

Os obstáculos de acesso ao tratamento dificultam a vida das pessoas diagnosticadas com Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica (DPOC) no Brasil. Essa não precisaria ser a realidade. Já existem terapias modernas, que combinam três dos principais tipos de medicamentos para o tratamento da doença em uma única apresentação e são recomendadas para casos graves.
Contudo, existem gargalos que precisam ser considerados para o avanço da cobertura de tratamento. Esses desafios incluem desde o aumento do conhecimento sobre a doença – tanto pela população quanto por profissionais de saúde –, o diagnóstico e a ampliação do acesso às novas terapias no Sistema Único de Saúde (SUS).
A DPOC não possui cura. Ela foi a terceira principal causa de mortes no mundo em 2019, segundo dados mais recentes divulgados pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Naquele ano, 3,2 milhões de pessoas morreram pela doença.1 No Brasil, a DPOC afeta mais de 6 milhões de pessoas2 e é uma das principais causas de morte.3
A doença gera uma obstrução no fluxo ou passagem de ar nas vias aéreas, de forma crônica, progressiva e irreversível, podendo trazer consequências graves para o sistema respiratório a longo prazo. Entre os principais sintomas estão falta de ar, tosse constante e fadiga.
”A DPOC causa a ruptura das paredes alveolares dos pulmões. Quando essa ruptura acontece, as paredes internas do pulmão podem se romper”, explica a pneumologista, pesquisadora da Fiocruz e presidente da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT), Margareth Dalcolmo.
Além das complicações para a vida de quem sofre com a doença, os impactos no SUS são significativos. A DPOC é uma das principais causas de internações no sistema público de saúde.4 Todos os anos, há um gasto estimado de aproximadamente R$ 100 milhões no orçamento público em função da doença.5
Dificuldades para adesão ao tratamento
A população acima de 50 anos é a mais afetada, mas os comportamentos de risco começam bem antes – como a intrincada relação entre o tabagismo e a DPOC. Por isso, a necessidade de alertar e informar a sociedade sobre a doença.
Hoje, a maior parte das pessoas impactadas pela doença não recebe a devida atenção de saúde. Segundo a SBPT, só 12% dos pacientes são diagnosticados e apenas 18% seguem o tratamento.6
O sentimento de culpa pela própria condição pode afastar o paciente de buscar ajuda. A pesquisa “O retrato da DPOC na visão dos brasileiros”, realizada pela biofarmacêutica Chiesi neste ano com o apoio técnico-científico da Sociedade Paulista de Pneumologia e Tisiologia, mostrou que, apesar de 69% dos entrevistados reclamar de algum sintoma que afeta as vias aéreas, cerca de 45% ainda não procuraram atendimento médico para investigar esses sintomas.7
Entre os fumantes, a situação é ainda mais grave: 83% dos entrevistados que fumam relataram algum sintoma respiratório, mas 59% não marcaram sequer uma consulta médica para investigar o caso, segundo o levantamento.
“Estamos falando de pessoas com mais de 50 anos que, muitas vezes, passaram boa parte da vida fumando, e, por isso, sentem muita culpa”, explica Gustavo San Martin, diretor executivo da associação de pacientes Crônicos do Dia a Dia.
Para o levantamento, foram entrevistadas 2.141 pessoas, entre população, pacientes com DPOC e cuidadores.
Entre os diagnosticados com DPOC, as queixas não param nos sintomas respiratórios. Para 55%, a piora do estado emocional é um dos problemas. Outras fatias consideráveis das pessoas ouvidas indicaram que a autoestima e as atividades sociais com os amigos foram áreas bastante afetadas desde o diagnóstico – 52% e 47%, respectivamente.
Além do contexto de desinformação e estigma, empecilhos para conseguir o tratamento dificultam a adesão de pacientes – que acabam deixando de se tratar adequadamente, com reflexos na qualidade de vida deles ao longo do tempo. Um exemplo cotidiano é que, frequentemente, os pacientes precisam ir a mais de uma farmácia da rede pública (normalmente uma de alto custo e outra da atenção básica) para conseguir todos os medicamentos necessários para o tratamento.
“Imagine o cenário: o paciente com dificuldade de respirar tem que se locomover para dois lugares ou mais para conseguir todas as partes da terapia. Isso dificulta muito a adesão”, contesta San Martin. Ele explica ainda que muitos pacientes acabam fragilizados após o diagnóstico e daí a importância do aspecto emocional também ser levado em conta no tratamento.
Essa dificuldade de adesão está expressa nos dados da pesquisa: 30% dos pacientes disseram que já abandonaram o tratamento sem o consentimento do médico por dificuldade de obter os medicamentos no SUS. Enquanto isso, 24% relataram que deixaram de fazer o tratamento ao notar uma melhora dos sintomas, o que é um risco, pois a DPOC é uma doença crônica que exige tratamento contínuo.
Terapia tripla fixa
De modo geral, o tratamento padrão para casos mais graves da doença, em especial no SUS, é realizado com a combinação de diferentes medicamentos, usados separadamente: os broncodilatadores beta adrenérgicos de longa ação (conhecidos pela sigla LABA), os broncodilatadores anticolinérgicos (LAMA) e os corticoides inalatórios.
No entanto, em meio às dificuldades de adesão ao tratamento, a terapia tripla fixa, composta por um anti-inflamatório corticoide e dois broncodilatadores em um único dispositivo, poderia facilitar o dia a dia dos pacientes.
