Universidade e pandemia

Estudando Direito em tempos de Covid-19

O ano de 2020 deixará muito mais lições do que apenas as de Direito Civil, Constitucional, Penal

Direito
Crédito: Pexels

“Quem faz a escola é o aluno”. Ainda escuto minha mãe dizer esta frase, mesmo tendo se passado tantos anos que eu, com a perna engessada e para cima, tinha como companhia livros e papel almaço para fazer as tarefas do ensino domiciliar para não perder a sexta série (equivalente hoje ao sétimo ano).

O que parecia um incentivo tornou-se uma espécie de lema de vida em toda minha carreira acadêmica: eu sempre busquei fazer minhas próprias escolhas de aprendizagem, seja na minha primeira graduação de jornalismo, seja na pós ou cursos complementares. Por isso, quando, em 2017, escrevi neste mesmo JOTA que era hora de hackear a educação jurídica no Brasil, propunha um modelo que os próprios estudantes tivessem acesso a outros conteúdos que não os oferecidos pelo curso de Direito.

Naquela ocasião, em agosto, comemoramos 190 anos de fundação de escolas jurídicas no país e a minha inquietação ainda permanece, embora um tanto quanto modificada nos tempos de coronavírus: o ensino continua o mesmo. A mesma metodologia de aulas expositivas, tarefas e provas mesmo enquanto todo o mundo tinha mudado tanto.

Mas, finalmente, as faculdades mudaram. Foi preciso um grande chacoalhão e uma pandemia mundial para que instituições buscassem outros modelos de ensino. A Covid-19 e a quarentena obrigatória imposta pelos estados proibiu as aulas presenciais. E o curso, como fica?

O debate entre ensino à distância (EAD) nos cursos de Direito teve que ser adiado. Neste momento de “o que temos para hoje”, em que buscamos a nossa sobrevivência enquanto espécie, estudar em casa como naquele distante ano de 1993 tornou-se a única opção.

Não estou mais com a perna para cima e, de repente, o quarto se tornou sala de aula. As redes sociais, antes tão criticadas, passaram a ser uma forma de conexão com os colegas e professores. As aulas são transmitidas por Instagram, Facebook, Zoom. E teve professor que até gravou a aula por áudio de WhatsApp.

Na faculdade em que estudo já fazíamos uso do Moodle, um sistema operacional de aprendizagem. A utilização, porém, não era obrigatória e, para muitos, eu inclusa, não essencial. Em época de quarentena é um dos recursos que mais ajuda: professores colocam os materiais como decisões judiciais, slides, links de sites jurídicos como o JOTA, videoaulas.

Não somos mais meros estudantes que tomam notas, mas pessoas com múltiplos acessos a formatos de conteúdo. Agora livres de um formato pré-estabelecido, os professores e professoras têm liberdade para criar lições, tarefas e formas de avaliação diversas as que estávamos habituados. As atividades são as mais variadas possíveis, como assistir a filmes, séries e sessões do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal, participar de enquetes, produzir textos curtos, etc.

Uma delas é a boa e velha sessão de tira dúvidas, que vem repaginada: lemos os textos, fazemos as anotações, encontramos os professores — por videoconferência — em horário pré-determinado para sanar quaisquer questões. Muitos aproveitam este momento para elaborar um roteiro, afinal, a dúvida de um pode ser a do outro.

As aulas que até então pareciam distantes uma das outras se aproximam nas lives, quando um professor chama outro para debater um aspecto atual. Já vi conversas enriquecedoras como, por exemplo, um professor de Direitos Humanos falando com um de Processo Civil sobre o tempo razoável de duração do processo e a urgência de tutelar garantias fundamentais. Para muitos, foi a oportunidade para trazer conteúdos como fake news e deep news que muitas vezes o contexto da sala de aula não permite (no caso de Direito Digital).

As iniciativas não se resumem ao Brasil. Na Universidade de Liège, na Bélgica, o Wooclap tem transformado os celulares em instrumentos de interatividade durante as aulas. No caso da Universidade de Laval, no Canadá, os estudantes podem optar em continuar ou não o semestre sem qualquer ônus para quem decidir postergar.

E se antes estávamos restritos apenas ao conteúdo da grade, agora os próprios mestres incentivam que busquemos materiais além. A sala de aula se torna global quando podemos fazer cursos em Harvard, Yale, Stanford e muitas outras opções do Coursera sugeridas. Também recebi sugestões de cursos de idiomas e até mesmo de atividades manuais como crochê e tricô para aliviar o estresse.

E, nisso, um aspecto muito importante é a preocupação que a faculdade tem com a saúde mental e o estado emocional das turmas neste período de isolamento. No caso do Mackenzie, a Capelania disponibilizou um serviço online e gratuito de suporte espiritual aos estudantes (trata-se de uma universidade confessional cristã). Nas redes sociais, os professores enviaram mensagens de incentivo e encorajamento. Mas outras instituições têm buscado direção semelhante: a Universidade do Estado do Amazonas disponibilizou gratuitamente uma cartilha sobre o consumo de álcool entre universitários.

Mas, o que este período tem trazido vai muito além das matérias técnicas. Para conseguir dar conta de tudo (sim, tem muita coisa), é fundamental que tenhamos organização, disciplina, responsabilidade. Saber administrar o tempo e as distrações também são capacidades básicas para enfrentar uma maratona de estudos no confinamento. Saber escolher entre as tantas opções de conteúdos traz uma sensação de criação do próprio curso. Estas competências serão muito úteis não apenas no restante da vida acadêmica, como na vida profissional e pessoal.

A empatia entre os colegas também foi outro ponto que destaco. Se antes pudesse existir qualquer rivalidade ou panelinha, aprendemos que estamos todos no mesmo barco e jamais chegaremos a lugar algum sem a ajuda uns dos outros. São dúvidas tiradas por um, materiais compartilhados com outros, os grupos de WhatsApp das salas transformaram-se em grandes lições de solidariedade acadêmica. Em tempos que muitos estão sendo dispensados dos seus estágios por causa da pandemia (sim, isso é sério), ver o apoio que as turmas estão se dando é uma fonte de esperança.

Se tivesse que resumir estas quatro semanas de estudos de Direito, usaria apenas uma palavra: humanidade. O Direito é feito por pessoas, para pessoas (e, claro, seus bens e suas relações). Mas, sobretudo, o ser humano é o centro e razão de toda e qualquer norma jurídica que se preze. Mas, em algum ponto, esquecemos disso. Agora, que as aulas têm a participação da mãe de uma estudante que acha a professora muito jovem, com barulho de latido do cachorro ao fundo, é o tempo que serve para lembrar que somos gente. De carne, osso, que tem medos e anseios. Uma coisa que a faculdade está me ensinando em tempos de Covid-19 é que somos humanos, demasiadamente humanos. Em 2020, é o que basta.