Por que criar produtos digitais é um desafio tão diferente na indústria do jornalismo, se comparado com o que acontece com outras indústrias? Será que podemos extrair alguma lição deste 2020 tão difícil para 2021, que já se mostra como tão desafiador?
Perguntas difíceis, certamente. A crise acertou em cheio as empresas de mídia num momento em que informação de qualidade nunca foi tão importante. Existe uma pandemia de proporções globais acontecendo e transmitir informações corretas se tornou mais do que um dever de ofício, mas um pré-requisito para a sobrevivência. Acontece que, na era das mensagens ‘não sei se é verdade, mas estou repassando’ dos grupos de Whatsapp, as formas de produzir informação, de se conectar com o público e de se mostrar relevante se tornaram completamente diferentes.
As iniciativas de mídia que se mostraram mais sustentáveis nas águas turbulentas dos últimos anos, e do ano passado em especial, têm algo em comum: a visão de produto. Abaixo, listo 6 mudanças de mentalidade necessárias na indústria para a adoção de uma visão de produto e 6 dicas sobre como exercitar essa nova maneira de pensar.
- NOÇÃO DE ‘PRONTO’. No jornalismo, nós somos ensinados a publicar nossas histórias apenas quando o que temos em mãos já foi checado e rechecado, quando todos os envolvidos foram ouvidos e quando o arco narrativo não tem nenhum buraco de apuração. Todos os detalhes da matéria devem estar perfeitos e irrefutáveis. E, uma vez que ela esteja pronta, acabou. Pode haver uma continuação no dia seguinte, mas não se altera o que foi publicado no dia anterior. Ou, no caso de alteração e atualização, isso ocorre de forma pontual e identificada.
Para produtos digitais, no entanto, não existe perfeição, de forma que um produto, na prática, nunca está terminado. O produto, ou parte dele, está pronto todas as vezes em que o que se tem até ali gera valor para o assinante. É de sua natureza evoluir constantemente. E isso não tem nada a ver com diminuir a qualidade ou negligenciar o que está ganhando vida. Pelo contrário: se relaciona com um compromisso que não é mais pontual, mas que acontece ao longo do tempo — você se torna eternamente responsável pelo produto que você entregou. A mudança aqui requer que jornalistas entendam e se sintam confortáveis com esta nova noção de ‘pronto’. - COLABORAÇÃO. Enquanto as redações aceitam e até incentivam a competição entre repórteres, em ambientes em que se desenvolve produtos digitais, você não vai conseguir chegar muito longe sem colaboração. Um dia em um passado não muito distante, a prova máxima de sucesso de um repórter era o furo, algo obtido com exclusividade e guardado a sete chaves até a publicação. Nesta nova lógica com que trabalhamos, precisamos lidar com problemas tão complexos que indivíduos não são capazes de resolvê-los sozinhos. O sucesso, neste novo cenário, dificilmente é resultado de um indivíduo ou de um rompante de genialidade, mas de um trabalho conjunto em que transparência e comunicação fluida são valores muito mais importantes do que exclusividade. Neste ponto, compartilhar e vivenciar os valores da metodologia ágil ajudam bastante a fazer essa orquestra tocar bem junto.
- AUDIÊNCIA. A relação entre jornalistas e seu público ou outros envolvidos é super regulada pelo Código de Ética da profissão — como é o certo. O resultado disso, porém, é que muitos jornalistas têm medo de se aproximar da sua audiência, sob pena de enviesar seu olhar e comprometer sua liberdade editorial. Em uma abordagem que coloca o leitor no centro, no entanto, é vital conhecer o assinante como se ele fosse um amigo próximo: suas dores, suas motivações e frustrações, em que contexto usa o conteúdo da sua organização, o que estava fazendo no segundo anterior e um segundo depois de consumir a informação que sua organização produziu, que papel esta informação tem em sua vida etc. Aqui, uma dica é traçar uma linha clara entre quem produz conteúdo e os que desenvolvem o produto, mesmo que todos sejam jornalistas. O segundo grupo fica com o contato direto com os usuários e repassa os dados colhidos com os assinantes/usuários, anonimizando as informações, quando necessário.
- EXPERIÊNCIA DO USUÁRIO. Empresas de mídia, em geral, não têm oferecido uma experiência digital tão boa quanto as de outras indústrias. Como consumidores do universo digital, nossos assinantes estão habituados a pedir comida e carro por aplicativo, encontrar a música que quer ouvir ou a rota mais curta com um toque/clique ou com comando de voz. Mas a indústria da informação ainda sofre com interferência incômoda de anúncios, com a falta de personalização na forma como o conteúdo é entregue e até falta de propósito — este conteúdo é algo que realmente resolve o problema de alguém. Aplicativos não funcionam direito, sites não redimensionam corretamente no celular e oferecem uma experiência tão aquém do que o assinante está acostumado que não é capaz de criar usuários leais. Neste ponto, o segredo é seguir as melhores práticas das empresas de tecnologia, que são as que mais inovam neste quesito, e não nos exemplos do jornalismo.
- MERCADO. Se sua empresa está em um mercado de nicho, ela provavelmente compete na interseção de duas indústrias, a da informação e a do nicho. O que os seus competidores chamam de conteúdo de marketing, você considera o core do seu negócio. A parte boa disso é que sua organização provavelmente está produzindo melhor, mais aprofundado e conectado com tendências e especialistas-chave do tema. No entanto, é preciso ir além da produção de um bom conteúdo e ter um conteúdo tão importante que faria com que alguém pagasse por ele recorrentemente. Em mercados de nicho, é importante considerar uma estratégia B2B, na qual você se propõe a resolver problemas de empresas e organizações, e não de indivíduos.
- MODELOS DE NEGÓCIO. O jornalismo em geral se vê dependente do combo assinatura-anúncio-doação, modelo que se mostra obsoleto desde a era do impresso, ou de estratégias de vendas de projetos para grants, que são sazonais e dependentes de grandes e poucos atores. Em vez de apostar em projetos ou soluções que resolvem apenas parcialmente ou momentaneamente o problema, as discussões deveriam estar em torno de criar estratégias para a criação de um produto que garanta faturamento recorrente. Mais uma vez, o benchmark deveria vir da indústria de tecnologia. Empresas de mídia deveriam pensar em como adotar uma abordagem de SaaS (software as a service), fazendo as adaptações necessárias para os seus contextos.
No JOTA, vivemos os seis desafios acima no nosso dia a dia. As respostas que encontramos para eles, e que são sugeridas aqui, são construções que respondem ao nosso contexto hoje, mas não são respostas definitivas para todos os problemas, tão pouco uma receita de bolo a ser seguida em qualquer contexto. Outra habilidade importante a se desenvolver no ambiente complexo da indústria da mídia atual é a de responder rápido e se adaptar a diferentes situações. Essas seis dicas servem para jogar um pouco de luz em caminhos nunca trilhados que pareçam muito escuros.
A primeira versão deste texto foi publicada como parte da série ‘2021 visions: how should news product evolve?’, da escola de jornalismo da Cuny (City University of New York). Ela também integra a página ‘Por dentro do JOTA‘, no Medium, em que compartilhamos nossas experiências nas áreas relacionadas à tecnologia no JOTA.