Thaís Pinhata
Advogada. Doutoranda e mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
O alto índice de violência praticada contra a mulher, seja ela causadora de morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e de dano moral ou patrimonial, sensibiliza e conduz estudiosos e a sociedade a discutirem o tema, a fim de compreenderem o que motiva tais atrocidades (que não cessam, pelo contrário, só aumentam), na intenção de impedi-las, de acolherem as vítimas e de fazerem com que o Estado puna, de forma eficaz, os autores desses crimes.
A violência contra a mulher afronta, de forma contundente, os Direitos Humanos e, é por isso que o combate a esse tipo de violência passou a ser tema de discussão mundial, ora buscando a edição de leis que protejam especificamente às mulheres, ora buscando alcançar e estabelecer a igualdade política, econômica, pessoal e social dos sexos, por meio dos mais diversos movimentos como, por exemplo, o feminismo.
O movimento feminista moderno pode ser dividido em quatro ondas, tendo cada uma pensado os diferentes aspectos das mesmas questões vividas pelas mulheres. A primeira onda de feminismo começou com o movimento sufragista, em 1848, em Nova York sob a liderança de Susan B. Anthony e Elizabeth Cady Stanton. O movimento visava promover o direito das mulheres ao voto[1].
A segunda onda, que começou em meados dos anos de 1960, fez campanha pela igualdade legal e social para as mulheres, incluindo questões sobre seus direitos reprodutivos, desigualdades legais, violência doméstica, estupro marital e lei de divórcio[2].
A terceira onda, que começou na década de 1990, versou sobre questões de interseccionalidade, transfeminismo, ecofeminismo vegetariano e feminismo pós-moderno.
Essa onda abrangeu também duas vertentes polêmicas: o feminismo liberal e o feminismo radical, sendo o primeiro uma forma individualista de teoria feminista que se concentrava na capacidade que mulheres têm de manter a igualdade com os homens, elevando-se no campo da academia e de outros domínios, pelos quais elas pudessem tomar melhores decisões e obter direitos políticos e legais iguais[3].
O feminismo radical, por outro lado, exige uma reordenação drástica da sociedade em que a supremacia masculina seja eliminada em todos os contextos sociais e econômicos.
A quarta e mais recente onda se inicia ao final dos anos de 2010, e tem por foco os debates sobre o assédio sexual nas universidades, cultura do estupro, discriminação no local de trabalho, vergonha do corpo, imagens sexistas na mídia, misoginia online, agressão no transporte público e outros tipos de assédio que estão associados ao uso das mídias sociais, as quais também deram origem a movimentos internacionais como o #metoo[4].
É nesse contexto que novas leis criminais, que tratam diretamente da questão da mulher, passaram a ser aprovadas em nosso país. As primeiras tratavam da questão da violência doméstica, a exemplo da já citada Lei Maria da Penha (Lei Federal nº 11.340/2016), traçando tratamento específico para os autores de crimes praticados neste contexto, bem como prevendo a criação de redes de proteção para as mulheres vítimas de violência, que envolvem desde espaços de acolhimento até delegacias especializadas.
Algumas outras tantas leis trouxeram pequenos avanços para as mulheres. São exemplos as seguintes leis e decretos federais: Lei nº 10.778/2003 (Lei da Notificação Compulsória dos casos de violência contra a mulher que forem atendidos em serviço de saúde pública ou privada); Lei nº 12.015/2009 (dispõe sobre os crimes contra a dignidade sexual); Lei 12.034/2009 (altera a lei 9.504/1997, e inclui como objetivo promover e difundir a participação política feminina, entre outros); Decreto nº 7.393/2010 (dispõe sobre o funcionamento do Ligue 180 – Central de Atendimento à Mulher); Decreto nº 7.958/2013 (estabelece diretrizes para o atendimento às vítimas de violência sexual pelos profissionais de segurança pública e da rede de atendimento do Sistema Único de Saúde); Lei nº 12.845/2013 (dispõe sobre o atendimento obrigatório e integral de pessoas em situação de violência sexual); Decreto nº 8.727/2016 (dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional); Emenda Constitucional nº 72/2013 (estabelece a igualdade de direitos trabalhistas entre os/as trabalhadores/as domésticos/as e os/as demais trabalhadores/as urbanos e rurais); e a Lei Complementar nº 150/2015 (dispõe sobre o contrato de trabalho doméstico).
