Bruna Angotti
Antropóloga e advogada. Professora da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Autora do livro Entre as Leis da Ciência do Estado e de Deus: O surgimentos dos presídios femininos no Brasil.
A leitura do livro Interações de gênero nas salas de aula da Faculdade de Direito da USP: um currículo oculto? deveria ser obrigatória a qualquer docente, em especial da área jurídica. Isso porque cumpre integralmente a proposta de seu subtítulo: é impossível lê-lo sem refletir sobre a prática docente, a atuação cotidiana em sala de aula, as relações de gênero que se dão em classe e em outros ambientes universitários.
O livro é um mergulho no cotidiano das salas de aula da tradicional Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (FDUSP), buscando identificar “como e de que forma o processo de ensino e aprendizagem na FDUSP é marcado por dinâmicas de gênero[1]”.
Com acertadas escolhas metodológicas – entrevistas e observação participante com inspiração etnográfica –, e um detalhado mapeamento da proporção de homens e mulheres no corpo discente e docente da Faculdade, a equipe do Grupo de Pesquisa e Estudos de Inclusão na Academia (GPEIA) observou, narrou e analisou as dinâmicas de diferentes aulas do curso.
Li a pesquisa com um triplo olhar: de aluna, que ali se formou em 2006, época na qual os coletivos feministas e negros não tinham adentrado as Arcadas e as dinâmicas perversas do machismo e do racismo estrutural sequer estavam em pauta, apesar de fortemente operantes[2]; de professora, que há dez anos leciona na graduação em direito em faculdades particulares e não públicas, entrando em contato cotidianamente com os anseios e as expectativas de alunas e alunos recém chegados do ensino médio; de antropóloga, que investe na potência da etnografia, do “estar lá”, para identificar dinâmicas e práticas que outros métodos de pesquisa não dão conta de desvelar.
São inúmeras as camadas observadas e analisadas na pesquisa, mas o que chama mais a atenção é justamente o que denominaram de “currículo oculto”, ou seja, os “(...) conteúdos informais que sistematicamente reproduzem relações de poder e reforçam estereótipos e dinâmicas de gênero socialmente estabelecidas[3]”.
Com exceção de um ou outro comentário ou exemplo sexista de um professor, facilmente identificados por alguém minimamente atento à questão, as pesquisadoras do GPEIA se depararam com dinâmicas mais sutis que exigiram preparo metodológico e teórico para identificar e interpretar, enfrentando a complexidade daquilo que é estruturante, mas não necessariamente escancarado.
Uma maioria de aulas expositivas com pouquíssimo espaço para questões, nas quais não há participação feminina; ausência de menção a questões de gênero em aula, assumindo temáticas e exemplos masculinos como “neutros” e “universais”, são alguns exemplos dessas “sutilezas”.
Ao refletir sobre o fazer etnográfico, o antropólogo Clifford Geertz ressaltou:
"Examinar dragões; não domesticá-los ou abominá-los, nem afogá-los em barris de teoria, é tudo em que consiste a antropologia. Temos procurado, com sucesso nada desprezível, manter o mundo em desequilíbrio, puxando tapetes, virando mesas e soltando rojões. Tranquilizar é tarefa de outros; a nossa é inquietar. (...) apregoamos o anômalo, mascateamos o que é estranho, mercadores que somos do espanto[4].”
Nesse sentido, a pesquisa em pauta cumpre bem o seu papel de “inquietar”. Duvido que qualquer docente a leia sem se questionar como seriam narradas, interpretadas e avaliadas suas aulas se as pesquisadoras responsáveis pelo estudo as observassem.
Mais do que isso, seus resultados “desequilibram” e convidam, para além da reflexão, à ação: não se trata apenas do cuidado de não reproduzir falas e comportamentos que perpetuam a desigualdade de gênero – algo no mínimo esperado de professoras e professores de qualquer nível de ensino em qualquer área.
Trata-se, principalmente, do convite a uma atuação docente positiva que promova a discussão, a reflexão e o enfrentamento das questões de gênero, rompendo com o “currículo oculto”, quebrando estruturas e promovendo práticas antissexistas e antirracistas em sala de aula.
[1] S. C. Neder Cerezetti et al, Interações de gênero nas salas de aula da Faculdade de Direito da USP: um
currículo oculto?, São Paulo, Cátedra UNESCO de Direito à Educação/Universidade de São Paulo (USP), 2019, disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000367420.locale=en, p. 10.
[2] Para um relato aprofundado dessa experiência, ver: ANGOTTI, Bruna; VIEIRA, Regina Stela. Em três tempos: Mulheres e Direito na Universidade. In: Vanessa Dorneles Schinke. (Org.). A violência de gênero nos espaços do Direito - narrativas sobre o ensino e aplicação do direito em uma sociedade machista. 1ed.Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017, v., p. 29-46.
[3] S. C. Neder Cerezetti et al, Interações de gênero nas salas de aula da Faculdade de Direito da USP: um
currículo oculto?, São Paulo, Cátedra UNESCO de Direito à Educação/Universidade de São Paulo (USP), 2019, disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000367420.locale=en, p. 115.
[4] GEERTZ, Clifford. Nova Luz sobre a Antropologia. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 65.