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Judiciário

Inadequação da Selic como taxa de juros de mora das dívidas civis

REsp nº 1081149/RS, a ser julgado em novembro, é a oportunidade do STJ de evitar uma decisão de graves consequências

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Sessão do Pleno do Superior Tribunal de Justiça / Foto: Gustavo Lima/STJ

O REsp nº 1081149/RS, de relatoria do ministro Luis Felipe Salomão, foi incluído em pauta para julgamento em 03 de novembro de 2020. Discute-se a interpretação que deve ser conferida ao art. 406 do Código Civil. O dispositivo, ao estabelecer a taxa legal de juros moratórios das dívidas civis, remete à taxa devida no pagamento de impostos à Fazenda Nacional. Doutrina e jurisprudência se dividiram em duas vertentes quanto à interpretação da norma: seria aplicável a taxa de 1% ao mês prevista no art. 161, § 1º do CTN; ou a taxa Selic.

Até 2008, a jurisprudência do STJ oscilou entre estas duas possibilidades. Naquele ano, em embargos de divergência de relatoria do saudoso min. Teori Zavascki, a Corte Especial definiu que o art. 406 do CC remeteria à Selic (EREsp nº 727.842/SP). O entendimento foi reiterado em 2010 em recurso repetitivo (REsp 1111117/PR).

Resolvida a questão? Definitivamente, não. A adoção da Selic torna a tutela do crédito disfuncional, prejudica a Justiça Civil e o desenvolvimento econômico do país e é de difícil operação prática. É sintomático que os Tribunais de segunda instância continuem a aplicar a taxa de 1% ao mês[1]. A verdade é que, há mais de uma década, o STJ encampa solução inadequada. A revisão é uma necessidade.

Há quatro ordens de argumento que corroboram a necessária superação da adoção da Selic nas dívidas civis: (i) o fundamento legal utilizado pelo STJ na formação de seu entendimento não afasta a aplicação art. 161, § 1º, do CTN, como parâmetro ao art. 406 do CC; (ii) a Selic congrega juros de mora e correção monetária – o que, por si só, é inadequado – e, nessa medida, destoa da jurisprudência do STF sobre a TR; (iii)  a adoção da Selic é um incentivo econômico ao inadimplemento e ao prolongamento do processo; e (iv) o direito comparado demonstra a disfuncionalidade da Selic.

Primeiro, o regime legal aplicável. A razão fundante do STJ para adotar a Selic nas dívidas civis (conforme constou no EREsp nº 727.842/SP) foi a premissa de que, por meio de uma série de reformas legais, a regra geral do art. 161, § 1º do CTN teria dado lugar à aplicação da Selic. Não é verdade.

A maior parte das leis mencionadas no voto do min. Teori Zavascki diz respeito a impostos específicos[2]. Não há ampla derrogação do regime geral do CTN, mas alterações limitadas a determinados tipos de crédito.

Tanto não houve qualquer derrogação do art. 161, § 1º, do CTN que, conforme definido pelo STJ no Tema 905, o dispositivo continua a incidir para a solução de casos tributários quando não há lei específica.

A exceção é o art. 84 da Lei 8.981/95, igualmente mencionado no voto do min. Teori Zavascki. De fato, neste dispositivo a Selic é adotada como taxa aplicável à Fazenda de forma mais ampla. Mas há de se considerar que, no § 3º do dispositivo, diz-se que os juros de mora ali previsto não poderão “ser inferiores à taxa de juros estabelecida no art. 161, § 1º” do CTN”.

O dispositivo corrobora o regime do CTN; não o derroga. Na atualidade, sendo a Selic (em muito) abaixo dos 12% ao ano do CTN, não deve ser este o índice utilizado por esta Lei.

Segundo: a Selic congrega, em um único índice, correção monetária e juros de mora, conforme jurisprudência pacífica do STJ[3]. Há um problema operacional daí decorrente: o fato de que, em diversas ocasiões, juros de mora e de correção monetária possuem termos iniciais distintos. Basta pensar nos danos morais, a teor das Súmulas 54 e 362 do STJ. Não é só isso.

A Selic é de imprestável utilização como índice de correção monetária (o que é uma decorrência de sua utilização como taxa de juros de mora, eis que indissociáveis).

Nisso, incidem todas as considerações do STF nas diversas vezes em que afastou a Taxa Referencial como critério de correção monetária. A Selic, como a TR, é índice pré-fixado e sujeito a ingerências políticas – afinal, é um instrumento de política pública do Banco Central.

Não guarda relação direta com a desvalorização da moeda no tempo. Lembre-se do que disse o STF ao julgar o Tema 810: “a correção monetária não é jamais prefixada, uma vez que a inflação é insuscetível de captação apriorística. A variação de preços na economia é sempre constatada ex post, mas nunca fixada ex ante, exceto em regimes ditatoriais em que há controle de preços e economia planificada”. A Selic não atende este requisito.

Em terceiro, as externalidades econômicas negativas decorrentes da adoção da Selic. Juros de mora constituem sanção ao devedor que retarda o cumprimento da obrigação. Trata-se de incentivo ao adimplemento tempestivo da obrigação. Ao aumentar progressivamente o valor do débito, a taxa de juros deve imputar ao devedor um custo de não pagar maior do que o benefício de não pagar.

Deturpando esta lógica, a adoção da Selic torna economicamente mais vantajoso ao Réu inadimplir a obrigação e permanecer com o capital à sua disposição do que pagar o credor de forma imediata.

A taxa Selic atual é de 2% ao ano, conforme divulgado pelo COPOM em 15 de setembro de 2020. A agência internacional independente Worldwide Inflation Data estima a inflação anual do Brasil em 2,44% para 2020[4]. Internamente, nos índices setoriais, a discrepância é enorme: o IGP-M está projetado para fechar 2020 em 20%.