Em 2015, o direito recebeu uma inovação com a alteração do artigo 121 do Código Penal, que previu o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio. Além disso, o feminicídio foi incluído no rol dos crimes hediondos (art. 1º da Lei de Crimes Hediondos). Para entendermos o feminicídio é importante fixarmos que ele não é um crime autônomo (ainda), mas uma categoria especial do delito de homicídio, conforme veremos adiante.
O homicídio é um dos crimes mais conhecidos e comentados pela sociedade e pela mídia. Trata-se da morte de um homem (ou mulher) por outro homem (ou mulher). É a destruição da vida de alguém por outrem; a morte não natural.
O feminicídio, por sua vez, consiste na conduta dolosa (com intenção) de matar uma mulher, por causa da sua condição natural de ser mulher. Isso quer dizer que é necessário que o autor do crime aja especificamente motivado pelo gênero (feminino) da vítima.
Antes de 2015, não havia nenhuma punição especial para os casos em que o homicídio era praticado contra a mulher, por razões da condição de sexo feminino. As condutas que hoje se enquadram no feminicídio eram apenadas pelo tipo penal genérico do homicídio (artigo 121, caput, do Código Penal) e processadas nos termos da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006). Não existia a previsão de uma pena maior nesses casos.
A Lei nº 13.104/15 veio alterar esse panorama e previu, expressamente, que o feminicídio, deveria ser punido, de forma específica, como homicídio qualificado (artigo 121, §2º, inciso IV, do Código Penal), de modo que, o patamar de pena aplicada ao agente criminoso passou de 6 a 20 anos para 12 a 30 anos de reclusão.
Vale lembrar que circunstância “qualificadora”, como o próprio nome sugere, indica uma situação prevista em lei que qualifica o crime pelo maior grau de “habilidade”, “maldade”, “profissionalismo criminoso” do agente, dentre outras características que tornam o crime mais grave – e que tem o condão de alterar o patamar (máximo e mínimo) da pena do delito. As qualificadoras, portanto, têm penas próprias e maiores do que as penas previstas para a forma simples dos crimes.
Passados pouco mais de cinco anos o feminicídio, como figura qualificada do homicídio, parece não agradar a todos na forma como está previsto em lei e, por isso, outra novidade legislativa se avizinha. O Projeto de Lei nº 4.196/20, que tramita na Câmara dos Deputados e se encontra pronto para votação, propõe dar nova redação ao crime de feminicídio, com a finalidade de considerá-lo crime autônomo.
Pela proposta, o crime de feminicídio deixaria de ser uma qualificadora do crime de homicídio e se tornaria um crime autônomo, previsto no (novo) artigo 121-A, com pena base de 12 a 30 anos.
Além da emancipação do feminicídio, o texto propõe a alteração do termo "condições de sexo feminino", para "condições de gênero feminino", por se tratar de conceito jurídico mais adequado; mantém as causas de aumento de pena do artigo 121, § 7º, do Código Penal e estabelece pena maior, de 20 a 30 anos de reclusão, nas hipóteses em que o feminicídio ocorrer conforme uma das outras qualificadoras do crime de homicídio.
Embora concordemos que a técnica legislativa utilizada em 2015 não foi das melhores, porquanto o termo "condições de sexo feminino" não é o mais adequado para a espécie feminicídio e sim o substituto "condições de gênero feminino", o qual não deixa dúvidas sobre o alcance desse crime para os casos em que as vítimas sejam transsexuais, ousamos discordar do mencionado projeto de lei, por entendermos que tornar o feminicídio um crime autônomo não trará avanços à Justiça Penal.
A ideia de tornar o feminicídio um crime autônomo, não é senão uma forma de criminalizar uma conduta já criminalizada, ou o que chamamos de “direito penal simbólico”: criação de leis mais rigorosas diante do clamor social e midiático.
Nas palavras do brilhante jurista Eugênio Raúl ZAFFARONI[5]: "Se uma pessoa vai a uma quitanda e pede um antibiótico, o quitandeiro lhe dirá para ir à farmácia, porque ele só vende verduras. Nós, penalistas, devemos dar este tipo de resposta saudável sempre que nos perguntam o que fazer com um conflito que ninguém sabe como resolver e ao qual, como falsa solução, é atribuída natureza penal" (grifo nosso).
A resposta ao crime de feminicídio foi dada em 2015, pela já mencionada Lei nº 13.104/15 e, naquela ocasião, foram amplos os debates acerca da inclusão da figura qualificada em nossa legislação.
O crime de feminicídio é sim uma espécie do tipo genérico de homicídio, agravado pela condição especial da vítima, o que justifica a sua topografia da forma como está (como espécie qualificada do artigo 121 do CP).
