Litígios no transporte aéreo

Startup que compra direitos judiciais de passageiros é condenada em ação da OAB

Juiz determinou que Liberfly deixe de fazer publicidade ou oferta de serviços condizentes com captação de clientela

Liberfly
Crédito: Brett Sayles/ Pexels

O volume de disputas na Justiça entre consumidores e empresas aéreas nos últimos anos pode estar relacionado ao aumento da atuação de lawtechs que antecipam valores a passageiros insatisfeitos e, em troca, ficam com parte de uma eventual indenização. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) tem combatido a conduta argumentando se tratar de exercício indevido da advocacia. Agora, a entidade obteve uma vitória na primeira instância contra uma dessas empresas.

Em ação civil pública movida pela seccional fluminense da OAB, a 28ª Vara Federal do Rio de Janeiro condenou, na última quinta-feira (27/5), a empresa dona da LiberFly. No website da startup, o consumidor pode apresentar um caso e a companhia avalia se irá levá-lo adiante mediante uma negociação com a aérea ou com um processo judicial. A OAB afirmava que os serviços de assessoria jurídica da empresa são “publicidade ilícita e mercantilização da advocacia”, práticas vedadas pela Lei 8.906/1994, que dispõe sobre a Ordem, e pelo Código de Ética da entidade.

Na decisão, o juiz federal Adriano Saldanha Gomes de Oliveira condenou a empresa a se “abster de praticar qualquer ato de anúncio, de publicidade ou de divulgação de oferta de serviços consistentes na angariação ou captação de clientela, por qualquer meio, físico ou digital”; além de arcar com honorários de advogados no valor de R$ 4 mil.

Assim, ficou confirmada liminar que, em março de 2019, havia estabelecido que eventual continuidade da conduta resultaria em multa diária de R$ 5 mil para o site. Na ocasião, o entendimento do juiz Rogério Tobias de Carvalho foi de que, embora exista a possibilidade de resolução extrajudicial de conflitos por meio de mediação, o princípio de imparcialidade da função não é cumprido nesse caso.

“O problema inicia quando se verifica que, na verdade, a LiberFly não exerce mera função mediadora de conflitos, e sim defende os interesses de uma das partes (o consumidor) contra a outra (companhias aéreas), em busca de uma ‘justa indenização'”, escreveu na decisão liminar. Além disso, quando a empresa diz que, após o consumidor aceitar proposta da linha aérea, fica com “30% do valor como taxa de serviço”, seria uma forma de cobrar honorários advocatícios.

Portanto, por se tratar de advocacia, ela deveria atender ao Estatuto da OAB e não fazer “captação de clientela”, conforme prevê o Código de Ética da Ordem. A startup tentou reverter a liminar, mas não teve pedido atendido. Agora, ela pode recorrer da sentença em segunda instância.

“Entendemos e reiteraremos em recurso à decisão que o serviço oferecido é de mediação extrajudicial, e não de serviço privativo de advocacia, por isso não há violação em não seguir o Estatuto da Advocacia”, diz Lucas Mendonça, advogado que representa a empresa na ação.

Quanto ao argumento do magistrado de que não se enquadraria em mediação por não haver imparcialidade, o advogado afirma: “Há absoluta imparcialidade no processo de mediação, sendo que a LiberFly não atende desigualmente ao consumidor. A empresa tenta resolver o caso extrajudicialmente. Se não der certo, se não houver consenso, a LiberFly pode indicar escritório de advocacia para levar processo à Justiça, mas ele fica a critério do consumidor e a empresa não ganha nada com isso”.

No site da empresa, consta a seguinte explicação sobre a transferência de direitos: “Ao conceder o seu direito, o cliente (…) se livra das audiências e de meses de negociação com as empresas, além de evitar a justiça e longos processos judiciais. Com a cessão dos direitos, a LiberFly se encarrega de todas as responsabilidades, custos e lucros perante ao ativo judicial”.

Nesse caso, como se trata de ação civil pública, eventual recurso da LiberFly não suspende os efeitos da sentença até decisão em segunda instância – a menos que seja conferido o efeito suspensivo ao recurso, em decisão fundamentada. “A decisão já está valendo, mas, por enquanto, se houver recurso ela terá cumprimento provisório. Na prática, isso significa que a OAB pode cobrar a multa, mas sem levantar os recursos, o que demandaria uma garantia para caso a decisão definitiva reveja a sentença”, explica Mariana Capela Lombardi Moreto, especialista em Direito Processual Civil e sócia do MAMG Advogados.

A OAB do Rio de Janeiro afirma que pedirá a execução da multa estabelecida ainda na decisão liminar. “Certamente cobraremos, porque a publicidade não deixou de existir. Basta olhar o site da empresa. É um absurdo esse tipo de conduta”, disse Alfredo Hilário, procurador-geral da seccional. Segundo ele, no estado há cerca de dez processos semelhantes envolvendo atuação de lawtechs; quase a totalidade ainda aguarda definição.

Baseada no Espírito Santo, a LiberFly foi fundada em 2016 por três amigos advogados. Conforme apontam reportagens publicadas pela imprensa reunidas no site da empresa, o negócio começou quando os sócios Ari Moraes Jr., César Ferrari e Gabriel Zanette descobriram uma regulamentação europeia que obriga aéreas a indenizarem consumidores no caso de voos atrasados ou cancelados. Perceberam que poderiam fazer algo com isso no Brasil.

Em reportagem de outubro de 2019, quando já existia a liminar, os sócios contam que haviam sido solucionados três mil casos, tendo taxa de sucesso de cerca de 98%, chegando a obter até R$ 10 mil em algumas indenizações. Agora, é estabelecido no site e na divulgação nas redes sociais o pagamento antecipado de até R$ 1 mil por causa aprovada, que deve ter acontecido nos últimos cinco anos. Não há menção à taxa de serviço de 30% do montante obtido.

O caso tramita na Justiça Federal fluminense com o número 5013015-15.2019.4.02.5101.

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