Passageiros vs empresas

Companhias aéreas são mais processadas no Brasil do que no exterior

Para a IATA, chance de uma empresa do setor ser processada no Brasil é 5 mil vezes maior do que nos Estados Unidos

Crédito: Pexels

O Brasil é recordista em processos contra companhias aéreas, segundo a Associação Internacional de Transporte Aéreo (IATA).  Na visão de empresas aéreas, associações do setor, parte do Judiciário, agências e secretarias responsáveis pela aviação civil, isso ocorre porque o brasileiro estaria buscando resolução para problemas no transporte aéreo na Justiça enquanto poderia haver solução por outras vias.

A ida aos tribunais antes de esgotadas outras possibilidades representa custos para a manutenção do sistema de Justiça, para as empresas do setor, além de esperas mais longas para os consumidores. 

O momento atual – em que aumentaram as reclamações e potenciais zonas de atrito entre passageiros e empresas aéreas – pode ser tanto um sinal de atenção para eventual incremento de disputas sobre reembolso e remarcação na Justiça quanto uma oportunidade para conquistar a aderência dos consumidores a outras alternativas de resolução de conflitos. Melhor se a segunda alternativa sair fortalecida. Entretanto, essa situação se arrasta há anos e por uma série de questões difíceis de serem vencidas. 

Há excesso de demandas?

Antes de tudo, é preciso entender o espaço que as demandas de consumidores – não apenas as referentes ao setor aéreo – ocupam no Judiciário de modo geral. A Justiça Estadual respondeu por 68% dos processos que entraram no sistema em 2019, de acordo com a edição mais recente do levantamento Justiça em Números, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) anualmente. Naquele ano, o assunto mais demandado foi de indenização por dano moral ou responsabilidade do fornecedor, temas também incluídos no Direito do Consumidor. Foram 2,3 milhões de processos classificados sob esse assunto, o correspondente a 4,4% do total. 

Alguns detalhes revelam um pouco mais: nas varas e em segundo grau, estes temas não estão entre os temas principais; enquanto nos juizados especiais dos estados e nas turmas recursais (que julgam apelações dos juizados especiais) aparece com diferença de quase 10 pontos percentuais para os segundos colocados. 

Assim, não é difícil supor que parte relevante das demandas de consumidores têm origem nessa frente do Judiciário – em média, o tempo de baixa para um processo em juizado especial é de um ano e seis meses, frente a quase oito anos na Justiça estadual comum. Criados em 1995, eles têm competência para promover conciliação e julgamento de causas cíveis que não excedam o valor de 40 salários mínimos; também não é necessário um advogado para abrir processo. No caso do transporte aéreo, há, inclusive, Juizados Especiais Cíveis presentes em aeroportos, o que é visto como um incentivo à judicialização. 

“Como isso vem sendo feito assim há muitos anos, há uma certa permissividade e um entendimento de que entrar na Justiça é a saída simples, ainda mais quando não se tem custo em primeiro grau”, afirma Valéria Curi Starling, sócia de Di Ciero Advogados, integrante da Comissão de Direito Aeronáutico da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de São Paulo. Na perspectiva dela, o primeiro passo deveria ser buscar a empresa aérea, mas com a garantia de que receberá a reparação devida. 

Facilitar o acesso à Justiça é importante em um regime democrático, mas o volume de processos, por si só, não atesta que isso esteja acontecendo e que os recursos estejam alocados de modo equilibrado. Os gastos da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios com o sistema foi de 2,7% do total, e a perspectiva é que eles aumentem com os custos previdenciários nos próximos anos. Por isso há a necessidade premente de haver mais eficiência e racionalidade no trabalho do Judiciário. 

“O Judiciário custa o dobro da educação básica e não atende as pessoas mais pobres. A lógica dele precisa mudar, porque o acesso à Justiça não envolve apenas tribunais, mas vias anteriores. Há um excesso”, diz Luciano Benetti Timm, professor de direito econômico da Fundação Getúlio Vargas (FGV), em São Paulo.

Adicionalmente, responsabilizar o acesso à Justiça como causa da judicialização não resolve o problema nem explica a quantidade de processos sobre o setor. Nos últimos anos, lawtechs que pagam passageiros para buscar indenização em troca de uma parcela dela, caso a ação vingue, ajudaram a ampliar ainda mais o número de processos.

Se o processo for perdido pela parte ou nenhum acordo for fechado, o passageiro não arca com nenhum custo, afirmam as empresas. De modo geral, passageiros propensos a aceitar o convite são encontrados nas redes sociais. O salto desses serviços aconteceu entre 2018 e 2019, quando mais empresas começaram a empreender nesse sentido. 

É atribuído a essa massificação o aumento de processos na Justiça demandando indenização por danos morais: enquanto 2018 teve 64 mil ações propostas por consumidores contra as aéreas, foram 109 mil entre janeiro e julho do ano seguinte, segundo levantamento do Instituto Brasileiro de Direito Aeronáutico (Ibaer) sobre o tema. O comportamento dessas empresas tem gerado respostas de diferentes frentes da OAB, que as acusam de ferir o código de ética da advocacia e de ofertar serviços jurídicos indevidamente. 

A questão não se encerra no volume de processos, que, quando é elevado, mina a eficiência do Judiciário, mas no motivo que faz a ida à Justiça ser um negócio lucrativo. “Frequentemente, as normas da Anac são ignoradas e se considera apenas questões de Direito do Consumidor, o que gera decisões que não deveriam se sustentar”, afirma Robson Bertolossi, presidente da Junta de Representantes das Companhias Aéreas Internacionais do Brasil. A falta de uniformização das decisões faz com que, em alguns casos, se tenha uma indenização e, em situação semelhante ou diante das mesmas condições, não.