A princípio, o Projeto de Lei nº 4.196/20 não traz nada muito inovador: as demais qualificadoras do crime de homicídio já se aplicam à modalidade qualificada do feminicídio, conforme decidido reiteradas vezes por nossos Tribunais Superiores[6]; com relação ao recrudescimento da pena mínima, custamos a acreditar que o aumento do patamar mínimo refletirá na diminuição dos índices de feminicídios praticados no nosso país (infelizmente!).
Por fim, não obstante a opção infeliz pelo termo “sexo feminino” na redação do parágrafo 2º, inciso VII do artigo 121 do Código Penal, a discussão sobre a possibilidade dos transexuais serem vítimas de feminicídio já está superada, pelo que se depreende do teor da decisão proferida na ADI 4275[7].
É claro que, quando houver a oportunidade de revisão geral do Código Penal, termos jurídicos equivocados, bem como a topografia dos tipos penais deverão ser repensados, já que a opção pela melhor técnica de redação jurídica pode evitar discussões futuras e impertinentes nos Tribunais. Não nos parece este o momento oportuno para se propor a emancipação do feminicídio.
Ademais, não se trata de um projeto de lei que traz avanços à justiça, pelo contrário, ele carrega o viés punitivista como a melhor solução para o extermínio desse tipo de conduta criminosa, trata-se de criar nova figura criminal como resposta midiática.
Parafraseando Zaffaroni: atribuir independência ao feminicídio é uma falsa solução para um conflito que ninguém parece saber resolver. O mencionado PL se vale da velha prática do direito penal simbólico.
Pensar em respostas adequadas para as violências contra a mulher não é tarefa fácil, em primeiro lugar, pela falta de um histórico de práticas destinadas a este fim que nos tenha ensinado, na prática, seus efeitos. Em segundo, porque mesmo entre as mulheres que se dedicam aos estudos feministas não há consenso.
O que se vê nos movimentos feministas atuais é, nesse sentido, uma constante disputa em que de um lado teremos as adeptas das teorizações de autoras como Angela Davis e Julita Lemgruber, as quais defendem a abolição da prisão, pelo reforço ao racismo e ao sexismo contra grupos subalternizados e exigem reparações de outra forma com fuga ao canto da sereia do punitivismo e, de outro, as feministas pós-estruturalistas, para quem o fim das prisões traz, igualmente, o fim dos únicos instrumentos jurídicos para conter homens que matam e violentam mulheres no dia-a-dia.
Esses embates, entretanto, não deverão ignorar toda a trajetória da luta de mulheres e, portanto, ainda naquelas situações em que se possa tender à análise pós-estruturalista, não faz sentido agravar as condutas, tais como elas já estão dispostas, sendo necessário apenas o seu efetivo cumprimento.
Assim, o que se espera para a resolução destes problemas é uma educação – para homens e mulheres – sobre as questões relacionadas a estas, bem como políticas públicas de qualidade capazes de, seja pela educação, seja por quaisquer outros meios, alertar e prevenir sobre os horrores da violência doméstica e suas penalizações.
Indo além, a sociedade espera que, enquanto sejam necessárias, as penalizações sejam aplicadas com efetividade e rigor, até que o progresso feito pelas mulheres ao longo dos séculos e sua a luta removam as raízes da misoginia sejam removidas do mundo. Sem igualdade de acesso à educação, igualdade de oportunidades e emancipação econômica, a igualdade de gênero permanecerá um sonho distante.
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[1] Farias Monteiro, K., & Grubba, L. S. (2017). A luta das mulheres pelo espaço público na primeira onda do feminismo: de suffragettes às sufragistas. Direito e Desenvolvimento, 8(2), 261-278. Disponível em: <https://doi.org/10.25246/direitoedesenvolvimento.v8i2.563>.
[2] COSTA, Claudia de Lima. O sujeito no feminismo: revisitando os debates. Cadernos Pagu (19), 2002, p. 59 -90
[3] MATOS, Marlise. Movimento e teoria feminista: é possível reconstruir a teoria feminista a partir do sul global? Revista de sociologia e política, v. 18, n. 36, p. 67-92, 2010.
[4] Para mais, ver: <https://metoobrasil.org.br/>.
[5] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Trad. Sérgio Lamarão. 3.ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p.184/185
[6] Disponível em: <https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/despacho916789/false>.
[7] Disponível em: <http://ibdfam.org.br/assets/img/upload/files/ADI4_275VotoEF.pdf>.