Amazônia

Projetos que discutem regularização fundiária podem favorecer ilegalidades

Ordenação territorial demanda planejamento e definição de prioridades. PLs podem beneficiar invasores de terras públicas

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Desmatamento na Amazônia. Crédito: Agência Brasil

Na Amazônia brasileira, cerca de 51 milhões de hectares de florestas são áreas públicas não destinadas, ou seja, territórios que ainda não têm uma categoria específica designada. Em dezembro de 2020, de acordo com o Instituto de Pesquisas Ambientais da Amazônia (IPAM), mais de 14 milhões de hectares dessas florestas, ou 29% da área total, estavam registrados ilegalmente como propriedades particulares no Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (CAR). Por ser um sistema autodeclaratório, invasores fazem o registro da propriedade, mesmo em áreas que são públicas, para tentarem ganhar o direito sobre aquele território. Este é apenas um exemplo que demonstra o desafio para a regularização fundiária no país, o conjunto de medidas que prevê a destinação e a titulação de terras. No Congresso, dois Projetos de Lei, o 2.633/2020 e o 510/2021, estão em discussão com propostas para alterar as regras da regularização fundiária no Brasil. Contudo, ambos são criticados por especialistas e, ao invés de promover avanços, podem estimular novas invasões e aumentar os índices de desmatamento na Amazônia.

Atualmente, a legislação prevê titular terras públicas da União ocupadas até 2011, agilizar processos de regularização de imóveis da agricultura familiar com dispensa de vistoria e permite a venda de imóveis com até 2.500 hectares por valores abaixo do mercado, entre outros pontos. Os PLs em discussão introduziram mudanças que podem beneficiar a ilegalidade, como a ampliação da dispensa de vistoria prévia à titulação para imóveis de 6 módulos fiscais, no caso do PL 2.633, e ampliação para da data limite de ocupação de terra pública que pode ser titulada sem licitação para o ano de 2014, no caso do PL 510. Ambos os textos têm origem na MP 910, que ficou conhecida como a MP da Grilagem. Como ela perdeu a validade enquanto estava em discussão, os PLs foram apresentados para retomar pontos da MP.

No dia 28 de maio, a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) emitiu uma nota técnica sobre os dois PLs que tratam da regularização fundiária. A ANPR considera que há diversos pontos inconstitucionais e que o contexto de pandemia prejudica o trâmite legislativo e exclui do debate as populações mais afetadas, como trabalhadores rurais e povos e comunidades tradicionais. De acordo com o procurador da República e diretor de Comunicação Social da ANPR, Julio José Araujo Junior, o debate está mal posicionado. “Ampliar as áreas a serem regularizadas e mudar os marcos temporais são sinais de que o Estado vai abdicar de fazer um planejamento para essa ordenação e, indiretamente, estimular a ocupação de terras ao longo do tempo”, afirmou.

A doutora em Direito pela Universidade de Stanford (EUA) e pesquisadora associada do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), Brenda Brito, entende que a questão não se resume à falta de títulos, mas também à falta de ordenamento territorial para as terras públicas. “Estudos mostram que a melhor forma de destinar terras públicas é com a criação de áreas protegidas, como unidades de conservação e a demarcação de territórios indígenas. Estamos vendo um movimento de privatização das áreas, mas isso só deveria acontecer em último caso”, afirmou. Para ela, os PLs apresentam fragilidades do ponto de vista ambiental. Os textos não impedem o desmatamento e não cobram a regularização ambiental atrelada à concessão do título. “Uma coisa é ter um passado de desmatamento, outra é ter áreas desmatadas recentemente. Há tecnologia disponível para identificar quando o desmatamento ocorreu e esse ponto não está atrelado aos PLs”, disse Brenda.

Para o especialista em governança e administração de terras, Richard Martins Torsiano, que foi diretor de Ordenamento da Estrutura Fundiária do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) por dez anos, a questão da regularização fundiária é apenas a parte mais visível do problema. “O processo é o reflexo da debilidade da governança e da gestão de terras. Isso significa que ainda há terras públicas passíveis de serem ocupadas e o governo precisa buscar a sua regularização”, afirmou. Torsiano destaca que os governos estaduais têm grande responsabilidade no ordenamento territorial.

De acordo com uma análise feita pelo Imazon, os estados são responsáveis pelo destino fundiário de 86,1 milhões de hectares, ou 17% da Amazônia Legal. Isto corresponde a 60% das áreas não destinadas ou sem informação sobre destinação na região. Torsiano também concorda com a pesquisadora do Imazon com relação à abrangência do debate sobre a finalidade da regularização fundiária. “É ruim reduzirmos a discussão à entrega de títulos. O país precisa decidir os objetivos para o território no curto, médio e longo prazo. Para isso, precisamos de uma discussão séria sobre governança”, afirmou.

O ex-diretor do Incra apontou que os mecanismos da legislação atual são suficientes para atender a 95% dos pedidos existentes. A mudança no marco temporal beneficiará cerca de 1% das ocupações na Amazônia — e isso não é bom. “Cada medida para agasalhar um público que entrou depois de um marco temporal é uma sinalização de que qualquer cidadão poderá ocupar terras que são vistas como oportunidades”, avaliou. “Daqui a dois ou três anos, discutiremos novamente qual será o marco temporal para as terras ocupadas.” Trata-se de um ciclo vicioso que contribui para a devastação da Amazônia.

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