Por reunir diferentes fármacos em único dispositivo, a terapia tripla fixa mitiga a possibilidade de os pacientes não aderirem corretamente ao tratamento e é crucial, sobretudo, para pessoas com a forma grave da doença. Ela promove o controle da doença e melhora a função pulmonar e, por isso, é capaz de evitar crises respiratórias, reduzir internações, melhorar a qualidade de vida e diminuir as chances de morte pelo agravamento da DPOC.8
“A terapia tripla tem uma absorção imediata e, por isso, costuma aliviar o paciente de forma muito mais rápida”, aponta a pneumologista Margareth Dalcolmo.
De acordo com a médica, a terapia já é amplamente prescrita para pacientes no atendimento de saúde particular. O cenário não é o mesmo para a população que depende do SUS – evidentemente, a maior parte de baixa renda.
O Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) sobre a doença pulmonar obstrutiva crônica, que direciona como se dará o tratamento no SUS, não preconiza o uso da terapia tripla fixa para o tratamento de pacientes graves.9 Mas essa deveria ser a indicação, segundo diretrizes internacionais, como as da Iniciativa Global para Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica (Gold, na sigla em inglês).
Também não há recomendação do protocolo para os dispositivos em spray, que podem facilitar a aplicação dos medicamentos quando há obstrução grave das vias aéreas. Eles também poderiam substituir os dispositivos em pó, se o paciente apresentar fluxo inspiratório insuficiente.
Atualmente, a terapia tripla é usada por hospitais da rede pública em apenas três estados brasileiros: Goiás, Pernambuco e Minas Gerais. Recentemente, o Conselho Estadual de Saúde de São Paulo também recomendou a incorporação da terapia tripla fixa em spray no estado. Por conta dos resultados observados nos pacientes, Dalcolmo diz que é “francamente favorável à incorporação da terapia tripla fixa pelo SUS”.
No Brasil, a terapia tripla pode ser prescrita desde 2019, quando foi aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Contudo, para que ela se dissemine no SUS, seria preciso, via de regra, uma recomendação favorável da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias ao SUS (Conitec) e, em seguida, a distribuição pelo Ministério da Saúde.
Tabagismo entre jovens
O tabagismo é uma das principais causas da DPOC. Desde o início dos anos 2000, o Brasil reduziu consideravelmente o número de fumantes – porém, recentemente, entrou em cena um novo vilão: os cigarros eletrônicos, adotados principalmente pelos mais jovens.10
Eles já foram utilizados por 24% dos jovens no país. Desse total, um quarto diz usar os dispositivos com certa frequência. Os números são de levantamento conduzido por pesquisadores da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e pela organização global de saúde pública Vital Strategies; foram ouvidas nove mil pessoas nos primeiros meses deste ano.
Na tentativa de alertar sobre o cenário, uma cartilha divulgada pelo Instituto Nacional de Câncer (Inca) mostra que os cigarros eletrônicos são tão ou mais prejudiciais à saúde quanto os cigarros comuns. Assim sendo, podem causar doenças respiratórias, cardiovasculares e câncer.
Isso pode colocar a perder os avanços do Brasil em relação ao consumo de tabaco. Em 1989, cerca de 35% dos brasileiros adultos eram fumantes; o número caiu para menos de 13% em 2019, segundo a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS).11
Essa queda considerável é geralmente explicada pela maior taxação de impostos sobre os cigarros, que aumentou em 2012, a inclusão de imagens atestando o perigo do vício para a população nas embalagens dos produtos, além da própria disseminação de informações científicas apontando para a nocividade à saúde.
Especialistas indicam que se esse fenômeno seguir acontecendo, os mais jovens poderão desenvolver DPOC no futuro. Daí a importância de conscientizar toda a população com frequência. Dalcolmo conta que já atendeu, por exemplo, jovens de 12 e 13 anos que começaram a fumar cigarros eletrônicos e não se dão conta dos malefícios que podem encarar no futuro.
É importante lembrar que a Anvisa não libera a comercialização nem a propaganda de dispositivos no Brasil. “Trata-se de uma tragédia anunciada”, categoriza a especialista.
1 Global Health Estimates: Life expectancy and leading causes of death and disability, World Health Organization, 2020.
2 Epidemiologia da Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica no Brasil: uma revisão sistemática e metanálise, 2020.
3 Painéis Saúde Brasil: mortalidade geral – Causas de óbito, Ministério da Saúde, 2016.
4 Observatório de Política e Gestão Hospitalar, Fiocruz, 2020.
5 Epidemiologia da DPOC: Enfrentando Desafios, Marcelo F. Rabahi, 2017.
6 GOLD COPD lança diretrizes 2019 de manejo da DPOC, SBPT, 2018.
7 O retrato da DPOC na visão dos brasileiros, Veja Saúde, 2023.
8 Singh, 2016a; Singh, 2016b; Vestbo, 2017; Papi, 2018; Dean, 2020; Zheng, 2021; Beeh, 2021.
9 Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica. Portaria Conjunta SAES/SCTIE/MS 19, de 16 de novembro de 2021.
10 Inquérito Telefônico de Fatores de Risco para Doenças Crônicas Não Transmissíveis em Tempos de Pandemia, Vital Strategies e Universidade Federal de Pelotas (UFPel), 2023.
11 Prevalência do tabagismo: Página com informações estatísticas da prevalência do tabagismo no Brasil, INCA, 2022.