos e a baixa competitividade da aviação comercial no Brasil.
E não é só.
Apesar do acesso ao transporte aéreo ter sido amplamente democratizado na última década no Brasil, inúmeras são ainda são ainda as pessoas que têm receio em utilizá-lo. Mesmo sendo o segundo meio de transporte mais seguro do mundo e o segundo setor da economia mais regulado do mundo, perdendo somente para o elevador e para a exploração de energia nuclear respectivamente, o seu aproveitamento ainda conta com mãos suadas e janelas fechadas. E isso é natural.
Todavia, e considerando-se que o setor aéreo inegavelmente e imbativelmente contribui para inúmeros benefícios sociais – o mais recente transporte gratuito de vacinas contra o coronavírus é um claro exemplo desse benefício — cabe aos meios de comunicação não somente ponderar no teor midiático das informações que trazem sobre o setor, como também fazer valer a sua própria função social moderna, que é a de dar informação no contexto de uma sociedade que a cada dia se vê navegando por céus repletos de desinformação.
Em outras palavras, seguindo os meios de comunicação essa retórica de desinformação, o setor aéreo continuará sendo estigmatizado, vítima de um irracional preconceito e de pleitos indenizatórios que só contribuem para desfragmentação de sua competente cadeia produtiva. A conta pelo desalinho dessa engrenagem, ao final, é de todos nós; entendedores de aviação ou não.