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‘Nosso olhar é eurocêntrico e só tem direito aquele sujeito de perfil universal’

Afirmação é da juíza Adriana Cruz, que abre série com artigos para discutir questões ligadas à raça e ao Direito

Direito e raça
“O que é o George Floyd perto da realidade brasileira? A gente tem um genocídio, vários Georges por dia”, diz Wallace Corbo. Crédito: YouTube

Em maio, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) definiu como inconstitucional a proibição de doação de sangue por homens homossexuais. A decisão diz que é preciso “um exercício anterior de compreensão sobre o lugar do outro no Direito”.

Lívia Sant’Anna, promotora de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia, destaca que “se existe ‘o lugar do outro’ existe um ‘eu’. Quem é que pauta quem é esse outro?”, questiona. “Então existe o outro e existe o ‘eu’, que é o padrão. E é esse padrão que vai outrificar as pessoas de acordo com seus comportamentos, raça, e gênero desviantes”. Segundo a promotora, “esse ‘eu’ corporifica o sujeito universal, que tem sangue azul”. Ela explica que o sujeito universal se caracteriza na figura de um homem, branco, heterossexual e cristão. “E são essas pessoas que pautam o nosso Direito, não só a formação acadêmica, mas também a produção do Direito no sistema de Justiça”.

A juíza federal Adriana Cruz vai na mesma linha e complementa: “Nosso olhar é pautado por um olhar eurocêntrico em que só tem direito aquele sujeito de perfil universal que, lamento dizer, não existe”.

Os direitos no Brasil são restritos a esse perfil considerado universal, avalia Wallace Corbo, advogado e professor da FGV Direito Rio. “Muitas vezes, quando olhamos para as instituições, existe uma constante negação da pessoa negra como destinatária de direitos”, afirma. “O racismo é um problema que vai além de questões pontuais. Vai além do mero problema do acesso ao ensino superior”, ressalta. “O racismo é um modelo social, uma estrutura que traz inferiorização de um grupo de pessoas”.

As falas ocorreram durante o webinar “Voz: debate sobre Direito e raça” nesta quarta-feira (15/7). O webinar foi o pontapé do “Voz”, projeto organizado por Adriana Cruz e Wallace Corbo, com apoio do JOTA, que vai publicar ao longo de 11 semanas artigos com juristas renomados para discutir questões relacionadas à raça e ao Direito. O primeiro artigo, intitulado “Intolerância, perseguição religiosa e a cegueira do Direito”, foi escrito por Adriana Cruz.

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“A questão não é dar voz para ninguém, não há vítimas. Não há vítimas e pessoas sem voz, o problema é fazer se ouvir essa voz”, diz Corbo.

“Essas identidades precisam ser vistas, identificadas e reconhecidas, para que possamos efetivamente buscar igualdades de oportunidades. Essa reunião de juristas negros, que trazem perspectivas epistemológicas e hermenêutica diferentes vem agregar para que nós não fiquemos centrados no sujeito universal, mas que enxerguemos essa pluralidade na ciência do Direito também”, afirma Sant’Anna.

No Brasil, o ensino do Direito é pautado primordialmente pela literatura dos Estados Unidos e da Europa. “Nós temos um foco quase que exclusivo no Norte global, na Europa e nos Estados Unidos. Nós parecemos uma bolha na América Latina”, avalia Sant’Anna. “Precisamos pluralizar os espaços e pluralizar os saberes disseminados nesses espaços [universidades]. Essas duas coisas permitem que a gente mude o próprio método jurídico”, defende Corbo.

Sobre cotas no ensino superior, a juíza federal Adriana Cruz destaca que é algo voltado “não exclusivamente para aqueles que alcançam aquela vaga, mas para todos que estão ali [nas universidades], negros e brancos”.

“Temos que partir de perspectivas epistemológicas diferentes, que tragam outras visões para o acadêmico de Direito e para os juristas também já formados, que estão aplicando e interpretando o Direito”, afirma Sant’Anna. “Estamos falando de um sistema de Justiça que não está aberto à diversidade, que não está aberto à pluralidade de pontos de vistas”.

A desigualdade, destaca Cruz, está presente no reconhecimento, ou falta de reconhecimento, das instituições e no modo como o Estado trata o negro. “Moradores dos Jardins, do Leblon, não são tarjados como sujeito criminoso como são tarjados as pessoas das comunidades. Isso mostra como a questão não está posta na conduta, está posta no sujeito”, diz. “Sempre que converso com jovens, procuro frisar que o Brasil não é o país da impunidade, mas sim o país da seletividade”.

A juíza falou da mulher negra que sofreu abusos durante uma abordagem policial em São Paulo: “Eu não acho que o Direito Penal seja a resposta para tudo. Mas há um núcleo duro de condutas que precisam receber respostas do Direito. Se a conduta de pisar em uma mulher não é merecedora de respostas do Direito Penal, não sei o que pode ser”.

“O que é o George Floyd perto da realidade brasileira? A gente tem um genocídio, vários Georges por dia”, diz Wallace Corbo.

Ao tratar de reconhecimento, Adriana Cruz fez um paralelo sobre a realidade de jovens com diferentes origens. “Vejo amigas minhas de classe média reclamando que os filhos não lavam um copo. E vejo negros da periferia com um poder de realização desde cedo”, conta. “Fico me perguntando por que um mérito negro não é reconhecido pelas instituições”.

Ela também comentou o caminho até chegar à posição de juíza: “Não queremos que nosso lugar seja fundamento para justificar a exclusão daqueles que vão chegar, na linha ‘se eles chegaram está tudo certo”.

A promotora Lívia Sant’Anna explicou ainda a importância das referências. “Quando você vê um ministro negro, um juiz negro, um procurador negro, você pode almejar aquilo. Por isso a gente fala que representatividade importa”.