A crise sanitária da Covid-19 mostrou que a capacidade do Brasil de desenvolver tecnologia e inovação em saúde é limitada. Na perspectiva de especialistas em saúde pública, o país possui condições que tornariam possível reverter esse processo, como a alta demanda do SUS e instituições avançadas para pesquisa e regulação.
Apesar de a atuação do Instituto Butantan e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) terem sido fundamentais para que as vacinas contra o novo coronavírus fossem produzidas no país, reduzido em parte a dependência do mercado internacional, o Brasil ficou distante do desenvolvimento e produção em larga escala de novos imunizantes e tratamentos.
“Nem sempre foi assim. Até a década de 1940, nós dominávamos o que se tinha de mais moderno na indústria farmacêutica. O que explica a atual fragilidade e dependência foi a falta de política industrial para estruturar uma base produtiva e tecnológica para a saúde, com foco em inovação”, avaliou o médico sanitarista José Gomes Temporão, pesquisador da Fiocruz e ministro da Saúde entre 2007 e 2011. Ele falou em evento da Casa JOTA em parceria com a Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp) nesta terça-feira (9/8)
O sanitarista defende que se invista em uma política desenvolvimentista de Estado com foco em saúde, o que seria possível a partir do fortalecimento de órgãos de fomento à pesquisa e à indústria, além de usar o poder de compra do SUS como motor para inovação. “Foi a partir de uma encomenda pública para a Fiocruz que pudemos internalizar a produção de vacinas”, exemplifica.
Temporão cita os exemplos das políticas da China e da Índia, que, ao longo de décadas, tornaram os países os principais produtores de insumos de saúde exportados globalmente. Nessas economias, porém, frequentemente a população não tem acesso às tecnologias produzidas localmente, já que não há sistemas universais de saúde como o brasileiro. Essa seria uma vantagem para o caso nacional.
“Aqui, temos população, escala e demanda, a mais importante estrutura industrial da América Latina, universidades e centros de pesquisa, a Anvisa como uma agência reguladora respeitada, capacidade de testagem clínica, um sistema universal que dá poder de compra, uma série de agências de fomento à pesquisa”, elencou Temporão sobre as condições favoráveis que poderiam ser aproveitadas para investir na indústria de saúde como um fator de desenvolvimento econômico e social.
Por outro lado, um problema recorrente é a precariedade das estruturas de pesquisa e a deficiência dos investimentos em ciência. “Precisamos de pessoas qualificadas, estrutura e ambiente econômico que estimule as empresas a desenvolver o conhecimento produzido nas universidades”, apontou Fernanda de Negri, pesquisadora do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
“Ainda temos poucos cientistas e pesquisadores proporcionalmente em relação ao tamanho da população. Precisamos formar mais pessoas competentes, mas não adianta se não damos condições de trabalho para elas no Brasil. Falta um mercado de trabalho mais diversificado para desenvolver pesquisas e tecnologia”, completou.
Nesse sentido, um desafio mais recente é a exportação de pesquisadores brasileiros para grandes centros globais de inovação, como Estados Unidos e Europa. Um dos principais motivos para o que se tornou uma “fuga de cérebros” é a inconsistência das condições para desenvolver pesquisa no Brasil – e transportar resultados dos laboratórios para a prática.
“Além de o Brasil ter se tornado apenas um absorvedor de tecnologias do exterior, está drenando cérebros para o mundo. Isso é resultado da destruição das políticas de pós-graduação pelo governo federal e da queda brutal de investimentos públicos em ciência”, afirmou Temporão.
Além disso, mesmo quando há o desenvolvimento de estudos de ponta, nem sempre isso se reflete na produção em escala. A descoberta, muitas vezes, fica restrita ao compartilhamento de resultados com a comunidade científica.
“O que fizemos no Brasil em grupos de pesquisa foi descobrir uma vacina para a Covid-19, com testes em animais; as etapas seguintes seriam de desenvolvimento, que é industrial. Mas as nossas empresas não fazem inovação radical; elas trazem tecnologia no exterior e embalam”, afirmou Jorge Kalil, diretor do Laboratório de Imunologia do HCor, em São Paulo, e presidente do Instituto Todos pela Saúde.
Para ele, os pesquisadores precisam ter a confiança de que há chances de que um estudo pode se tornar uma patente e um projeto piloto a ser testado, com potencial de chegar à população. “Existe a necessidade de uma política de Estado para a ciência e a saúde, mas também a indústria, que vai se beneficiar disso, deve participar”, disse Kalil.
Ao mesmo tempo em que a pandemia do novo coronavírus expôs essa urgência, acelerou o aproveitamento da tecnologia para a saúde. O exemplo mais claro seria o uso de ferramentas de telemedicina e telessaúde para facilitar o acesso a tratamentos.
“Essa crise nos fez perder o medo de organizar soluções em telessaúde, então começamos uma ação ativa, para inovar de forma segura. Antes, havia uma procrastinação na formação dos médicos”, disse o médico Chao Lung, chefe da disciplina de telemedicina na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Ele explicou que a telemedicina não serve apenas para o atendimento de pacientes, como em teleconsultas, mas ela pode ser empregada para assistência, educação, pesquisa, promoção de saúde e prevenção de doenças. “Existem várias ferramentas de diagnóstico para urgência e emergência, incluindo radiologia e eletrocardiogramas, que agilizam os processos; outra opção é o manejo clínico de UTIs com apoio da telemedicina”, explicou.
A aposta em novas tecnologias é vista ainda como uma saída para o encarecimento dos custos com saúde, diante do envelhecimento da população e do surgimento de novos e caros tratamentos.
“A moderna medicina de precisão geralmente remete a terapias gênicas e outras alternativas de alto custo, mas também é possível usá-la de forma preventiva”, exemplificou Fernanda de Negri. “Existem tecnologias, como big data e a inteligência artificial, que poderiam ajudar no gerenciamento e nas estratégias de prevenção”, disse.
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