
A prática de ajuizar um amontoado de ações idênticas para prejudicar a parte contrária ou o próprio Judiciário, conhecida como litigância predatória, foi tema de debate na Casa JOTA nesta terça-feira (7/6).
A estratégia é monitorada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) desde fevereiro deste ano, quando foi aprovada a recomendação nº 127. No texto, o presidente do CNJ, o ministro Luiz Fux, aconselha que os tribunais adotem medidas para “coibir a judicialização predatória que possa acarretar no cerceamento de defesa e a limitação da liberdade de expressão”.
Em geral, a litigância predatória ocorre quando advogados procuram pessoas físicas — geralmente vulneráveis — que estão com o “nome sujo” por causa de dívidas e as convencem que, além de ter o nome limpo, podem receber uma indenização. Ao ajuizar centenas ou milhares de ações idênticas, os casos afogam o Poder Judiciário. Há caso em que um mesmo advogado distribuiu 11.142 ações com o mesmo pedido em sete comarcas, por exemplo.
Para discutir o tema, o JOTA convidou o juiz João Azambuja, Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), o juiz Felipe Viaro, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), o professor da FGV e sócio da CTM Advogados Luciano Timm e o presidente-executivo da Associação Nacional dos Bureaus de Crédito (ANBC), Elias Sfeir.
De acordo com o juiz Felipe Viaro, é necessário diferenciar a atuação de advogados que trabalham com teses, quando uma série de ações é ajuizada com objetivo válido, de litigância predatória, quando a estratégia visa só prejudicar alguém.
“É importante diferenciar uma advocacia de tese, quando invariavelmente são ajuizadas uma série de ações, temas repetitivos, daquilo que a gente veio a entender como litigiosidade predatória. A ideia, nesse caso, é uma ação para uma litigiosidade falsa. Eu gosto de chamar de ‘fake lead’. Ali não tem um litígio propriamente dito. É um litígio criado, falseado. Isso normalmente é feito em massa, de forma predatória, para predar os recursos da parte contrária ou do Judiciário, para multiplicar os ganhos”, afirma o juiz do TJSP.
Viaro relata que, na litigância predatória, advogados omitem ou manipulam dados com o objetivo de fraudar a Justiça, geralmente em ações conhecidas como “limpa nome”.
“Em algumas ações, foi notado um dado muito relevante, que era a manipulação de extratos de órgãos de proteção de crédito. Em vez de apresentar toda a lista das dívidas que a pessoa tinha, na ação era colocada só uma negativação por vez. O objetivo era evitar a incidência da súmula 385, que afasta a indenização por dano moral quando há uma inscrição pré-existente. Você tinha uma manipulação de documentos, uma fraude”.
João Azambuja, juiz do TRF1, avalia que a estrutura do Judiciário brasileiro dá brechas para a prática, já que avalia os casos sistematicamente, sem analisar contextos e causas conjuntas. Ele defende o uso de tecnologia e dados para mitigar as consequências.
“Nós, tanto poder judiciário quanto as instituições essenciais da Justiça, principalmente a Ordem dos Advogados do Brasil e as associações de crédito, podemos pensar em um modelo de regulação inteligente, de regulação responsiva, com uma estrutura de pirâmide regulatória cuja base seja expandida, seja por ações de educacionais voltadas a novos advogados seja com a criação de um sistema de ODR [Online Dispute Resolution], parecido com o consumidor.gov., para que as pessoas que se sintam lesadas ou negativas indevidamente possam procurar essas alternativas”, sugere Azambuja.
Luciano Timm, advogado sócio do CTM Advogados e professor da FGV-SP, ressalta que o preço da litigância predatória recai sobre todo mundo, já que a estratégia gera alto custo ao Judiciário.
“A litigância é fruto de uma tomada de decisão estratégica. Se as pessoas estão entrando, é porque está valendo a pena, na média. Isso é necessariamente ruim? Não. O ruim é quando há algum nível de uso estratégico que não beneficia a sociedade. Quando vamos aos dados, de fato, estamos como sociedade gastando muito com solução de disputa, a tal ponto que gastamos 100 vezes mais em disputas do que em saneamento básico. Não parece uma alocação eficiente dos recursos públicos”, afirma.
Segundo o advogado, uma solução para o problema seria a criação de precedentes por parte dos tribunais superiores. “O STJ e o Supremo podem pensar em precedentes vinculantes, quando provocados, para resolver esse problema. Não deixar para o parlamento resolver, porque lá tem toda uma lógica mais lenta”, recomenda Timm.
Para o presidente executivo da Associação Nacional dos Bureaus de Crédito (ANBC), Elias Sfeir, a negativação dos nomes, por si só, é algo importante para evitar o superendividamento. No entanto, há uma “indústria” que se vale se má-fé e prejudica o que deveria ser benéfico.
“Existe uma má-fé. O reflexo é no grande volume de inadimplentes. Quanto maior a inadimplência, maior a taxa de juros. Ou seja, estamos penalizando o adimplente por um mau comportamento do inadimplente. Estamos incentivando a inadimplência através de um comportamento predatório”, reclama.
Sfeir diz que é preciso reforçar o uso de mecanismos de conciliação, de diálogo, antes de os casos chegaram à Justiça. “Entrar diretamente no judiciário sem tentar os mecanismos normais de conversa, de conciliação, inclusive credor e tomador de crédito, não é um bom hábito. Com isso, a gente acaba penalizando a dona Maria, que vai comprar uma geladeira e vai pagar uma taxa mais alta”.
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