Os 10 anos da Lei de Drogas

Em 2006, o Congresso Nacional aprovou uma nova lei para regulamentar as políticas públicas sobre drogas no Brasil: a Lei nº 11.343. O chamado problema das drogas não seria mais tratado tão-somente pela via do direito penal: Estado e sociedade passariam a compartilhar a responsabilidade por políticas de prevenção, tratamento e reinserção social de usuários e dependentes de drogas, tendo como pressuposto o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, “especialmente quanto à sua autonomia e à sua liberdade”.

A legislação brasileira sobre o tema sempre foi essencialmente repressiva. O texto aprovado substituiu a famosa Lei 6.368, cujos artigos referentes ao tráfico de drogas (art. 12) e ao porte para de drogas para uso pessoal (art. 16) foram imortalizados pela música de Bezerra da Silva. Assim como no samba, o viés punitivo da lei de 1976, concebida nos anos de chumbo e com inspiração na guerra às drogas estadunidense, simbolizou um tempo em que o problema das drogas foi tido como sinônimo de problema de polícia.

Por isso, a nova lei foi saudada como um avanço, ao reconhecer que a questão das drogas é multifatorial e que, portanto, depende de políticas mais amplas e diversas que a mera repressão. Para marcar a diferença de abordagem, uma das novidades foi a despenalização do porte de drogas para uso pessoal. Embora permaneça definida como crime, a conduta passou a ser punida com sanções alternativas à prisão.

A despeito dos avanços simbólicos, contudo, a repressão seguiu como protagonista. Como para compensar a despenalização do porte de drogas para uso pessoal, a lei aumentou severamente as penas para o crime de tráfico, sem, contudo, diferenciar adequadamente as duas condutas. O resultado era previsível: a proporção de pessoas presas por tráfico no Brasil aumentou de 14% para 28% entre 2005 e 2015. Entre as mulheres, no mesmo período, essa proporção saltou de 49% para 61%. Inúmeras pesquisas indicam que o perfil das pessoas presas está longe de corresponder à figura midiatizada do traficante que aterroriza a sociedade: a enorme maioria foi presa sozinha, desarmada e portando quantidades ínfimas de droga. Em outras palavras, preciosos recursos financeiros e humanos estão sendo gastos para prender e manter encarcerado o elo mais fraco da economia do crime.

Além de contraproducente do ponto de vista da segurança pública, é evidente que o enorme incremento na dimensão repressiva de nossa política de drogas não traz efeitos positivos no campo da prevenção ou da saúde. O foco das políticas segue nas substâncias proibidas, e não nas pessoas. Isso se transforma em campanhas preventivas baseadas no terror e no medo, sabidamente ineficazes, e na criação de barreiras aos serviços médicos, em que pessoas têm medo de procurar ajuda.

Seria ingênuo imaginar que tais problemas são resultado apenas da nossa legislação. Se é verdade que algumas alterações seriam bem-vindas – algumas até já foram determinadas pelo STF – a maioria dos obstáculos não é legal, mas cultural. Seguimos atribuindo à figura genérica do traficante a culpa por todos os nossos males sociais, cultivamos uma briga estéril e artificial entre tratamento por meio da abstinência e pela redução de danos, e permanecemos vinculados a crenças como a relação direta entre consumo de drogas e violência, quando basta olhar para os índices europeus para verificar que uma coisa nada tem a ver com a outra.

O estado de coisas mudou bastante desde 2006. O crime de portar drogas para uso pessoal tem sido afastado em grande parte do mundo ocidental, e sua constitucionalidade é questionada no Brasil. Derivados da maconha são reconhecidos como remédios úteis para doenças até então intratáveis. O grande patrocinador da guerra às drogas, os EUA, convive com experiências de legalização da maconha para fins recreativos em seu próprio território, juntamente com Canadá e Uruguai.

Por aqui, as mudanças são mais tímidas, mas existem: é quase impossível encontrar alguém que defenda a prisão de usuários de drogas, por exemplo. Há algum consenso de que as pessoas que mais sofrem com o problema das drogas são as mais vulneráveis, para quem a droga é apenas mais um desafio entre muitos outros que dificultam sua efetiva inclusão social. Contudo, a lei que acenou com uma proposta diferente resultou em mais do mesmo.

Em uma de suas raras entrevistas, Sigmund Freud desdenhou a importância dos festejos por ocasião de seu aniversário de 70 anos: “não dou importância exagerada aos decimais”. No caso da nossa Lei de Drogas, seu aniversário de 10 anos não foi comemorado. Que seja, pois, uma oportunidade para que a política de drogas brasileira passe por uma boa análise.