Somando juros de mora e correção monetária, a Selic sequer vence a inflação. O benefício de não pagar é maior do que seu custo. Na pendência do processo, enquanto teve disponível o valor em decorrência de seu inadimplemento, o réu poderá desonerar-se do ônus de buscar capital no mercado, eximindo-se de arcar com o custo do capital; e/ou rentabilizar estes valores junto ao mercado de forma a superar o valor devido ao autor (com correção e juros pela Selic, incluindo os honorários). Ao final, pagará um valor já corroído pela inflação.

É oportuno impugnar a ideia de que a resistência no litígio é uma via de mão dupla – ou seja, que no caso da adoção de juros de mora de 12% ao ano seriam os credores as partes que tenderiam a prolongar o litígio.

Os reais credores (que obterão sentença de mérito favorável) não detêm tantos instrumentos para retardar o processo quanto o réu. Primeiro, porque os credores/autores não detêm interesse recursal diante da decisão de mérito favorável.

Logo, não possuem o principal mecanismo de extensão do processo no tempo: os recursos. Segundo, porque o réu pode, a qualquer tempo, reconhecer o pedido e encerrar o processo. Terceiro, mesmo antes do ajuizamento da ação o réu pode consignar o valor em pagamento. Enfim, o controle do tempo do processo está muito mais na mão no réu do que do autor. As posições processuais não são equivalentes neste aspecto.

Por fim, em perspectiva de direito comparado, o disfuncional sistema Selic não encontra paralelo. Identificou-se, em análise comparada, três categorias de critérios de incidência de juros de mora: percentual fixo, critério híbrido e percentual variável (a partir de definição da autoridade financeira). Em nenhum dos casos analisados há um incentivo tão grande ao inadimplemento como há com a adoção da Selic no Brasil.

Itália, Portugal e Reino Unido adotam um percentual fixo. Na Itália, o art. 1284 do Código Civil estabelece o percentual de 10%. Em Portugal, o Decreto-Lei nº 58/2013 estabelece os juros de mora em até 3% ao ano, ao que é agregada sanção pecuniária compulsória prevista no art. 829-A do Código Civil, em taxa de 5% ao ano, totalizando 8% ao ano. No Reino Unido, o The Late Payment of Commercial Debts (Rate of Interest) Order estabelece a taxa anual de juros de mora em 8%.

A Alemanha adota critério híbrido. A Seção 288 do Código Civil (BGB) estabelece que a taxa de juros de mora será a soma de 5% à taxa básica de juros definida pelo Deutsche Bundesbank. Esta taxa básica de juros alemã é bastante similar à Selic (variável e vinculada às operações financeiras no Banco Central Europeu), mas sua variabilidade é contrabalanceada pelo percentual fixo previsto em Lei.

Na categoria de taxa de juros de mora variável, conforme definição por autoridade financeira, encontram-se o Brasil (adotada a Selic) e a Argentina (art. 768 do Código Civil). A diferença fundamental é que, no caso argentino, esta taxa atualmente é de 38% ao ano – muito longe dos 2% da Selic.

Em resumo, dos países analisados, o modelo Selic é, de longe, o que mais privilegia o devedor inadimplente. Trata-se de opção que esvazia, por completo, a função inerente aos juros de mora. Ao contrário, estimula o inadimplemento e o prolongamento do processo.

A decisão a ser tomada pelo STJ, na condição de elemento que pauta a conduta dos agentes econômicos, tem a potencialidade de majorar ou diminuir os custos de transação envolvidos nas operações econômicas do Brasil.

Em 2020, o Brasil ocupa a embaraçosa 124ª posição no ranking Doing Business do Banco Mundial. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça não pode contribuir para este quadro.

E a adoção da Selic como baliza de correção monetária e juros de mora das dívidas civis é uma sensível contribuição a tornar a tutela do crédito (ainda mais) deficiente no Brasil.

É chegada a hora do overruling. Não é possível que a jurisprudência do STJ tolere – ou mesmo estimule – o inadimplemento de obrigações ao torná-lo economicamente atrativo.

Espera-se, com isso, que, no julgamento do REsp nº 1081149/RS, o STJ reconheça que a taxa Selic é absolutamente inadequada e inidônea para fins de utilização enquanto taxa de juros de mora a partir do art. 406 do Código Civil, sendo estabelecida a incidência dos juros de 1% ao mês, nos termos do art. 161, § 1º, do CTN, somado a índice de correção monetária idôneo.

 


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[1] A título exemplificativo: (...). Juros moratórios que incidem no percentual de 1% ao mês (arts. 406 do CC c.c. 161, § 1º do CTN), também a partir de cada desembolso. (...) (TJSP;  EDs 0006390-21.2008.8.26.0417, j. em 22/11/2019); (...) acrescidos de correção monetária da data da publicação do acórdão e juros de mora de 1% (um por cento) ao mês na forma do artigo 406 do Código Civil c/c 161, § 1º do CTN, a contar da citação. (...). (TJRJ. 0026987-67.2016.8.19.0209, j. 31/03/2020).

[2] Lei 9.065/95; Lei 9.250/95; Lei 9.430/96; e Lei 10.522/02.

[3] Trata-se de entendimento firmado em recurso repetitivo: “4. A incidência de juros moratórios com base na variação da taxa SELIC não pode ser cumulada com a aplicação de outros índices de atualização monetária, cumulação que representaria bis in idem” (REsp 1102552/CE, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 25/03/2009, DJe 06/04/2009)

[4] Disponível em <https://www.inflation.eu/en/inflation-rates/brazil/inflation-brazil.aspx>. Acesso em: setembro de 2020.logo-jota