Não faltam parâmetros para embasar as determinações. A resolução 400, de 2016, da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), determina obrigações para cada nível de atraso ou descumprimento de acordos por empresas aéreas e quando caberia indenização. Em 2017, o Supremo Tribunal Federal (STF), determinou (tema 210) limite de indenização por extravio de bagagem, seguindo as Convenções de Varsóvia e Montreal, que disciplinam o tema internacionalmente e o Brasil segue. 

Não há dados disponíveis que deem a dimensão exata do número de casos finalizados e o teor das decisões sobre o tema no Brasil, bem como a proporção de casos em que haveria trânsito em julgado sem que fossem seguidas as normas do regulador ou comprovação de que houve dano. De todo modo, para não restar dúvidas, a mudança na Lei 7.565/1986, feita pela Lei 14.034/2020, que foi introduzida para sanar dificuldades da pandemia, acrescentou artigo determinando que a indenização por danos morais referentes a problemas no transporte aéreo precisa de demonstração do prejuízo. 

“Na prática, a questão do dano já era considerada em processos movidos por consumidores. O problema não é o volume de ações na Justiça, e sim se houver julgamentos indevidos”, diz José Pablo Cortes, presidente da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB-SP. 

O serviço justifica? 

Em grande medida, o incômodo com a judicialização registrada no transporte aéreo no Brasil se agrava com a comparação de que, em outros mercados, a situação não se repete. Em última instância, lidar com mais processos judiciais e arcar com indenizações significa mais despesas para as empresas brasileiras, o que poderia ser um dos motivos capazes de afastar novas entrantes estrangeiras no mercado nacional. 

Ao JOTA, o secretário nacional de aviação civil, órgão do Ministério da Infraestrutura, Ronei Glanzmann, defendeu que essa é uma das principais agendas da pasta para ampliar o mercado aéreo. De acordo com a IATA, a chance de uma empresa do setor ser processada no Brasil é 5 mil vezes maior do que nos Estados Unidos – em que o acesso à Justiça gratuita é uma das diferenças entre os dois países, além de que por lá é comum haver class actions em vez de ações individuais. 

Isso é exemplificado por uma comparação entre as ações sofridas por três aéreas americanas que operam tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, feita pelo escritório Bernardi & Schnapp Advogados. Em 2019, havia em média uma ação judicial em solo brasileiro para cada 227 passageiros transportados, enquanto nos Estado Unidos houve incidência de um processo para 1.254.561 passageiros.

Além disso, foi registrada uma ação por 1,8 voos operados pelas companhias no Brasil, frente a uma por 12.658 nos Estados Unidos. Cabe destacar que os números não necessariamente podem ser estendidos para o cenário como um todo, isto é, essa não é a média de processos por voo no Brasil de modo geral, mas para essa amostra pequena. 

De todo modo, há uma disparidade de risco em operar em um ou outro país, apesar de a qualidade do serviço ser semelhante. Uma das variáveis para avaliar isso é a pontualidade. Antes da pandemia, em 2019, a proporção de voos que não sofreram cancelamento era de 98% tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, segundo levantamento da Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear) com dados da Anac e do departamento de transportes americano. 

Além disso, os voos domésticos nos aeroportos brasileiros foram ligeiramente mais pontuais: 84% frente a 81% nos Estados Unidos, levando em conta uma tolerância máxima de 15 minutos. As causas mais frequentes para os atrasos e os principais motivos para reclamações de passageiros acerca do serviço coincidem nos dois países. São eles: reserva, emissão de passagens e embarque; cancelamentos e atrasos; e serviços ao consumidor). 

As reclamações sobre problemas com bagagem correspondiam a 17% nos Estados Unidos e 7% no Brasil. Essas queixas foram computadas pela Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), ligada ao Ministério da Justiça, no Brasil, e pelo departamento de transportes nos Estados Unidos. Por aqui, a cada 100 mil passageiros transportados em 2019, houve 40,6 reclamações registradas, enquanto o índice americano foi de 1,34. 

Evidentemente, reclamar não significa judicializar o caso, mas dá um indicativo sobre aonde pode chegar a insatisfação do consumidor se não obtiver respostas. O cadastro na plataforma consumidor.gov.br, mantida pela Senacon para resolver os problemas antes que eles vão para os tribunais, é obrigatório para as companhias aéreas, segundo determinação da Anac. Trata-se de uma aposta para reduzir o número de demandas judiciais.

Em 2020, o número de reclamações contra companhias aéreas mais do que dobrou na plataforma, que registrou uma taxa de resolução das empresas brasileiras de 76%, superior à das estrangeiras registradas. Como era de se esperar, os principais temas foram remarcação e reembolso. Caso a resposta seja insatisfatória, é possível recorrer ou abrir nova demanda. 

Mitigar a judicialização passa também por entender as brechas que há no serviço prestado pelas empresas aéreas. E o serviço de atendimento ao cliente é uma delas, em certa medida. Há descrença em relação a ele de modo generalizado. Pesquisa contratada pela Senacon em 2019 indicou que os consumidores não estavam conseguindo resolver suas demandas por esse canal. Não à toa, a modernização do SAC está em discussão no Conselho Nacional de Defesa do Consumidor, órgão vinculado à Senacon.

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